Noite no Inferno

Engoli uma notável poção de veneno.
- Três vezes seja bendita esta riquíssima ideia! – As entranhas ardem-me. A violência da peçonha galvaniza-me os membros, desfigura-me, atira-me por terra. Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a pena capital. Vede como as chamas cobrem tudo! Ardo bastante bem. Aplica-te Demónio!
Estava eu a sonhar com uma conversão à ventura e ao bem, a salvação. Poderei descrever tal visão? O ar do inferno não suporta hinos! Eram milhões de criaturas amáveis, um suave conluio espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, que sei eu?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! – Se a danação é eterna! Um homem que quer mutilar-se está danado e bem danado, não é assim? Imaginar o inferno é ser inferno. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo do meu baptismo. Ó família minha, fizestes o meu infortúnio e fizestes o vosso. Coitadinho do inocente – O inferno não pode engolir os pagãos. – É ainda a vida! Mais tarde, as delícias da danação irão muito mais fundo. Um crime, depressa, que a lei humana me precipite no vácuo.



Jean-Arthur Rimbaud

Iluminações, Uma Cerveja no Inferno
Assírio & Alvim, 2001
Tradução de Mário Cesariny

Manhã de Embriaguez

Ó meu Bem! Ó meu Belo! Fanfarra atroz em que já não tropeço! Cavalete feérico! Hurrá pela obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Isto começou com risos de criança, em risos de criança há-de acabar. Este veneno vai ficar em todas as nossas veias, mesmo quando, regressada a fanfarra, formos devolvidos à antiga inharmonia. Ó nós agora tão digno destas torturas, cumpramos fielmente a jura sobre-humana feita ao nosso corpo à nossa almas gerados: esta promessa, esta demência! A elegância, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, banir as honestidades tirânicas, afim de que pudéssemos nosso puríssimo amor. Isto começou com uma certa náusea e isto acaba - não podendo assenhorar-se já de tal eternidade - isto acaba por uma debandada de perfumes.
Risos de crianças, discreção de escravos, austeridade das virgens, horror destas caras e destes objectos, sagrados sejais pela recordação desta vigília. Isto começou com toda a grosseria, eis que isto acaba em anjos de fogo e neve.
Breve vigília de embriaguez, santa!, quanto mais não seja pela máscara que nos deste! Afirmamos-te, método! Não esquecemos que exaltaste outrora todas as nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos ASSASSINOS.



Jean-Arthur Rimbaud

Iluminações, Uma Cerveja no Inferno
Assírio & Alvim, 2001
Tradução de Mário Cesariny

A prisão e paixão de Egon Schiele

A esta hora em que a noite é uma seringa partida. A esta hora em que os pulmões são de seda e o sangue circula muito devagar. Eu não estou.

Pode ser a chuva numa esplanada ou, ao invés, o carro que trava o tempo da primavera. Não importa.

A noite é uma especiaria que acende os corpos.

Há três dias que durmo desordenadamente. Transpiro e acordo e vejo casas que são desdobramentos da minha própria casa. A verdade é que preciso de ti para um poema. Preciso que te passeies por uma dessas casas, que te sentes, que te deites. Preciso olhar para ti durante 27 segundos.

A solidão é um serviço misterioso. Reunimo-nos para prestar contas do nosso desaparecimento e por vezes agarramos um braço como se pretendêssemos instalá-lo, de repente e para sempre, na nossa ternura.

Todos os meus silêncios são uma criança que espreita. Todas as minhas faltas são uma criança entusiasmada. Todos os meus poemas são crianças mudas que gesticulam.

Todos os dias saio para a decisão de um amor sem protagonista. Encosto-me às paragens de autocarro e aceno subitamente a alguém que passa. Por vezes retribuem-me o gesto e ficamos ambos sem saber se por graça, se por um escuro reduto de uma franqueza cada vez mais rara. Tens tempo para um estranho? A que horas me poderias dizer o teu nome? Conheço uma igreja que ardeu, conheço outra que é muito muito pequena. Escuta, no meio desse teu deserto, ao passar a caravana do luxo, será que és capaz de suplicar: água?

És capaz? És capaz ainda de suplicar?

Bebe, este poema actua sobre o nervo da alegria. Este poema é um cavalo de crina incendiada a ultrapassar a tarde. Nunca perceberás por que se move, para onde vai, de que se alimenta. Bebe, alguma vez estiveste ébrio no meio da tua ignorância?

Preciso de ti para um poema. Ofereço-te em troca o meu auto-retrato sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um corpo cheio de insónias, pele de galinha, súbitos arrepios, termómetros para novecentas febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis, fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos.

Não me visites. Não me visites agora. A noite deu-me uma filha. Tem cabelos verdes. Fiz-lhe um berço de papel. Parece uma estrela caída do invisível trapézio. Vai demorar muito tempo até reencontrar o equilíbrio. Tem pés muito pequenos. Dorme de dia, e à noite respira muito e não me larga a mão.

Sou um pintor. Trago sangue para os vossos olhos. Tenho artérias que se descosem e me cospem dentro de mim mesmo. Preciso de muita paciência, de todas as mulheres do mundo. Durmo sobre a cama profana da minha escuridão. Contagio e deixo-me contagiar pela peste dos bairros pequenos. Não suporto muita luz, não sei o que é uma avenida. Esquina, sou qualquer coisa que o espanto torce. Sou viciado no álcool dos corpos que se difundem. Bebo das vossas bocas o que não pode ser visto. Pinto para me esquecer do que não pode ser visto. Pinto com os materiais clandestinos do meu amor. Não projecto nada na minha tela. Eu sou a tela. Eu sou a luta das cores por um diafragma de beleza. Sou um pintor. Mereço morrer como pintor. Não mereço que me prendam. Mereço todas as minhas paixões. Mereço todas as minhas paixões.

Vi tudo. Não tudo, mas tudo o que me aconteceu. Garanto-te que prestei atenção e estou pronto para mais 47 anos de fita. Não quero rebobinar, quero atravessar os pomares da minha loucura terrena, colhendo frutos, marcando todas as árvores, com fogo, a ilegível assinatura da minha passagem.

Não é para decifrar! Não é para decifrar! É para se desfazer na boca, como açúcar, como vinho, como a erva lenta da infância.



Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc, 2005
Era apenas um livro. Teria forçosamente que ser um livro: a aparência era de livro, o comportamento era sem dúvida de livro. Todos sabiam, porque sempre fora assim, que mais um livro não traria nada de extraordinário: letras, vírgulas, alguma gramática. É isto um livro. Porém, quando abriram aquele livro, e era de facto um livro, notaram uma qualquer presença estranha, algo que não souberam definir. Fechavam-no, abriam-no. Olhavam atentamente a capa, interrogavam. Lançavam-no ao ar numa última tentativa de desmanchar o truque: mas ele caía como um livro, desprezando as suas páginas como todos os livros.

Sussurravam de uns para os outros: o que se passa com este livro? Trocavam olhares cúmplices quando entreviam num rosto alheio o efeito da mais breve leitura que fosse daquele livro. Os sintomas eram claros para quem já lera uma parte. Um tremor subtil na pele, um desajeitado modo de ter mãos, ora no bolso, ora na cara, ora rodando no ar, um passo levemente incerto, uma tensão nas sobrancelhas. Para quem não lera, porém, tudo corria calendariamente.

Os leitores daquele livro inquietante aproximavam-se, trocavam hipóteses de solução, procuravam desesperadamente calar o desconforto que a leitura lhes ia gradualmente instalando. As suas vidas pareciam irremediavelmente suspensas perante a urgência do fenómeno. Olhavam, liam: letras, vírgulas, gramática. Tudo aquilo ressoava na memória. Eu sei o que isto é!, diziam. Não existia nada de desconhecido naquele livro. Porém, revelava-se absolutamente incomparável. E nisto consistia o mistério. O olhar passava pelas palavras no mesmo gesto mecânico de sempre, da esquerda para a direita, atento às pausas, descendo suavemente a página. E, no entanto, assomava ao cimo desse olhar treinado uma sensação de tontura que depois alastrava por todo o corpo. O livro era insuportável, excessivo. Era preciso fechá-lo abruptamente para não se cair ao chão.

Mas por quê? Que subtil e raro poder circulava na normalidade daquele livro? Era isto que traziam para a rua. Alguns paravam subitamente no passeio, ou acordavam em sobressalto durante a noite, como se houvessem decifrado o problema. Escapava-se-lhes. Regressavam ao livro contrafeitos, mas num estado de profundo encantamento. Umas palavras mais, mentalizavam-se. Mas liam sempre mais do que podiam e a tontura assinalava-lhes de imediato a transgressão. Começavam a desenvolver um agudíssimo sentido dos detalhes. Viviam mais lentamente. Cuidavam do livro como se se tratasse de uma matéria preciosa, a mais preciosa. As suas vidas cresciam em intensidade.

