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XXI

Caído está o corpo sobre a tábua
do chão, em drama
sobre si mesmo o corpo
a perna flectida sobre a outra
os braços sob o torso não os vejo

se foi herói e desejou os oceanos

as veias, os tendões desenham a
harmonia de um dos pés, o sexo
encerram as pernas em escura concha

não há-de ser tal qual a gente deste
mundo

e o rosto oculto, somente o negro
dos cabelos, espesso negro cobre a
esfera do crânio
rasga a sua sombra o pano do
chão onde contido está

doce animal em abandono. Que
nome vazio guardam os seus caminhos
de água e sangue?


João Miguel Fernandes Jorge
Mãe-do-Fogo
Relógio D`Água, 2009

XX

Alguém o viu na última estação da
linha do oeste, quando o norte se perde
de destino. Enviaram gente à sua procura,
saíram do comboio no primeiro apeadeiro antes
do inverno; estavam bêbados; esquecidos

do seu nome. Não ficara nem uma alma no cais.
Ausentou-se no tempo. Gentil-homem pelo fim
da Renascença. Colete justo de veludo
junto ao pescoço estreita gola rendada. Cabelo
revolto, barba cerrada a expressar o desejo de

um fio de prata. Vazou água num copo de vidro
grosso, facetado, feito aos dedos. Humedeceu
os lábios primeiro e bebeu de seguida. Era como
se não respirasse. Único ruído, o dos seus passos
sobre o saibro; nem o canto sequer de um pássaro.

Antes de cair a noite chegou ao cenotáfio de
ferro ao fim do jardim. A erosão do terreno extraía
múltiplas raízes. As plantas secavam. Os animais
domésticos morriam. O copo de faces que se fazia
aos dedos ficou sobre a mesa de pedra. Fora de

todo o tempo esperava; mas em vão
coisa alguma existia nessa praça maior. Atrás de si
batia um porta de damasco verde.


João Miguel Fernandes Jorge
Mãe-do-Fogo
Relógio D`Água, 2009
Junho
o inimigo dos cinzentos céus
d'inverno.
A quietude do campo
a tarde
sem vento, sem uma ferida.

Esta clareira ao sul do Tejo
a vida de junho
no enquadramento das altas
portas, abre
sobre a praça
a casa,
a alfazema esmagada

os teus passos a tua sombra
a tua sombra iniciada
sob o lado maior deste claustro
repete
a quase noite,
a ainda poeira da tarde.



João Miguel Fernandes Jorge
Pelo Fim da Tarde
Quetzal Editores, 1989
Sinais que pronuncio justos o
corpo desta morte.

Da manhã
a regra o canto a ordem
o próprio sol

são raros os caminhos
quando a manhã é coisa útil.

João Miguel Fernandes Jorge
À Beira do Mar de Junho
Na Regra do Jogo, 1982

Outubro, outono de 1993

O forte traz bandeiras hasteadas
no seu corpo de ruína
e o pano das muralhas,
papel de grave e negro vinco rompe
o céu e o mar - o mar, azul
inferno, vence na placidez
outonal os limites do Carvoeiro e
a nevoada Berlenga. A cruz do adro
foi apeada. Resta do cruzeiro
esboroada pela pedra. Primeiro
anunciaram a morte de deus - e
deus deixou-se morrer. Depois
mataram o rei - e o rei deixou-
-se matar.
Amanhã
o que irá acontecer ao azul do céu e
.......................................do mar?
Haverá sempre quem cante
quem morra de outra maneira.



João Miguel Fernandes Jorge
O Barco Vazio
Editorial Presença, 1994

Um castelo no mar

Depois destes dias de chuva
maio abandonou-te à preguiça
do sol.
Procuraste a distante cadeira
do jardim
longe de qualquer sombra,
cedeste a um tempo insidioso
que convence o esquecimento
do teu corpo
destruído, desmoronado, caído
roída de pedra de um castelo
no mar.
Alegras-te na vadiice de
quem mais uma vez descobre
as horas tardias do verão e
deixas os pés, descalços,
sentirem de uma forma desamada
os mínimos cristais da terra.
E os teus lábios dão-te a
arte ardilosa da pergunta
para que serve, ainda, a força
do corpo senão para cortar?



João Miguel Fernandes Jorge
O Barco Vazio
Editorial Presença, 1994