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Uma sumptuosa morada

I

Uma sumptuosa morada, as aves por janelas.
(Cor de floresta virgem, aroma raiado de embriaguez de asa.)

A noite está na concha da mão. (E também no brilho dos olhos.)

Limites do universo: cada um é germe de infinito.

(Deitada, ela escutava, num ruído de água que se quebra, por cima do seu leito, a onda desenrolando as suas correntes e lançando sobre a praia os sóis decaídos da liberdade ofendida.)

Ao respirar fazemos sombra.

(Em menina, transtornavam-na as manhãs sem mãos, no meio da roda, com a sua imperícia de aleijadas.

Da terra, lembrar-se-á do riso do arco esbaforido, oscilando no caminho, e do suspiro das cortinas poeirentas que erguia até à aurora?)

A pouco e pouco as paredes afrouxam o seu abraço, porque não há amor eterno entre as pedras. Uma a uma redescobriram, nas ruínas, o anonimato do seu destino.


II

Os passos são telhados esperados. Ao andar, privo de calor o chão que os meus pés abandonam.


III

Avancei mais do que me permitiam as pupilas. (Lá onde a obscuridade se torna em degraus gratuitos, vertigem roubada à vigilância.)

A idade da transparência habita a memória dos homens. As guerras contribuem para o seu prestígio.

O teu cabelo é o halo alongado do meu desespero. (Será o teu rosto o astro de que a manhã nasceu?)

As mãos trepavam, selvagens, até à boca do abismo de que ninguém suspeita ao passar, distraído pelas dobras ondulantes das horas iluminadas que estriam o céu.


IV

(Há que admitir a nossa ausência do mundo, a nossa confortável segurança perante as marionetas inspiradas com que as crianças sonham. Há que admitir a nossa irrealidade que respeita as deambulações dessas criaturas incómodas.)


V

Encontrei-te no caminho imaculado que leva para além dos cumes.

Sabíamos nós, no topo das nossas forças, que devíamos deixar-nos cair, dolorosos diamantes, na água regeneradora?


VI

A chuva martela o ventre redondo do amor.
(A tempestade é cheia de censuras.)

De pé, bem seguro nas pernas, o homem desafia o raio.

Entre o dedo do pé e o indicador erguido, o sol ensina a ver.



Edmond Jabès
A obscura palavra do deserto
Cotovia, 1991
Tradução de Pedro Tamen

Metamorfose da matéria

Um homem levanta a terra nas feiras.

(O suor, gota a gota, formou um lago em que, veladores do passado, se miram os choupos avarentos.)

As mulheres animam os baloiços. (O céu é só um roçagar de saias ao vento, perturbantes feixes de carne.)

O coração é um arco no limiar da nossa era, uma concha eloquente (para si mesma) entre os dedos da vidente.

Os altifalantes disputam entre si um universo insólito de música e de gritos onde a voz humana confessa um humilhante fracasso.

Espectacular luta de galos da violação e do vazio.

Uma luz reflectida conta as pérolas amarelas do seu colar.

A rua é o fiozinho de sangue. Mas quem o deterá no seu desejo obstinado de saciar os desertos?



Edmond Jabès
A obscura palavra do deserto
Cotovia, 1991
Tradução de Pedro Tamen

A máscara e os dias

I

Não se constrói sobre a pedra côncava. (E menos ainda sobre a neve dos picos?)

As recordações vêm aumentar o seu poder sobre o homem à medida que o objectivo se esfuma.

(Muralhas de sempiternas manifestações de força. Basta a obstinação de uma lágrima, basta um nada de ar decidido para que o ferimento seja mortal.)

Amanhã é o dia dos ladrões.

Dos nossos múltiplos rostos, o único persiste; rochedo onde se apoia a fadiga do mar.


II

O porto mantém a sua palavra. (Manterá o cinto dos afogados?)

Na beira do abismo, cintilante coroa de exílio.

Os mortos participam connosco na eclosão dos enigmas em garfo que arranham o espaço.



Edmond Jabès
A obscura palavra do deserto
Cotovia, 1991
Tradução de Pedro Tamen