Era um livro único, excepcional.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007

O teu corpo transpira o meu ópio. Não te afastes.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Vivi à queima-roupa todo o calendário. No relatório policial ficou declarada a minha inocência. Mas, de facto, eu estava lá.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
A única dignidade da vida é narrar-se. Ouvir-se nos anfiteatros. O resto é fome, violência e esperma.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Lou, somos dois continentes a boiar num tanque de pedra. O próprio espaço se agita com as nossas colisões. E no fundo da terra, como no fundo do mar, como no fundo das horas que caem, o nosso sinal é esta margem sem palavras, este cordão que atravessa simultaneamente a boca e a cintura dos animais - porque nós somos, Lou, o cofre e o improviso que o levanta, dois poços a darem eco da mesma água.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Estão aqui 37 graus. É um corpo. E ninguém se aproxima senão para recuar. Devorar. Ou ficar.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007
Veio de muito longe o homem que me pagou todas as dívidas na cidade. Tinha cabelo liso e não falámos muito. Eu estava calmo. Dormi uma última noite antes de partir. A última noite é para o homem que veio de muito longe poder afastar-se. A última noite, não tenhas ilusões, é para ficar a dever.



Vasco Gato
Omertã
Quasi Edições, 2007

3

Quando eu era pequeno, punha-me a olhar para uma imagem de Deus Nosso Senhor de pé, em cima de uma nuvem que havia no Antigo Testamento, contado às crianças e ilustrado com gravuras de Gustavo Doré, que costumava folhear. Era um senhor bastante velho, com olhos, nariz, uma grande barba, e eu achava que , como tinha boca também devia comer. E, se comia, também devia ter intestinos. Mas ficava logo assustado com a ideia porque, embora a minha família fosse quase ateia, percebia bem a blasfémia que era pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos.
Sem a mínima preocupação teológica, com toda a espontaneidade, a criança que eu era então já compreendia, portanto, a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas, uma: ou o homem foi criado à imagem de Deus e Deus tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os gnósticos antigos sentiam-no tão claramente como eu, aos cinco anos. Para acabar de uma vez por todas com este maldito problema, Valentino, grão-mestre da Gnose do século II, afirmava que Jesus «comia, bebia, mas não defecava».
A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal. Deus ofereceu a liberdade ao homem, e portanto, pode admitir-se que ele não é responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criou o homem e só a ele.»




Milan Kundera
A insustentável leveza do ser
Publicações Dom Quixote, 2005
Tradução de Joana Varela

XX

Estão diante de mim como uma filarmónica. Estão à roda da sala e eu em frente a olhá-los com muita atenção. São dez, contei-os de um a um, todos à volta, encostados à parede. E a certa altura reparo que todos remoem a boca em silêncio. São cinco homens e cinco mulheres, intervalados uns nos outros, os homens em cadeiras de rodas e as mulheres quase acocoradas, nas suas cadeirinhas rasas. E as cabeças um pouco inclinadas, esmoem mudos interminavelmente. Não costumam estar assim intervalados - estão. Vejo-lhes agora só as bocas em fileira a toda a volta, estão no ar e em fila na sua moedeira infindável. Fixo-lhes o movimento contínuo, os lábios em redemoinho lento na tarde quente imóvel. E a certa altura reparo que o rodopio das bocas se altera. Agora as dez bocas vêm à frente e atrás, um pequeno inchaço, de quem sopra, devem estar a soprar em qualquer instrumento invisível. E pouco a pouco os instrumentos são já visíveis, nítidos agora no seu niquelado amarelo. Trompetes trombones, todas as bocas sopram neles uma música no eterno. Não a ouço e há escuro à sua volta. Contra o fundo negro da sala, só as bocas soprando nos instrumentos metálicos. »




Vergílio Ferreira
em nome da terra
Bertrand Editora, 1990

teatro da guerra

no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor esse fenece
esse fenece com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.

mas de hora a hora deus melhora



Alberto Pimenta
Obra Quase Incompleta
Fenda, 1990

Em Sonhos

Viver assim:
Esta mão na tua, a outra
Mortiferamente fria; este olho
A fingir que vela por ti,
O outro cego.
Vivemos em sonhos:
Estas tardes sentimentais,
Estes votos silenciosos,
Morríamos à fome sem eles.



Ian Hamilton

Cinquenta Poemas
Livros Cotovia, 1995
Tradução de Nuno Vidal

Recuo

Uma breve pulsação de encarnado
Invade um canto do teu olho ferido.
Tu a ouvi-lo latejar
Em harmonia perfeita com o nosso desespero
E eu que já não sou consolo para ti.



Ian Hamilton

Cinquenta Poemas
Livros Cotovia, 1995
Tradução de Nuno Vidal

A Arthur Rimbaud

Mortal, anjo E demónio, ou seja, Rimbaud,
Mereces o primeiro lugar no meu livro,
Apesar do boçal escriba que te chamou
Ébrio liceal, devasso imberbe, monstro a abrir.

Fumo em espirais de incenso, acordes de alaúde
Alegram-se ao entrares no templo da memória
E o teu nome radioso cantará em glória,
Porque me amaste como foi preciso, em tudo.

Mulheres verão em ti um jovem muito forte,
Belo, de uma beleza rústica e perversa,
Desejável, com a tua indolência atrevida!

E a história esculpiu-te a triunfares da morte
Fruindo até aos puros excessos a vida,
Com os teus brancos pés na cabeça da Inveja!

(Dedicácia)



Paul Verlaine

Poemas Saturnianos e Outros
Assírio & Alvim, 1994
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

O Amor No Chão

O vento da outra noite derrubou o Amor
Que, no mais misterioso recanto do parque,
Nos sorria, ao esticar malignamente o arco,
E cujo ar nos fez meditar com fervor!

O vento da outra noite derrubou-o! O mármore
com o sopro da manhã, disperso, gira. É triste
Olhar o pedestal, onde o nome do artista
Se lê com muito esforço à sombra de uma árvore,

É triste ver em pé, sozinho, o pedestal!
Melancólicos vêm e vão pensamentos
No meu sonho, onde o mais profundo sofrimento
Evoca um solitário futuro fatal.

É triste! — E mesmo tu, não é? ficas tocada
Plo cenário dolente, embora te divirtas
Com a borboleta rubra e de oiro, que se agita
Sobre a alameda, além, de destroços juncada.



Paul Verlaine

Poemas Saturnianos e Outros
Assírio & Alvim, 1994
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Il Bacio

O Beijo! malva-rosa em jardim de carícias!
Vivo acompanhamento no piano dos dentes
Dos refrãos que Amor canta nas almas ardentes
Com a sua voz de arcanjo em lânguidas delícias!

Divino e gracioso Beijo, tão sonoro!
Volúpia singular, álcool inenarrável!
O homem, debruçado na taça adorável,
Deleita-se em venturas que nunca se esgotam.

Como o vinho do Reno e a música, embalas
E consolas a mágoa, que expira em conjunto
Com os lábios amuados na prega purpúrea...
Que um maior, Goethe ou Will, te erga um verso clássico.

Quanto a mim, trovador franzino de Paris,
Só te ofereço um bouquet de estrofes infantis:
Sê benévolo e desce aos lábios insubmissos
De Uma que eu bem conheço, Beijo, e neles ri.



Paul Verlaine

Poemas Saturnianos e Outros
Assírio & Alvim, 1994
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

A Angústia

Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.

Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.

Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.

Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.



Paul Verlaine

Poemas Saturnianos e Outros
Assírio & Alvim, 1994
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Sabedoria, I, III


Que dizes, viajante, de estações, países?
Colheste ao menos tédio, já que está maduro,
Tu, que vejo a fumar charutos infelizes,
Projectando uma sombra absurda contra o muro?

Também o olhar está morto desde as aventuras,
Tens sempre a mesma cara e o teu luto é igual:
Como através dos mastros se vislumbra a lua,
Como o antigo mar sob o mais jovem sol,

Ou, como um cemitério de túmulos recentes,
Mas fala-nos, vá lá, de histórias pressentidas,
Dessas desilusões choradas plas correntes,
Dos nojos como insípidos recém-nascidos.

Fala da luz de gás, das mulheres, do infinito
Horror do mal, do feio em todos os caminhos
E fala-nos do Amor e também da Política
Com o sangue desonrado em mãos sujas de tinta.

E sobretudo não te esqueças de ti mesmo,
Arrastando a fraqueza e a simplicidade
Em lugares onde há lutas e amores, a esmo,
Da maneira tão triste e louca, na verdade!

Foi já bem castigada esse inocência grave?
Que achas? É duro o homem; e a mulher? E os choros,
Quem os bebeu? E que alma capaz de os contar
Consola isso a que podes chamar tuas dores?

As, os outros, ah, tu! Crendo em vãos lisonjeios,
Tu que sonhavas (e era também demasiado)
Com uma qualquer morte suave e ligeira!
Ah, tu, que espécie de anjo sempre amedrontado!

Mas que intenções, que planos? Terás energia
Ou o choro destemperou esse teu coração?
A julgar pela casca, é uma árvore macia
E os teus ares não parecem de vencedor, não.

Tão desastrado ainda! e com a agravante inútil
De seres cada vez mais um sonolento idílico
A fitar pla janela o céu sempre tão estúpido
Sob o astuto olhar do diabo do meio-dia.

Sempre o mesmo na tua extrema decadência!
Ah! - Mas no teu lugar, e assumindo as culpas,
Um ser sensato quer impor outra cadência
Com o risco de alarmar um poucos os transeuntes.

