Tudo o que da luz
desce e antigo finda
na saliva da voz,
guerras do orvalho
na manhã dos meses,
águas pelo musgo,
janelas com sol,
tudo nos falseia,
nos lança do centro
onde o corpo dorme.
Já sem o repouso,
o esquecimento,
os olhos fechados
para te não ver.
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
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Quando a sair da juventude
Quando a sair da juventude, um dia separam-se. Nunca mais se viram. Apenas jeitos do corpo um do outro guardaram. Devem ter morrido pouco tempo depois, talvez junto de um rio, talvez junto da água a memória perdoe. As luzes fogem, encontram-se muito ao longe, ignoradas de homens para outros homens prontos a morrer sem saber a quem chegarão as suas verdades, sua solidão, os restos azuis das chamas.
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
2
Em luz fluorescente de café de bairro
tormentas de semana cobrem as cadeiras,
Cinco minutos de atraso, eis, aparece
com a mala a tiracolo dos avia-te.
Ao fim de argamassar-me em alvos, do coldre
do convite saca de rajada: para con
selheiro numa estatal de cultural.
«Vamos ajudar os novos que não têm
onde publicar os seus poemas.» Sofisma
que repete em cada geração um deles
a aspirar a Eliot de segundas vias
com Faber à medida de uns sonetos.
Uma tosta com queijo crepitava nos dentes
cambados duma óbvia funcionária.
Calças com lustro iam-se do balcão
de ombros lassos para quem sabe onde.
Sussurei-lhe com ritus enervado
que novos só os que vêm sem ficheiro
no grude comercial das confrarias.
E paguei as bicas por alma de quem lá tinha.
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
tormentas de semana cobrem as cadeiras,
Cinco minutos de atraso, eis, aparece
com a mala a tiracolo dos avia-te.
Ao fim de argamassar-me em alvos, do coldre
do convite saca de rajada: para con
selheiro numa estatal de cultural.
«Vamos ajudar os novos que não têm
onde publicar os seus poemas.» Sofisma
que repete em cada geração um deles
a aspirar a Eliot de segundas vias
com Faber à medida de uns sonetos.
Uma tosta com queijo crepitava nos dentes
cambados duma óbvia funcionária.
Calças com lustro iam-se do balcão
de ombros lassos para quem sabe onde.
Sussurei-lhe com ritus enervado
que novos só os que vêm sem ficheiro
no grude comercial das confrarias.
E paguei as bicas por alma de quem lá tinha.
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
Ouvem-se os motores indo no mar.
Os nomes que me davam amigos de passagem
cresceram na sua areia os cardos.
Esta ficção da paz a minha vida.
Toda a noite um toro arde sem ninguém.
Os mortos passam nas janelas, vêm
ver-me, sou um animal a que fazem festas
debruçados sobre os vidros, sobre a beira da casa.
Um dia seguirei ao seu encontro
lançando o pião empurrando o arco
fingindo voltar ao que está perdido.
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
Os nomes que me davam amigos de passagem
cresceram na sua areia os cardos.
Esta ficção da paz a minha vida.
Toda a noite um toro arde sem ninguém.
Os mortos passam nas janelas, vêm
ver-me, sou um animal a que fazem festas
debruçados sobre os vidros, sobre a beira da casa.
Um dia seguirei ao seu encontro
lançando o pião empurrando o arco
fingindo voltar ao que está perdido.
Joaquim Manuel Magalhães
Alguns Livros Reunidos
Contexto, 1987
Era como estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ter.
Joaquim Manuel Magalhães
Uma Luz com um Toldo Vermelho
Editorial Presença, 1990
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ter.
Joaquim Manuel Magalhães
Uma Luz com um Toldo Vermelho
Editorial Presença, 1990
De pedra em pedra
a fuligem do musgo,
a grafite garrotada
dos abetos, do silêncio.
Traz a bruma para casa
como no lume um anel.
Eu ouvia a tempestade,
nosso longe derradeiro.
E partilhei na ordem dos teus sonhos
a desordem das tuas orações.
Entre nós e a distância
a placidez ondulante da terra,
cárceres, a minha eira,
o convulso clarão do olhar.
Joaquim Manuel Magalhães
Uma Luz com um Toldo Vermelho
Editorial Presença, 1990
a fuligem do musgo,
a grafite garrotada
dos abetos, do silêncio.
Traz a bruma para casa
como no lume um anel.
Eu ouvia a tempestade,
nosso longe derradeiro.
E partilhei na ordem dos teus sonhos
a desordem das tuas orações.
Entre nós e a distância
a placidez ondulante da terra,
cárceres, a minha eira,
o convulso clarão do olhar.
Joaquim Manuel Magalhães
Uma Luz com um Toldo Vermelho
Editorial Presença, 1990
Acendimento
Seria bom sentir no quarto qualquer música
enquanto nos banham os perfis ateados
pelo aroma da tília, sem voz, em abandono.
