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vago pressentimento

Para Ana Paula Inácio

A minha vida é este inferno:
enumerar, estar sentado, escrever.
O encontro de duas faltas, a ficção
desse por exemplo mais: ignorar,
aprender: a beleza, o medo,
o amor.



Carlos Bessa
Em partes iguais
Assírio & Alvim, 2004

Viver outras vidas

É extraordinário que duas pessoas
como nós, cuja vida decorre entre as divisões
de um paralelepípedo, se divirtam
tanto com esses objectos que acumulam pó,
ocupam espaço e exigem tempo, muito
tempo. Melhor seria andar por aí, sem rumo
e miserabilismo, apenas para que
as horas fossem como o mel ao cair, fio
suave e dourado que nos levaria até
à cama para um sono tranquilo. Mas não.
Deu-nos para, crianças ainda, procurarmos
um canto com sossego e luz e aí dar
início à pior das companhias: viver
outras vidas. Inevitavelmente, chega o
dia em que, por catarse ou desfastio,
se ensaiam papéis, uma ou outra anedota,
um sorriso, que outros, como nós, procurarão.
Parcos comprimidos, os testemunhos e restos
banais dessa meteorologia a que
chamamos dúvidas, angústia, a nossa vida.



Carlos Bessa
Em Partes Iguais
Assírio & Alvim, 2005

Felicidade

Acorda com as mãos em concha
a defender a sombra onde fez casa
e permanece sentado. Os dias passam
na sua claridade e ele, imóvel,
doente de palavras, não as suporta,
não servem para nada. Imóvel,
não quer mais sentir-se ferido,
ameaçado. Dorme e acorda
nessa inactividade. Espera.
E expectante crê que um dia
a luz há-de encher o quarto.
Não se consegue levantar, não
consegue senão a consciência
desse instante vago, olhos fixos
no soalho ou rente às paredes
da casa, atento às sombras a quem,
horror, sorri. Assim o encontram
dias mais tarde. Como se estivesse
a rezar. Ele, cuja metafísica
era saber que as palavras não são
suficientes para nos tornar mais tristes.



Carlos Bessa
Em Partes Iguais
Assírio & Alvim, 2005