Não terás, vasculhando os recantos da alma,
Um vício para mostrar, qual sabre à luz do dia,
Algum vício risonho, descarado, que arda
E vibre, dardejante, sob o céu carmim?

Um ou mais? Se os tiveres, será melhor! E parte
Prà guerra e briga a torto e a direito, sem
Escolher ninguém e enverga a indolente máscara
Do ódio insaciado, mas farto também...

Não devemos ser tansos neste alegre mundo
Onde a felicidade não é saborosa
Se nela não vibrar algo perverso, imundo,
E quem não quer ser tanso tem de ser maldoso.

- Sabedoria humana, eu ligo a outras coisas
E, de entre esse passado de que descrevias
O tédio, em conselhos ainda mais penosos,
Só consigo lembrar-me, hoje, do mal que fiz.

Em todos os estranhos passos desta vida,
Dos lugares e dos tempos, ou também dos meus
«Azares», de mim, dos outros, da estrada seguida,
Sempre retive apenas a graça de Deus.

Se me sinto punido, é porque o devo ser.
O homem e a mulher não estão aqui em vão.
Mas espero que um dia possa conhecer
O perdão e a paz que aguardam os cristãos.

É bom não sermos tansos neste mundo efémero,
Mas pra que o não sejamos na eternidade,
O que é mais necessário que reine e governe
Nunca é a maldade, mas sim a bondade.

(Sabedoria)



Paul Verlaine

Poemas Saturnianos e Outros
Assírio & Alvim, 1994
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

VI

E porque o Amor combate
não apenas em sua ardente agricultura,
mas na boca de homens e mulheres,
terminarei enfrentando
os que entre meu peito e a tua fragrância
quiserem interpor a sua planta escura.
De mim nada pior
te dirão, meu amor,
do que eu já te disse.
Vivi nas pradarias
antes de te conhecer
e não esperei pelo amor: mantive-me
à espreita e saltei sobre a rosa.
Que mais podem dizer-te?
Não sou bom nem mau, apenas um homem.
Acrescentarão então o perigo
da minha vida, que tu conheces
e com tua paixão partilhaste.
Pois bem, esse perigo
é perigo de amor, de amor completo
para toda a vida,
para todas as vidas,
e se esse amor nos trouxer
a morte ou as prisões,
estou seguro de que os teus grandes olhos,
como quando os beijo,
se hão de fechar então com orgulho,
com duplo orgulho, amor,
o teu orgulho e o meu.
Aos meus ouvidos, porém, virão antes
escavar a torre
do doce e forte amor que nos liga,
e dir-me-ão: - "Aquela
que tu amas
não é mulher para ti,
porque lhe queres? Julgo
que podias encontrar outra mais bela,
mais séria, mais profunda,
mais outra, tu percebes. Olha como se mexe
e a cabeça que tem,
repara como se veste,
etcétera, etcétera".
E eu digo nestas linhas:
é assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada.
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite
explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegaste à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nossos lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
dum amor verdadeiro.



Pablo Neruda

Os Versos do Capitão
Campo da Poesia, 1996
Tradução de Albano Martins
O ANJO SEM MORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.



Heiner Müller
O anjo do desespero
Relógio D´Água, 1997
tradução de João Barrento

As Imagens

As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, o grou, um pássaro, mais
__nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
__amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

_______________sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.



Heiner Müller
O anjo do desespero
Relógio D´Água, 1997
tradução de João Barrento
Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de manhã.



Heiner Müller
O anjo do desespero
Relógio D´Água, 1997
tradução de João Barrento

Henri Michaux























Henri Michaux, nasceu em Namur, em 24 de maio de 1899.
Poeta francês de origem belga, oriundo de uma família burguesa com juristas, arquitectos e etc . Porém, nunca gostou do seu país, nem da sua gente ou paisagem. Desde cedo sentiu a realidade como algo distante e envergonhava-se de tudo o que o rodeava.
Então escrevia, nesse tempo já vivia no mundo como estrangeiro, pensando até em tornar-se monge. Em 1920, abandonou os estudos de medicina para realizar uma longa odisseia como marinheiro, saindo de Boulogne-sur-Mer. Nesse mesmo ano, em Roterdão, repete a experiência rumo a Buenos Aires e ao Rio de Janeiro. Aos 23 anos, descobre a literatura com o sobressalto que lhe provoca a leitura d´ Os Cantos de Maldoror (Les Chants de Maldoror, 1868), do uruguaio Lautréamont (1846-1870). A sua futura criação teria uma aura misteriosa, subterrânea, e simbolicamente obscura tal como a obra de Lautréamont.
De volta a Paris, em 1923, estuda literatura e volta a viajar até 1937 pela Ásia, África do Norte e América do Sul, revelando uma tomada de consciência em relação ao mundo e às coisas. A razão principal pela qual viaja é para expulsar do seu interior “a sua pátria, os seus vínculos de qualquer classe”. Fugindo das terras estrangeiras, enviava poemas que definiu num dos seus livros como “cápsulas de observar”. Escreveu o seu primeiro livro, Qui je Fus (1927), que o revela como escritor original; publicando seguidamente o autobiográfico Ecuador (1929), relato de uma viagem, e Une Barbare em Asie (1933), traduzido para o espanhol por Jorge-Luis Borges, que conheceu Michaux e considerou o texto “um jogo”. A seguir veio Voyage en Grande Garabagne (1936), Plume (1938) e Lointain Intérieur (1938). Visitando Montevidéu, Uruguai, em 1936, apaixonou-se pela poeta Susana Soca, que morreu jovem e era conhecida por uma legendária beleza. Anos depois, em 1943, casaria com uma mulher divorciada e tuberculosa, Marie-Louise Termet.

Michaux, odiava as artes plásticas, todavia em 1924, depois de fixar residência em Paris e ao conhecer a obra de Paul Klee, De Chirico, Max Jacob e outros surrealistas, muda de opinião. Fascinado principalmente pela criação do suíço Klee, decidiu procurar uma forma de expressão visual. Em 1937 começou a desenhar e a pintar, expondo em galerias e indo ao encontro das mesma ideias da sua literatura: uma viagem através de si mesmo. A sua técnica ágil prefere a aquarela e a tempera ao óleo, fundindo formas gráficas que lhe permitem criar um universo poético e ímpar. Não se pode definir o seu trabalho pictórico como ilustração, riscos, ideogramas ou alfabeto. Diria antes algo de inacabado e inacessível; tal como a sua literatura, outra forma mas com igual destino: o de explorar o mundo interior. Há uma espécie de tremor que habita nas suas manchas, um despojamento entre fragilidade e sobriedade. São como curtos-circuitos, caligrafia nervosa que avança e retrocede, impulsos que buscam inutilmente uma saída. “Eu queria desenhar a consciência de existir e o fluir do tempo”, confessou.

Foi colaborador assíduo da importante Sur, uma revista literária argentina que difundiu a arte inovadora, além de divulgar as actividades da Resistência francesa. Tornou-se conhecido em França a partir dos anos 40, quando André Gide escreveu um texto sobre ele. Com a trágica morte de sua esposa, falecida em consequência das graves queimaduras de um incêndio acidental em 1948, escreve em sete páginas o emocionante poema Noux Deux, Encore, depois recolhido pelo próprio autor e transformado numa obra clandestina, maldita. Cansado, levou o seu quotidiano em viagem, interrogou-se em Passages (1937-1950) : “Para quê viajar quando uma rima faz nivelar uma montanha, quando um adjectivo povoa um país, quando uma assonância faz oscilar a Terra inteira?”.

Descobriu os alucinogénios em 1956, sob controlo médico experimentou ópio, ácidos e mescalina, o principal alcalóide do peyote, produzindo através delas várias obras pictóricas e textos experimentais, vibrantes e minuciosos: L’Infini Turbulent (1957), Paix dans les Brisementes (1959), Connaissance par les Gouffres (1961) e Les Grandes Épreuves de l’Esprit (1969), Misérable Miracle (1972). Como Baudelaire, Quincey, Artaud, Cocteau, Huxley, Castañeda, Burroughs e tantos outros, buscou nas drogas a sensibilidade que habita fora dos limites da mente humana, descrevendo minuciosamente as suas sensações, pensamentos e movimentos que sentiu nas suas experiências. Carlos Castañeda, celebrizou o famoso cactos ao contar as suas experiências com Don Juan, que dizia que a mescalina ensinava a “maneira mais correcta de viver”. Artaud acreditava que com o peyote sabemos até “onde chegará o seu ser e até onde ainda não conseguiu chegar”. A droga na obra destes autores desvenda o real invisível como o verdadeiro real. Pelo peyote, os índios huichol libertavam-se dos seus pensamentos, dos seus atos (bons ou maus), desnudando-se de todo o seu eu para alcançar a liberdade pura do pensar. Ao achar concluídas as suas experiências, Michaux deixou as drogas por achar que “não estava feito para a dependência”.