A entrada por detrás das ruas principais
onde a morrinha parece que nem molha
e se chega perdido onde se vai.
Não, não é só um beijo que te quero dar.
Quantas vezes nesta hora de desvalimento
vejo orion e as plêiades devagar no céu de inverno.
Mas hoje
com a calma inesperada de chuvas que não cessam
acordo já depois. Caí numa hibernação que não norteia
o desequilíbrio do sentimento.
Espelhos sem paz tocam-nos no rosto.
Na cega mancha de roupagem aconchego
cada intempérie com sua mentira
e depois sigo pela torrente, pelo enredo
dos outeiros, cada espelho continua
a caução pacificadora do engano.
É isso que te levo, isso que me dás
quando dizes, já sem o dizeres, eu amo-te.
Pela berma da humidade cerrada
um risco de mercúrio trespassa.
Na gravilha passos que não há
esmagam a música que ninguém escuta.
Sabiam de cor tudo o que falhava,
a insónia repentina, o entorpecimento.
Ouve a espessura dos nervos, a sua câmara
de conchas escavadas, a roseira azul do vime,
pastos químicos que transformam
o gradeamento acolhedor detrás do cérebro
na fauce lacerada
por onde o alibi imóvel parece fugir.
Ao lado cantam os arpões.
Eu passo com as mãos no seu cabelo.
E o passado é um tempo que não passa
em cada uma das dores que me pertence
e me roubaram.
Aquele que tem fome desconhece
o alimento, pede apenas folhas,
a farinha de um vestuário com uso
e desmedido.
Mas o que sempre comeu
não sabe os caminhos que sangram
e um dia a morte só lhe trará terror.
Acordei cansado com os sonhos.
O rosto que foi amado e se perdeu
cintilava na roldana de corrente cega,
a floresta em carvão acorrentava
o pavor agrícola da pobreza,
e dentro do sonho um sonho mais disforme
mãos que sabiam sempre agarrar tudo
o que não fosse qualquer outra mão.
Sorria para o asfalto. Com o casaco
desabotoado e o embrulho em cima da carrinha.
As nuvens corriam pelo chão de aguaceiro.
Findavam para si minúsculas assombrações.
Correu a mão sobre a testa, ergueu
o cabelo que fervia.
Vi-o inclinado sobre nada,
o pó fazia goma nos seus pés,
estava eu defrontado com um vulto
entregue à felicidade.
Quando me viu levou o embrulho
para o banco de trás e trancou as portas.
Tinha a cara azul, os olhos de vinho antigo,
fez-me um sinal desconhecido
antes de reabrir a porta e me fechar
na cidade inteira onde já não existia.
Um fato de flanela cai muito bem
numa tez esguia, batida pela neblina.
Cortei-lhe as calças com a lâmina pequena
e guardei a maior para a suavidade tardia
junto do empedrado
onde num clamor sem verdade
o morto caminho de volta diz
tristes de todas as coisas.
Os braços por cima do seu tronco
a lua nova as constelações o ruído da terra
um vivo círculo mortal em seu redor.
Joaquim Manuel Magalhães
Alta Noite em Alta Fraga
Relógio d´Água, 2001
enquanto nos banham os perfis ateados
pelo aroma da tília, sem voz, em abandono.
A entrada por detrás das ruas principais
onde a morrinha parece que nem molha
e se chega perdido onde se vai.
Não, não é só um beijo que te quero dar.
Quantas vezes nesta hora de desvalimento
vejo orion e as plêiades devagar no céu de inverno.
Mas hoje
com a calma inesperada de chuvas que não cessam
acordo já depois. Caí numa hibernação que não norteia
o desequilíbrio do sentimento.
Espelhos sem paz tocam-nos no rosto.
Na cega mancha de roupagem aconchego
cada intempérie com sua mentira
e depois sigo pela torrente, pelo enredo
dos outeiros, cada espelho continua
a caução pacificadora do engano.
É isso que te levo, isso que me dás
quando dizes, já sem o dizeres, eu amo-te.
Pela berma da humidade cerrada
um risco de mercúrio trespassa.
Na gravilha passos que não há
esmagam a música que ninguém escuta.
Sabiam de cor tudo o que falhava,
a insónia repentina, o entorpecimento.
Ouve a espessura dos nervos, a sua câmara
de conchas escavadas, a roseira azul do vime,
pastos químicos que transformam
o gradeamento acolhedor detrás do cérebro
na fauce lacerada
por onde o alibi imóvel parece fugir.
Ao lado cantam os arpões.
Eu passo com as mãos no seu cabelo.
E o passado é um tempo que não passa
em cada uma das dores que me pertence
e me roubaram.
Aquele que tem fome desconhece
o alimento, pede apenas folhas,
a farinha de um vestuário com uso
e desmedido.
Mas o que sempre comeu
não sabe os caminhos que sangram
e um dia a morte só lhe trará terror.