A literatura híbrida de Michaux é pura entrega, êxtase, estertor interior. Tudo para dizer simplesmente que a vida está onde queremos, assim como no erro e na dúvida de cada entrega. Um jogo permanente entre a presença e a ausência, a ascensão e a queda, o circunstancial e o eu. Clássico das vanguardas, a sua obra é das mais originais do século XX. Este estranho poeta dizia que a poesia não é o verso, que está em toda a parte, e que o poema matava a poesia. Sem pertencer a qualquer escola literária, os seus inesperados textos usaram o simbolismo, o dadaísmo, o surrealismo, o existencialismo, o absurdo e fantasias irónicas e oníricas. Nem todos os lugares e povos que retratava nos seus livros são reais, muitos surgiram da sua imaginação com a precisão de um antropólogo, como os seres de Au Pays de la Magie (1941). Nele contou os costumes, os rituais e festas, o que pensam e como vivem os magos, os omobules, os ecoravetias, os nonais, os oliabares, os hivinizkis, os hacs, os emanglones e os meidosems (só para citar alguns). Com um certo humor negro, o poeta satiriza à maneira de Jonathan Swift a realidade da sociedade em que viveu. Uma veia fantástica poderosa, concentrando universos em pequenos fragmentos, imitando a realidade a partir de um mundo paralelo.
Reservado, esquivo, discreto, tranquilo e elegante, com vida social nula e poucos conhecidos, o poeta não dava entrevistas nem permitia ser fotografado, e a sua biografia, sem muitos dados concretos, só pôde ser feita através da sua correspondência privada. Nunca se considerou um literato e recusou receber o Grande Prémio Nacional de Letras, em 1965. Acreditava que a maioria das pessoas representava um papel, e que, geralmente, ele conseguia muito rapidamente arrancar essa máscara, provocando um desinteresse por elas. Franzino, de saúde frágil, naturalizou-se francês em 1955, e foi um homem sem limites geográficos, mentais ou linguísticos. Um extraordinário caso de um escritor indefinido. A sua literatura combina narração, prosa, descrição etnológica, poesia nada lírica e um certo humor surreal. Os seus textos são resultados de anotações, diários, cadernos, notas de viagem, descobrimentos, em que introduz a sua impressão pessoal, muitas vezes abstracta e simbólica. Um explorador de uma nova visão do mundo e dos seus seres. Morreu em Paris em 1984, sempre apoiado num certo desespero.



Principais obras:

Qui je Fus (1927)
Ecuador (1929)
Une Barbare en Asie (1933)
Voyage en Grande Carabagne (1936)
Plume / Lointain Intérieur (1938)
Au Pays de la Magie (1941)
Arbres des Tropiques (1942)
L’Éspace du Dedans – Pages Choisies (1944)
Épreuves, Exorcismes (1940-1944)
Ailleurs (1948)
Noux Deux, Encore (1948)
La Vie dans les Plis (1949)
Passages (1937-1950)
Mouvements (1951)
Face aux Verrous (1954)
L’Infinit Turbulent (1957)
Paix dans les Brisements (1959)
Connaissance par les Gouffres (1961)
Vents et Poussières (1962)
Les Grandes Épreuves de l’Esprit et les Innombrables Petites (1969)
Façons d’Endormi, Façons d’Éveillé (1969)
Misérable Miracle (1972)
Émergences, Résurgences (1972)
Moments,Traversées du Temps (1973)
Face à ce qui se Dérobe (1976)
Choix de Poèmes (1976)
Poteaux d’Angle (1981)
Chemins Cherchés, Chemins Perdus, Transgressions (1982)

Plume no restaurante

Estava Plume a almoçar no restaurante, quando o chefe-de-mesa se aproximou, olhou-o severamente e disse-lhe com uma voz baixa e misteriosa.
- O que o senhor tem aí no prato não vem na ementa.
Plume desculpou-se imediatamente.
- É que, como estava com pressa, não me dei ao trabalho de consultar a ementa. Pedi uma costeleta completamente ao acaso, pensando que talvez houvesse, ou que senão se havia de encontrar qualquer coisa parecida, mas preparado para pedir outra coisa se não houvesse costeletas. O empregado de mesa, sem se mostrar particularmente espantado, afastou-se e trouxe-ma um pouco depois e aí está...
Naturalmente, pagarei por ela o que for preciso. É um bom pedaço, não nego. Pago o seu preço sem hesitar. Se soubesse, teria de bom grado escolhido uma outra carne ou simplesmente um ovo, e de qualquer forma agora já não tenho muita fome. Vou já acertar as contas consigo.
Contudo, o chefe-de-mesa não se mexe. Plume fica extremamente inquieto. Passado algum tempo, levanta os olhos... hum! É agora o dono do estabelecimento que se encontra à sua frente.
Plume desculpou-se imediatamente.
- Eu não sabia - diz - que as costeletas não vinham na ementa. Não a consultei, porque vejo muito mal e não tenho aqui a minha luneta, e além disso, a leitura faz-me um mal terrível. Pedi a primeira coisa que me veio à ideia, e mais na esperança que me sugerissem outra coisa do que por gosto pessoal. O empregado de mesa, muito solícito sem dúvida, não foi mais longe, trouxe-me isto, e eu, de resto completamente distraído, comecei a comer, enfim.... vou pagar-lhe a si mesmo já que aqui está.
Contudo, o dono do estabelecimento não se mexe. Plume sente-se cada vez mais inquieto. Quando lhe estende uma nota, vê de repente a manga de um uniforme; tinha um polícia diante de si.
Plume desculpou-se imediatamente.
- Ora, ele entrou para descansar um bocado. De repente, gritaram-lhe à queima roupa: «E para o senhor?Vai ser...? - «Oh... uma imperial», diz ele. «E depois?...» gritou o empregado, aborrecido; então, mais para se desembaraçar do que por outra coisa: «Pois bem, uma costeleta!».
Já nem sequer se lembrava dela quando lha trouxeram num prato; mas uma vez que a tinha à sua frente, palavra que...
- Ouça, o senhor seria muito gentil se quisesse fazer qualquer coisa para arrumar este assunto. Aqui tem.
E estende-lhe uma nota de cem francos. Ouvindo passos afastando-se, já se considerava livre. Mas é então que o comissário da polícia se planta à sua frente.
Plume desculpou-se imediatamente.
- Ele tinha marcado um encontro com um amigo. Procurara-o em vão durante toda a manhã. Então, como sabia que o amigo passava por esta rua ao voltar do escritório, entrou aqui, sentou-se a uma mesa ao pé da janela e como, por outro lado, a espera podia ser longa e ele não queria ter ar de se furtar às despesas, pediu uma costeleta. Para ter qualquer coisa à sua frente. Nem por um momento lhe passou pela cabeça consumi-la. Mas, tendo-a à sua frente, maquinalmente, sem se aperceber minimamente do que fazia, pôs-se a comer.
É preciso que se saiba que por nada deste mundo ele viria a um restaurante. Ele só almoça em sua casa. É um princípio que ele tem. Trata-se neste caso de uma pura distracção, como pode acontecer a qualquer pessoa enervada, uma inconsciência passageira, nada mais.
Mas o comissário, depois de ter telefonado ao chefe de segurança, voltou-se para Plume, estendendo-lhe o telefone:
- Vá lá, explique-se de uma vez por todas. É a sua única hipótese de salvação.
E um agente, empurrando-o, brutalmente, disse-lhe:
- Vamos ver se agora nos portamos bem, hã?
E, quando começaram a entrar os bombeiros no restaurante, o dono do restaurante exclamou:
- Veja o prejuízo que isto é para o meu estabelecimento. Uma verdadeira catástrofe!
E apontava para a sala que todos os clientes tinham abandonado à pressa.
Os da Secreta, diziam-lhe:
- As coisas vão aquecer, estamos a avisá-lo. É melhor confessar toda a verdade. Este não é o nosso primeiro trabalho, pode crer. Quando se chega a este ponto é porque o assunto é grave.
Entretanto, um grande labrego de um agente, dizia-lhe por cima do ombro:
- Ouça, não posso fazer nada. São ordens. Se o senhor não fala ao telefone, dou-lhe um enxerto, percebe? Confesse. Está avisado. Se não o ouvir falar, dou-lhe um enxerto de porrada.



Henri Michaux
de Un Certain Plume
Antologia
Relógio d’Água, 1999
Tradução de Margarida Vale de Gato


O carrasco

Dada a fragilidade do meu braço nunca consegui ser carrasco. Nunca teria cortado um pescoço como deve ser, de maneira nenhuma. Nas minhas mãos, a arma letal deter-se-ia não apenas no obstáculo imperial do osso, mas também nos músculos da região do pescoço desses homens, tensos pelo esforço, pela resistência.
Porém, um dia, apresentou-se para morrer um condenado com um pescoço tão branco, tão frágil, que eles se recordaram da minha candidatura ao posto de carrasco, conduziram o condenado até à minha porta, e ofereceram-no para o matar.
Como o seu pescoço era esguio e delicado, poderia ter sido cortado como uma fatia de pão. Apercebi-me disso imediatamente, era verdadeiramente tentador. Contudo, recusei educadamente, sem esquecer de lhes agradecer vivamente.
Quase imediatamente depois, lamentei a minha recusa; mas era demasiado tarde, já o carrasco de serviço lhe estava a cortar a cabeça. Cortou-a naturalmente, como a qualquer cabeça, seguindo o costume que ele tinha com as cabeças, desinteressado, sem sequer ver a diferença.
Então, lamentei, tive pena, e censurei-me por ter recusado assim tão depressa, nervosamente e quase sem me dar conta.



Henri Michaux
de Entre Centre et Absence
Antologia
Relógio d’Água, 1999
Tradução de Margarida Vale de Gato


A metralhadora de bofetadas

Foi em família, como seria de esperar, que realizei a metralhadora de bofetadas. Realizei-a sem a ter premeditado. De repente, a minha cólera projectou-se para fora da minha mão, como uma luva de vento que tivesse saído dela, como duas, três, quatro, dez luvas, luvas de eflúvios que, espasmodicamente, e a uma velocidade incrível, se precipitaram das minhas extremidades manuais, lançando-se para o alvo, para a cabeça odiosa que atingiram sem demora.
Aquele espasmo repetido na mão era espantoso. Já não era, em verdade, uma bofetada, nem duas. Tenho uma natureza reservada e só me exalto no precipício da raiva.
Verdadeira ejaculação de bofetadas, ejaculação em cascata e aos sobressaltos, a minha mão permanecia rigorosamente imóvel.
Nesse dia, toquei a magia.
Um ser sensível teria visto ali qualquer coisa. Aquela espécie de sombra eléctrica brotando espasmodicamente da extremidade de minha mão, congregada e reformando-se num instante.
Para ser completamente franco, a prima que me tinha irritado acabava de abrir a porta e de sair quando, apercebendo-me bruscamente da vergonha da ofensa, respondi ao retardador com um voo de bofetadas que se escaparam realmente da minha mão.
Tinha descoberto a metralhadora de bofetadas, se assim o posso dizer, mas é o termo mais adequado.
Depois nunca mais pude ver aquela pretensiosa sem que, da minha mão, as bofetadas se lançassem como vespas ao seu encontro.
Esta descoberta compensou-me pelas odiosas palavras que me humilharam. É por isso que às vezes recomendo a tolerância no seio da família.



Henri Michaux
de Liberté d´Action
Antologia
Relógio d’Água, 1999
Tradução de Margarida Vale de Gato



A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se

O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita

O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende

E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta



Ana Hatherly
O Pavão Negro
Assírio & Alvim, 2003

A Adoração dos Magos

Aquela noite a três
foi como desenhar a maçarico
numa chapa de ferro
um vento fóssil, um vítreo monograma,
o rasto ao exceder o voo de uma carriça
cativo flutua no vidro de uma jarra.
Suspensos percorriam na polpa da vertigem
léguas sobre o abismo.
Pendentes do zinco da manhã
à espera do início
do seguinte espectáculo
dispersaram o sémen
nas chaminés da noite leprosa.
Nos terraços da luta percorreram
as danças mais funestas da ternura.
Num combinar astuto de referências
abriram-se os portais
e despediram galopes penitentes
os animais libertos
das tecidas mansões.


O unicórnio branco depôs sua cabeça
nos braços da senhora,
compadecida dama,
e lhe tocou fiando suas lãs
entre as unhas crivadas por metralha.
Sinto-lhes o assédio,
em cada joelho poisam
um queixo armadilhado,
a barba já cresceu desde o jantar.
«É a adoração dos magos» - murmuras tu –
fincando na ravina os dedos imanados
enquanto o tronco investe
a pele percorrida por venosas nascentes.
Olho por sobre um ombro
e surpreendo a treva
ofendida esgueirar-se
entre os dedos da porta.
O noctívago galgo
devora a escuridão às cegas no recinto.
Em breve a luz envolve
de opalinas unções as cabeleiras.
Iminentes desenham-se as saídas,
o croissant no prato, o garoto no copo,
o revestir a pele doutros fatos
a tragédia jazente nos horários.
Aquela noite a três foi sem remédio.



Fátima Maldonado
Os Presságios
Editorial Presença, 1983
a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca.
que língua,
que húmida, muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita
e la poésie, cést quand le quotidien devient extraordinaire, e que
_______________________________________música
que despropósito, que língua língua,
disse Maurice Lefèvre, e como rebenta na boca!
queria-a toda



Herberto Helder
A Faca Não Corta o Fogo
Assírio & Alvim, 2008
Quero um erro de gramática que refaça
na metade luminosa o poema do mundo,
e que Deus mantenha oculto na metade nocturna
o erro do erro:
alta voltagem do ouro,
bafo no rosto.



Herberto Helder

Ofício Cantante - Poesia Completa
Assírio & Alvim, 2009

Luz chamada dia treze

Cada coisa com seu nome.
Pão é pão; amor, espanto;
madeira, isso mesmo; primavera, pranto;
o céu, nada; a verdade, o homem.
Chamemos luz ao dia, embora se espante
quem diz “É terça hoje, ontem foi o S. Tomás
e amanhã é dia de festa”. Muito mais
verdadeira do que qualquer pronome
é esta luz que coalha o ar em dia!
Hoje é a luz chamada dia treze
de matéria de Maio e sol, digamos assim.
E se falamos de mim - dado que falamos,
de algo havemos de falar - digamos ainda:
paixão fatal, que cresce como árvore.



Angel González
Tradução A.M.

XVII

Estes são de facto os pensamentos de todos os homens em todas as épocas e lugares, não foram criados por mim,
Se não são teus tanto como meus, nada ou quase nada são,
Se não são o enigma e a solução, nada são,
Se não são igualmente próximos e distantes, nada são.
Esta é a erva que cresce onde houve terra e água,
Este é o ar comum que banha o globo.



Walt Whitman

Canto de mim mesmo
Assírio & Alvim, 1992
Tradução de José Agostinho Baptista

A nomear, sempre

A nomear, sempre:
a árvore, o pássaro em voo,
o rochedo avermelhado por onde passa
o rio, verde, e o peixe
no fundo branco, quando desce a noite
sobre as florestas.

Sinais, cores, é
um jogo, receio
que o resultado possa ser in-
justo.

E quem me ensina
o que esqueci? - O sono
das pedras, o sono
dos pássaros em voo, o sono
das árvores, a sua fala
anda pelo escuro -

Houvesse aí um deus
e incarnado
e que me pudesse chamar, eu andaria
por aí, eu esperaria
um pouco.



Johannes Bobrowski

Como um respirar: antologia poética
Livros Cotovia, 1990
Tradução de João Barrento

Dunas

Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor dos jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:
«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem».



Carlos de Oliveira
Trabalho Poético
Assírio & Alvim, 2003

Edgar Allan Poe

O inverno em Boston foi breve. Ele bebia. Sílabas abriam-se uma a uma pelos cantos do quarto. Gotas de álcool. Quem se lembra da chuva caída no seu nome?
Folheou toda a noite os livros ancestrais e encontrou qualquer coisa, ninguém sabe o quê, talvez o retrato de Annabel Lee. Esboçou-o na vidraça carregada de sombra e o quarto amanheceu.
«Mas isso pouco vale(diz a magia negra), o filtro apenas decompôs mais cedo o horror em luz, não alterou a solidão dos dias, que a noite separa uns dos outros para sempre.»



Carlos de Oliveira
Trabalho Poético
Assírio & Alvim, 2003

Como se a morte já a habitasse, a sala, o quarto, os móveis, uma es-tranha fixidez de tudo num ponto longínquo da memória. Havia em baixo um restaurante, nós íamos lá às vezes, jantei só. A sala estava quase deserta, enchia-se ao almoço, gente que trabalhava ali perto. Mas a minha solidão não era bem triste. Mais profunda, radical, o súbito terror do desamparo, o súbito rompimento das mil ligações invisíveis - se tu morresses. Era a instantânea evidência do refluxo a mim próprio de tudo quanto de mim ia à vida procurar um apoio, se não penso nele, mas ele está. Quanta coisa impensada nos sustém de pé, eu não sabia. Há um equilíbrio de nós próprios em mil finíssimos invisíveis sustentáculos, nós não sabemos. E de repente a rotura, como à pressa sem vontade, não me apetece passear, reentro em casa - se tu morres. Somos pois feitos da nossa ficção, uma fracção enorme de nós é propriedade dos outros, mas o que é estranho é que. Como é que tu estavas tanto na passagem de mim à vida? Subitamente a casa toda, os móveis, os puxadores das portas, não apenas aquilo em que estavas tu, mas até mesmo aquilo em que não estavas. Subitamente tudo me aparece impregnado da tua presença, pegado a ti, e tu não estás lá. Subitamente, um intervalo de mim às salas às portas às paredes. Eu dizia a mim mesmo que voltarias e a tua presença impregnaria tudo de novo, eu dizia, eu dizia - que é que no fundo de mim não acreditava? Xana podia ter ficado comigo, mesmo talvez com o seu preto Tobias, ela devia saber. Mas um filho é também uma nossa ficção, estou só. Tento ler, tento ouvir rádio, tenho uma pedra no crânio. Rígida nítida absoluta. Sem uma fenda por onde passe uma ideia estranha a ela. Os carros passam em baixo na avenida com o seu pânico. A cidade está toda acesa nas ruas, nas janelas, e é assim mais visível a sua auréola de loucura.