Acordei cansado com os sonhos.
O rosto que foi amado e se perdeu
cintilava na roldana de corrente cega,
a floresta em carvão acorrentava
o pavor agrícola da pobreza,
e dentro do sonho um sonho mais disforme
mãos que sabiam sempre agarrar tudo
o que não fosse qualquer outra mão.
Sorria para o asfalto. Com o casaco
desabotoado e o embrulho em cima da carrinha.
As nuvens corriam pelo chão de aguaceiro.
Findavam para si minúsculas assombrações.
Correu a mão sobre a testa, ergueu
o cabelo que fervia.
Vi-o inclinado sobre nada,
o pó fazia goma nos seus pés,
estava eu defrontado com um vulto
entregue à felicidade.
Quando me viu levou o embrulho
para o banco de trás e trancou as portas.
Tinha a cara azul, os olhos de vinho antigo,
fez-me um sinal desconhecido
antes de reabrir a porta e me fechar
na cidade inteira onde já não existia.
Um fato de flanela cai muito bem
numa tez esguia, batida pela neblina.
Cortei-lhe as calças com a lâmina pequena
e guardei a maior para a suavidade tardia
junto do empedrado
onde num clamor sem verdade
o morto caminho de volta diz
tristes de todas as coisas.
Os braços por cima do seu tronco
a lua nova as constelações o ruído da terra
um vivo círculo mortal em seu redor.
Joaquim Manuel Magalhães
Alta Noite em Alta Fraga
Relógio d´Água, 2001
Que por ti perdi
O mar dentro da árvore, as nuvens
dentro da terra sem fim,
a luz. A luz dentro doutra luz
que limitava as mãos e as abria
para outras mãos dentro de um olhar.
Batem na fornalha os ventos.
Um cálice de vidro grosso com o licor
de fermentação caseira. Um prato
com avelãs e nozes e folhas de medronho.
Nas margens as portadas corridas
ganham um halo de candeeiros de rua
que se difunde na fluorescência do televisor,
na palidez rubra das pequenas luzes do rádio.
A última claridade do dia mistura-se
à primeira da noite.
Este vento na auto-estrada onde rebenta a chuva
não me vai forçar o coração; nem estas sebes
ladeadas de cimento suspenderão o voo
do que sou até ao que não és. Mas será
a carícia que no cinto treme, o calor do pescoço
descoberto, os vimes da cadeira donde te levantas
quando estou quase para me sentar.
Entre veios de relva desigual,
valados por cuidar abrigam
máquinas de desolação.
Formações de patos atravessam
o vidro polido do postigo.
O dia bate no jornal pousado
sobre a manta castanha que prende
os joelhos no silêncio de interior.
Outras vezes, as persianas já corridas,
um globo de lona ilumina o livro
na pequena mesa, um arame de flores
pendurado numa trave e o armário
com os objectos de estanho e meditação.
A vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo,
um fumo que sobe durante a noite sobre os mapas
enrolados na parede despida, há tanto nos esquecemos
de os desdobrar, de por eles chegar aos confins
do nosso mundo. E já estamos a desaparecer.
Joaquim Manuel Guimarães
As Escadas não têm Degraus
Livros Cotovia, 1990
dentro da terra sem fim,
a luz. A luz dentro doutra luz
que limitava as mãos e as abria
para outras mãos dentro de um olhar.
Batem na fornalha os ventos.
Um cálice de vidro grosso com o licor
de fermentação caseira. Um prato
com avelãs e nozes e folhas de medronho.
Nas margens as portadas corridas
ganham um halo de candeeiros de rua
que se difunde na fluorescência do televisor,
na palidez rubra das pequenas luzes do rádio.
A última claridade do dia mistura-se
à primeira da noite.
Este vento na auto-estrada onde rebenta a chuva
não me vai forçar o coração; nem estas sebes
ladeadas de cimento suspenderão o voo
do que sou até ao que não és. Mas será
a carícia que no cinto treme, o calor do pescoço
descoberto, os vimes da cadeira donde te levantas
quando estou quase para me sentar.
Entre veios de relva desigual,
valados por cuidar abrigam
máquinas de desolação.
Formações de patos atravessam
o vidro polido do postigo.
O dia bate no jornal pousado
sobre a manta castanha que prende
os joelhos no silêncio de interior.
Outras vezes, as persianas já corridas,
um globo de lona ilumina o livro
na pequena mesa, um arame de flores
pendurado numa trave e o armário
com os objectos de estanho e meditação.
A vida acumulou-se em roldanas ao redor de tudo,
um fumo que sobe durante a noite sobre os mapas
enrolados na parede despida, há tanto nos esquecemos
de os desdobrar, de por eles chegar aos confins
do nosso mundo. E já estamos a desaparecer.
Joaquim Manuel Guimarães
As Escadas não têm Degraus
Livros Cotovia, 1990
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