Vergílio Ferreira
para sempre
Bertrand Editora, 1999

Nem um verbo me move

Isto é uma natureza morta: o teu compasso
de espera, mênstruo,
contra o priapismo do cálamo.
Tenho velas de aço para os teus ventos
de papel, para a dispersão
dos vocativos. Eu queria estar mais contente
se soubesse haver razões para isso,
depor-te a aporia destes dias
e trabalhar com novas certezas.
Em vez disso skaters faíscam
no centro da minha passagem, no meio
da minha vida
e a sua navegabilidade incondicional
desliza nesta aspereza da retina.

E isto é classe média: o cancro
como solução final; um fecho de braguilha
não esconde o faro latejante dos cães,
a trovoada latente.
Sou o homem do tempo, sou o homem do tempo.
Ando a tentar segurar este grande
aguaceiro que previ, de capote ando
a tentar pospor o optativo
porque na boca levo o gosto do desgosto
e tão sensíveis as papilas ao seu gosto.
Sou o homem do tempo, sou o homem do tempo.
Nem um verbo me move
desta irredutibilidade em desejar.



Daniel Jonas
Os Fantasmas Inquilinos
Livros Cotovia, 2005

A falta saliente

Obstinadamente invisto contra uma corrente contrária
que obstinada investe contra mim uma musa
de saliente fala. Libertar-me bem queria mas não sei
se o medo se a circunstância se a melancolia
me treme quando só o lance resolvia, me limita
quando a imensidão pedia, me oxida o aço à porfia.
Tudo à volta me comprime numa mesquinha condição
e O’Neill às vezes não existem teu machado de língua afiada,
tuas ensinadas varinas de sinuosas varizes,
tuas empenadas narinas de empinados narizes,
às vezes O’Neill é só o vazio e suas raízes.

Obstinadamente busco um país que me maravilhe,
um país de maravilhas. Não esta portugalice do ali borda-se,
gato à janela, lindo postal, calçadas e motivos, velhos desdentes,
sim sim, já agora, num sei, sei lá, pois bem, já cá não mora.

Obstinadamente busco um país sem história para contar;
confiar que haverá uma mesa e um lugar
onde se perspectivem coisas depois do dia oblongo e da cidadela
tomada; essa mesa e esse lugar nem sequer meus.

Busco qualquer coisa outra coisa que não esse, isso. Busco

a tépida esfera, a plúmbea fonte ou afundar os dedos
num sôfrego e talvez abster-me na insistência
quando a dúvida fosse um sólido na tua cabeça
e já não houvesse tampões para o horror,
talvez sim então sim talvez abster-me.
Os teus poetas não me valem,
os teus poetas não se lhes dá que eu morra.
E esta pluma é um xamã que arde sem se ver
na mandíbula dorida de apertar a palavra,
inexistente sílaba da oclusão. Se houvesse
uma goteira a preservar da noite o cerrar do livro!
Se houvesse maneira de não morrer!

Insisto obstinada e dementemente busco um país.
Esqueço-me da corrente que acomete, falha a previsão
é um fusível, um grifo alcandorado nos cabos de alta tensão.
Penas pesadas as dos mitómanos: serem investidos
numa sociedade sem grifos
onde galifões beijam com saliva viperina
o lábio rubro do inocente efebo
e lambuzam a mordiscadela posterior
com desvelo clínico e libações ordinárias.
Este é o teu país O’Neill, que destrói as ondas e as praias
e descura feridas individuais de beijos sociais,

o mensageiro do amor que as vagas tala
a trazer-te a proposta disjuntiva sem saída:
se a cana do nariz intacta
então a cana de pesca partida.



Daniel Jonas
Os Fantasmas Inquilinos
Livros Cotovia, 2005

Lesbos

Mãe das volúpias gregas, dos jogos latinos,
Lesbos, de beijos lânguidos ou jubilosos,
Tão quentes como sóis, frescos quais melancias,
Ornamentando as noites e os dias gloriosos,
Mãe das volúpias gregas, dos jogos latinos,

Lesbos, lá onde os beijos são como as cascatas
Lançando-se sem medo em abismos sem fundo,
Correndo e soluçando em bruscas gargalhadas,
Tempestuosos, secretos, ferventes, profundos,
Lesbos, lá onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinés uma à outra se atraem,
Onde nunca ficou sem eco um só suspiro,
Como a Pafos, também as estrelas te admiram,
E Vénus, com razão, tem ciúmes de Safo!
Lesbos, onde as Frinés uma à outra se atraem,

Lesbos, terra das noites quentes, langorosas,
Fazendo com que ao espelho, ah, que estéril volúpia!
Donzelas de olhos vagos, amando os seus corpos,
Da sua puberdade acarinhem os frutos;
Lesbos, terra das quentes noites, langorosas,

Deixa o velho Platão franzir sobrolho austero;
Consegues o perdão com beijos incontáveis,
Terra nobre e amável, rainha do império,
E com esses requintes sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir sobrolho austero.

Consegues o perdão com o eterno martírio
Que as almas ambiciosas suportam sem tréguas,
Atraídas pra longe plo radiante sorriso
Vagamente entrevisto à beira de outros céus!
Consegues o perdão com o eterno martírio!

Que Deus irá ousar, Lesbos, ser teu juiz
E condenar-te a fronte, pálida do esforço,
Se com balanças de oiro não pesou o rio
De lágrimas que ao mar deitaram tuas fontes?
Que Deus irá ousar, Lesbos, ser teu juiz?

Que nos querem as leis do justo e do injusto?
Virgens de alma sublime, honra do Arquipélago,
A vossa religião, como outra, é augusta
E o amor rir-se-á do Céu e do Inferno!
Que nos querem as leis do justo e do injusto?

Pois Lesbos escolheu-me entre todos, na terra,
Pra cantar o segredo das virgens em flor
E desde a infância entendo esse negro mistério,
Desenfreada mistura de risos e choro;
Pois Lesbos escolheu-me entre todos, na terra.

E desde então vigio do pico leucádico,
Como uma sentinela com o olhar seguro,
Atenta dia e noite a veleiro ou fragata
Cujas formas, ao longe, atravessem o azul;
E desde então vigio do pico leucádico

Pra saber se as marés são indulgentes, boas,
E entre alguns soluços, que na rocha ecoam,
Uma tarde trarão pra Lesbos, que perdoa,
O adorado cadáver de Safo, que fora
Saber se as marés são indulgentes e boas!

Da masculina Safo, poeta e amante,
Pla triste palidez mais bela do que Vénus!
- O olho azul È vencido plo negro, essa mancha,
Ou círculo tenebroso traçado plas penas
Da masculina Safo, poeta e amante!

-Mais bela do que Vénus erguida no mundo,
Difundindo os tesouros da serenidade
E o esplendor da sua loira juventude
Nesse velho Oceano, com a filha encantado;
Mais bela do que Vénus erguida no mundo!

- De Safo, que morreu no dia da blasfémia,
Quando, insultando o rito e o culto inventado,
Fez do seu corpo belo o pasto mais supremo
De um bruto cujo orgulho puniu a impiedade
Da que morreu no dia da sua blasfémia.

E assim, é desde então que Lesbos se lamenta
E, apesar dos louvores que lhe tece o universo,
Embriaga-se, à noite, com o som da tormenta
Que ascende para os céus da sua costa deserta!
E assim, é desde então que Lesbos se lamenta!



Charles Baudelaire

As Flores do Mal
Assírio e Alvim, 1992
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Sem brilho, levado
todo para dentro, o olhar:

A sombra
dupla que um dia fui
divide-se
em duas, erguem-se
as alas da noite - agora vai,
palavra que estiveste tempo de mais no mundo, rola,
sai -

Com os olhos de uma criança, com
os olhos da sua mãe
encontro eu a minha segunda
a minha primeira
janela



Paul Celan

A morte é uma flor
Livros Cotovia, 1998
Tradução de João Barrento

Poema do homem novo

Niels Armstrong pôs os pés na Lua
e a Humanidade inteira saudou nele
o Homem Novo.
No calendário da História sublinhou-se
com espesso traço o memorável feito.

Tudo nele era novo.
Vestia quinze fatos sobrepostos.
Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo,
um colante poroso de rede tricotada
para ventilação e temperatura próprias.
Logo após, outros fatos, e outros e mais outros,
catorze, no total,
de película de nylon
e borracha sintética.
Envolvendo o conjunto, do tronco até os pés,
na cabeça e nos braços,
confusíssima trama de canais
para circulação dos fluidos necessários,
da água e do oxigénio.
A cobrir tudo, enfim, como um balão de vento,
um envólucro soprado de tela de alumínio.
Capacete de rosca, de especial fibra de vidro,
auscultadores e microfones,
e, nas mãos penduradas, tentáculos programados,
luvas com luz nos dedos.

Numa cama de rede, pendurada
da parede do módulo,
na majestade augusta do silêncio,
dormia o Homem Novo a caminho da Lua.

Cá de longe, na Terra, num borborinho ansioso,
bocas de espanto e olhos de humidade,
todos se interpelavam e falavam
do Homem Novo,
do Homem Novo,
do Homem Novo.

Sobre a Lua, Armstrong pôs finalmente os pés.
Caminhava hesitante e cauteloso,
pé aqui,
pé ali,
as pernas afastadas,
os braços insuflados como balões pneumáticos,
o tronco debruçado sobre o solo.

Lá vai ele.
Lá vai o Homem Novo
medindo e calculando cada passo,
puxando pelo corpo como bloco emperrado.

Mais um passo.
Mais outro.
Num sobrehumano esforço
levanta a mão sapuda e qualquer coisa nela.
Com redobrado alento avança mais um passo,
e a Humanidade inteira,
com o coração pequeno e ressequido,
viu, com os olhos que a terra há-de comer,
o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua, a bandeira da sua Pátria,
exactamente como faria o Homem Velho.



António Gedeão
Novos Poemas Póstumos
Edições João Sá da Costa, 1990

Lied nocturno

E, de repente,
chega a noite
como um óleo
de silêncio e mágoa.
À sua corrente me rendo
armado apenas
da precária rede
de truncadas lembranças e saudades
que vão insistindo sempre
em retomar o perdido
território do seu reino.
Como ébrios anzóis
rodam na noite
nomes, quintas,
certas esquinas e praças,
alcovas da infância,
caras do colégio,
campinas, rios
e raparigas
rodam em vão
no silêncio fresco da noite
e ninguém acorre à chamada.
Quebrantado e vencido
me resgatam os primeiros
ruídos da alba,
diários e insípidos
como a rotina dos dias
que não serão já
a primavera febril
que um dia nos prometemos.


Álvaro Mutis
Tradução A.M.
De veres o meu lugar. De me veres só
Apagando a luz do quarto cada noite
No escuro a respirar como um clarão.
De me veres do lado exterior
Muro, fenda no muro e sem força
Para esperar.
De te hospedares em mim. De descobrires
A posição da árvore fixa no crescimento
Da árvore que agora sou circulando com dificuldade
Do fruto cortado
Para ocupar as mãos.
De o veres empunhado como arma
Para afastar o medo.
De veres a casa. De estares à minha beira e no quarto ao lado
Vazio, no vazio búzio
De ocupares o vazio para o libertar.
De veres a pedra branca dos meus olhos
Seixo dos rins
Pedra polida de tanto rebentar
Primavera de si mesma.
De anunciares em silêncio
O nada que salva a minha mão perdida
Remo à superfície teimando contra
O peso da âncora de fechar os olhos
E inclinar
O corpo afogado.
De perdoares. Por ter-me apagado tão longe de te ser luz
De te ser lâmpada horas e horas, à noite
E no Inverno.
Da transparência que engana
A presença do mundo
Da obediência, da aceitação, do enjoo.
De poderes abrir a vida como quem abre a casa
Da casa que tu salvas com um sinal de sangue.
De poderes arrastar a mesa para o centro da cozinha.
De seres para ordenar colinas
Campo cultivado
Encosta e declive da minha vida cobrindo-se de erva.
De seres a bênção, o alimento e abundância
E vasto
Administrador de água em redor dos pés
Dos calcanhares, dos tornozelos
Mendigo, servo, milionário no milagre.
De acordares da espera
Da doença, arbusto que minga sem raiz
Da tua mão - a tua mão pode curar-me -
Pequeno movimento
De o seres às minhas redes
Bunho e bulir
Das folhas na paisagem.
Da casa na paisagem. Estou por terra e vejo já do alto
Com a saliva a saber-me
Ao bolor do chão.
De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse -
Apodrecendo a cadeira um odor da terra - como a tempestade -
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.



Daniel Faria
Poesia
Quasi edições

2

Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia
Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio
A minha casa - ela própria dava flor
Ela riscava nas folhas
Ela era grande mesmo quando a magnólia não crescia

Esta magnólia não é como a dela uma magnólia pronunciada
É uma magnólia de verdade a todo o redor - maior
E mais bonita do que a palavra.



Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo

Sei que não posso chamá-la das margens



Daniel Faria
Poesia
Quasi edições
Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de túneis e noites
Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes como pirilampos
___________________________________________[transformados
Borboletas rápidas - há esta imagem respirando

Pensativamente entro na viagem visível de uma intuição premeditada:
Que diferença faz à posição do meu corpo a rotação da terra? Vivo
Num único lugar

Às vezes ando descalço por uma linha encerrada
No corpo
Encostado ao ferro arrefecido pelas estações que passam. Pouca terra
Lhe é dada para poder germinar. Dentro da terra

Ou de uma veia cortada.
Faço às vezes o trajecto inverso do sangue
Medito encostado às pulsações mais amadas. Pouca terra me foi dada
Para calar sempre. E amo
Anónimo a luz transitória. O pulso interno de uma luz intermitente



Daniel Faria
Poesia
Quasi edições

Os bois e os livros

Os bois não sabem ler e também não fingem que sabem. É por isso que nunca ninguém viu nenhum boi com um livro debaixo do braço. Mas há gente que tem a mania de ligar os bois aos livros. Ouve-se às vezes dizer: aquele não conhece uma letra nem do tamanho de um boi. E um filósofo alemão, que usava uns enormes bigodes, afirmou certo dia que ler, ler bem, era verdadeiramente uma ruminação, que é o que os bois fazem depois de introduzir a comida na boca. E que é o que não faz a maioria dos que não são bois, isto é, os homens que lêem livros, Os bois não sabem ler e não gostam nem de ler nem de comer livros, esta é a verdade. Por isso andam a puxar carros de bois, a puxar charruas e quando vão às touradas andam a correr dum lado para o outro às marradas. Os homens que sabem ler, mesmo mal, que andam atrás ou à frente dos bois, conforme as circunstâncias, e que não vêem um boi doutra coisa chamam-se ribatejanos. Os meninos, a quem são dirigidas estas palavras de muita sabedoria, não devem imitar o analfabetismo dos bois nem os homens que andam atrás ou à frente deles. Não andar nunca à frente dos bois porque podem tropeçar e cair e serem pisados pelos bois, não andar atrás porque podem levar com os rabos dos bois na cara e, como já sabem ler, não querem com certeza voltar a ser analfabetos. Numa coisa, porém, devem imitar sempre os bois: na ruminação. E isto quer dizer: ler, ler bem, ler com os olhos e com o pensamento.



António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Parceria A.M.Pereira, 2003

Poder da Vontade

No princípio do ano contraí uma blenorragia. No fim de Setembro ela mantinha-se, pois sou de temperamento linfático. Continuava a existir, com um futuro de sinistras complicações.
Então, certo dia, num impulso irresistível, pus-me a recriar a mulher com quem tinha contraído a blenorragia. Recriei-a desde o início do nosso primeiro encontro, com os momentos mais insignificantes das nossas conversas, e passando por todas as fases da paixão mais sincera, levei-a até ao momento em que ia dar-se a união dos corpos, e então, nesse preciso momento, bati-lhe com o meu sapato, expulsei-a inexoravelmente da cama, abri a porta e pu-la lá fora.
Como a verdade histórica tem uma tendência natural para se reconstruir, essa mulher renascia a pouco e pouco com tudo o que era necessário para que a cena se desenrolasse normalmente. Mas eu expulsava-a regularmente. Lutei assim durante quinze dias. Ao décimo sexto, vendo que tudo era inútil, e cansada de todas aquelas vergonhas, ela foi-se embora antes de eu lhe bater.
Nessa mesma noite, fiquei curado. O pus deixara de correr, e não houve qualquer recaída.



Henri Michaux
As Minhas Propriedades
Fenda, 1998
tradução de José Carlos González

Dois rios

O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse
ao mesmo tempo num só barco por dois rios.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Rios

Aqui, onde o vemos
correr, o rio mais não é que uma cortina, por trás
da qual corre outro rio. O
que no primeiro se reflecte
no outro transfigura-se.

Desprende-se o primeiro
do plano a que os sentidos o
mantêm agarrado, para assim
melhor entrar na alma, de cuja
incerta superfície faz as margens.
Disto isto doutra forma: assenta-nos
as margens na aspereza
da alma, a cujas reetrâncias
(já dizia o Pessoa) o sol não chega.

Mas nem ele é preciso. Uma só vela
nas trevas basta
para que o rio se ilumine
desde a foz à nascente.

É esse rio, idêntico a uma porta
que existe só por dentro e que por fora
foi já toda comida pelas trevas, que
nos serve de metáfora do tempo
(só o outro é literal)
e, tal como nas trevas - onde as ervas
e as flores são invisíveis -
o aroma verdeja, assim

o tempo, escoando-se, adquire
a cor da erva: e ontem, hoje
e amanhã mais não são do que tantos outros tons de
verde
que bovinamente a alma saboreia.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

II

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
Mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.



António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

Um gesto

«Que cansativa que a polícia é!» suspirou Matilde, fechando a janela. Depois, sorrindo do seu próprio comentário, deu dois passos no aposento e relanceou os olhos pelo espelho, que a penumbra como que apagara. Foi aí que se lembrou de uma mulher que vira três ou quatro dias antes, ao volante de um carro que parara junto do seu, esperando que o sinal abrisse. Aproveitando aqueles breves momentos, a mulher mirava-se no retrovisor e, depois de levar um dedo aos lábios e o molhar com a língua, passara-o pelas sobrancelhas. Matilde puxou uma cadeira para o centro da sala e sentou-se, sem conseguir deixar de pensar naquele gesto, à luz do qual todos os móveis que a cercavam pareciam ganhar raízes no seu espírito. São gestos assim que encorpam a vida, que lhe dão espessura, pensou ela. Tinha a certeza de que, enquanto se lembrasse daquele gesto e da mulher que o executara, o instante em que o captara continuaria a existir tal como ela naquele preciso momento existia ali, naquela sala, deliberadamente alheada do aparato policial montado nas ruas adjacentes, devido a uma qualquer concentração perfeitamente inócua e que só no caso de nas próximas horas nada haver no mundo digno de atenção mereceria umas escassas linhas nos jornais do dia imediato. Que peso teria aquela manifestação em comparação com o gesto da mulher que passara o dedo, molhado de cuspo, pelas sobrancelhas? Saberiam aqueles homens armados até aos dentes e distribuindo barreiras de arame farpado ao longo da avenida que o que eles supunham ser «este momento» amanhã já não teria existido? As feições da mulher haviam começado, é certo, a diluir-se-lhe na memória, onde, de resto, o automóvel em que ela se encontrava e mesmo o seu cabelo já não tinham qualquer cor. Talvez esses pormenores funcionassem como catalizadores e contribuíssem para que o instante em que Matilde a entrevira através dos vidros dos dois carros se perpetuasse para além da sua contingência. Mas não. Matilde estava certa de que isso não importaria. Fosse a mulher loira ou morena, gorda ou magra, o que na realidade havia de marcante é que levara um dedo à boca e às sobrancelhas e que, sem disso poder ter tido consciência, colocara assim, ali, um travão no tempo, dando consistência a qualquer coisa sobre a qual os nossos gestos normalmente não produzem mais efeito que os de quem se industriasse a desenhar cruzes na água.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Um céu de funcionários

Apetecia-lhe escarrar a alma contra o pára-brisas, para que esse escarro ficasse a boiar na solidão, a fazer corpo com ela, e aí se diluíssem os traços fisionómicos de todos os transeuntes. «Uma aberta», implorou mentalmente, «uma aberta», como se as nuvens lhe entrassem na garganta e a névoa o sufocasse. Ao aguardar vez para entrar num dos grandes eixos da cidade o aroma pisado a ervas trouxe-lhe dum tímido canteiro o primeiro sinal da primavera. Aspirou-o como se o esgotasse, como se tudo o que naquelas ervas houvesse de fragrância dentro de si pudesse fazer corpo com os olhos, os ouvidos e o palato. «Consubstanciação», pensou, «transubstanciação». Subitamente sucederam-se parkings, estações de serviço, anúncios de escritórios, versiekerung, na própria treva que os portais bolçavam havia algo de estagnado, amarelado, a luz seguia algures o seu percurso, sentia a vida nos escapes dos camiões como se ao meterem as mudanças os condutores metessem outra realidade, era pelo menos essa a sensação que dava quando ouvidos na distância. Num carro ao lado beijavam-se dois heterossexuais aproveitando mais uma paragem forçada, semáforo ou novo engarrafamento.
O que do almoço lhe restava na lembrança era mais real do que o que dele trazia no estômago, rua após rua, esquinas, travessas sucedendo-se às avenidas, gruas subitamente hieráticas, totémicas, um escarro, a luz tornado a solidão tangível, luz onde as janelas se rasgam como coisas vivas, como se por trás delas houvesse água, poços onde a treva fermentasse, de uma janela aberta chegaram-lhe aos ouvidos duas ou três notas de um piano, duas ou três notas musicais onde um vida inteira se poderia cifrar, bastaria que para tanto se encontrasse uma forma, um estilo (diria o poeta), algo que nos seus moldes contivesse o esparramar da vida. Ia chegando atrasado, disso não havia a menor dúvida.
Como se algures, num plano que ele apenas intuía, a luz rodopiasse velozmente, sorvida por um invisível ralo que ele trouxesse dentro do seu espírito.
Um céu de funcionários.



Luís Miguel Nava

Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

[circular de adeus] [trinta de janeiro. os nomes vazios]

não sei se alguma vez viste a morte
crescer no corpo de alguém

sobe lenta como se fossem as escadas
a chegar-te depressa

ou a memória como uma coisa viva
e impalpável como uma fotografia



Pedro Sena-lino
deste lado da morte ninguém responde
Quasi Edições, 2005
«Assentemos em poucas linhas como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos, em que viveu feliz; está dito. Reparo depois que tinha nascido mau: fatalidade extraordinária! Ocultou o seu carácter enquanto pôde, durante um grande número de anos; mas, por fim, por causa desta concentração que lhe não era natural, todos os dias o sangue lhe subia à cabeça; até que, não podendo mais suportar tal vida, se atirou resolutamente para a carreira do mal... doce atmosfera! Quem diria que, ao beijar uma criança de rosadas faces, gostaria de arrancar as bochechas à navalha, e que muitas vezes o teria feito, se a Justiça, com seu longo cortejo de castigos, o não tivesse impedido sempre! Não era mentiroso, ele, confessava a verdade e dizia-se cruel. Humanos, ouvis? Ele ousa repeti-lo com esta pena que treme. É, assim, um poder mais forte que a vontade... É maldição! Quereria a pedra subtrair-se às leis da gravidade? Impossível. Impossível o mal querer aliar-se ao bem. Era o que eu estava a dizer.»



Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont

Cantos de Maldoror
Moraes Editores, 1969
Tradução de Pedro Tamen

lá fora

Já te aviso, lá fora
ladram cães,
e um espelho contempla
gelado a tua cabeça.
Não abras o estanco,
não abras,
vamos fingir outra vez
que aqui não há luz,
que estamos mortos.



Violeta C. Rangel
Tradução A.M.

Laranja cor de sangue

Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.

Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.



Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

Álgebra no início da noite

A louca prosseguia desenhando Xs
Com um pau de giz escolar
Nas costas de pares inadvertidos,
De mãos dadas rumo a casa.

Era inverno. Já escurecera.
Não se conseguia ver-lhe a cara,
Embuçada como estava e furtiva
Como se fosse levada pelo vento, com asas de corvo.

O giz ter-lhe-ia sido dado por uma criança.
Tentava-se descobri-la na multidão,
Esperando que fosse muito séria, muito pálida



Charles Simic
Previsão de Tempo para Utopia e Arredores
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

Meu pai era daniel

O que pensei primeiro foi:
morreu sozinho
(o melhor bálsamo
para a culpa
é acompanhar na morte)


Depois pensei:
não me voltou a ligar
depois do meu último telefonema
(jamais reflectimos
que o desejo de independência
também pode ser hereditário)


E depois ainda: já não tenho pais
(e ao olhar para trás descobri
que há muito tempo
nenhuma mão
me segura a bicicleta para eu montar)


Agora não posso deixar de pensar:
pai, eu não estou morta
mas também perco muita coisa.


Já não estou chateada contigo.
De cada vez que penso em ti
é domingo de manhã.
Levas-me aos ombros
e eu sei que vais comprar-me
um batido de chocolate
no bar do balcão de zinco.
Depois a tua mão grande há-de abrir-se,
diante dos meus olhos, e mostrar-me o tesouro:
uma carica de mirinda e outra de pepsi.


Quarenta anos para descobrir
que estava já tudo dito ali.



Ana Pérez Cañamares
Tradução A.M.

Postal de natal de uma puta em minneapolis

Olá Charley, estou grávida
E a viver na rua 9
Mesmo por cima de uma livraria nojenta
à beira de Euclid Avenue
Deixei de meter droga
E parei de beber whiskey
O meu homem toca trombone
E trabalha no caminho de ferro

Ele diz que gosta de mim
Ainda que o bebé não seja dele
Diz que o vai criar como a um verdadeiro filho
Ofereceu-me um anel que a mãe costumava usar
E sai comigo pra dançar
Todos os sábados à noite

E Charley, penso sempre em ti
Todas as vezes que passo numa bomba de gasolina
Por causa da brilhantina que usavas o cabelo
E ainda tenho aquele disco de Little Anthony e os Imperials
Mas roubaram-me o gira-disco
O que é que se há-de fazer?...

Olha Charley, quase dei em doida
Quando o Mário foi de cana
Por isso voltei para Omaha
Para viver com os meus velhos
Mas toda a gente que conhecia
Ou morreu ou estava presa
Então voltei para Minneapolis
E desta vez penso que vou ficar por cá

Sabes Charley, pela primeira vez desde o acidente
Parece-me que sou feliz
Só queria ter agora todo o dinheiro
Que costumávamos gastar em droga
Comprava um parque de carros usados
E não vendia nenhum
Para usar um diferente em cada dia
A condizer com a maneira como me sentiste

Oh Charley, por amor de Deus,
Queres saber toda a verdade?
Não tenho nenhum marido
Ele não toca trombone
E preciso de dinheiro emprestado
para pagar ao advogado
E olha Charley, devo sair com pena suspensa
No dia de S. Valentim.



Tom Waits
Nocturnos
Assírio & Alvim, 1989
Tradução de João Lisboa