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O que requeiro ao dia

O que requeiro ao dia não é já
que realize os meus sonhos, ou me dê
os desejos realizados dos outros dias,
porque aprendi afinal que os sonhos
são como as asas de um insecto,
que se desfazem quando o homem lhes toca;
aliás, um sonho ao realizar-se é já outra coisa,
que não ajuda a voar.
O que requeiro ao dia é aquele sonho
que ao tocar-lhe se parta em outros sonhos,
tal como um bola de mercúrio,
e brilhe longe das minhas mãos.
O que requeiro ao dia começa a ser
inclusive mais difícil de alcançar
do que os sonhos realizados, porque exige
a fé antiga nos sonhos.
O que requeiro ao dia é apenas
um pouco de esperança,
essa forma modesta de felicidade.


Vicente Gallego
Tradução A.M.

Espécies de solidão

A solidão dos mendigos
que não têm nada e são felizes
- pois reconhecem que tão pouco têm solidão.
A solidão dos deuses
que têm tudo e não são felizes
- pois reconhecem que tão pouco têm tudo.
A solidão dos artistas famosos,
que nasceram com alergia aos aplausos
e sofrem grandes transtornos físicos em cada êxito.
A solidão dos solitários sem vocação
condenados a quatro paredes domésticas
drogando-se com refrãos venenosos
tais como:
“Mais vale só que mal acompanhado”
“Se me não ama não me merece”, etc.
A solidão da criança na cozinha
e sua mãe com “outro” na sala,
a solidão do velho recordando
a velha na janela.
A solidão de dois numa mesa.
A solidão de dois numa cama.
A solidão de dois, quando um só deles ama.


Vicente Gallego

Tradução A.M.

O mulherengo

Amei as mulheres, e devo confessar
que em muitas ocasiões
pequei por elas em pensamentos,
palavras e omissões, já que pelo tacto
entreguei-me apenas às batalhas correntes
- e uma ou outra escaramuça, para quê mentir,
de gosto bem duvidoso e escassa glória –
mas o meu amor mais fiel, o verdadeiro,
o que nunca me aborrece, o que um dia
vai acabar por ameaçar-me a constância,
é sempre essa mulher, essa desconhecida
de que um amigo meu fala num poema,
e que nós, por inércia,
porque vamos com outra ou por vergonha,
deixamos passar sempre de largo,
tão diferente sempre e sempre formosa.
E quando um dia nos chegamos,
vencido o temor, com que rapidez
o seu nome muda, desce e se mostra,
então o rosto dela toma sua forma exacta,
e os nossos olhos depressa olvidam o seu mistério,
pois tocamos-lhe com a mão e ele desfaz-se.


Amei as mulheres, ainda amo,
e sofro muito quando se afastam,
esplêndidas e alheias, com os filhos
pela mão, ou ainda de uniforme,
meninas quase - a nuca suada
e o cheiro de colónia após a brincadeira –
ou quase adolescentes, nessa idade
em que não dormem tranquilas
quando chega o verão.
E todas com olores que nos fazem sonhar,
cruéis na sua beleza, pois no fim
hão-de deixar apenas esses olores, passando perto,
como um caminho aberto na nossa vida.
Mas obstinei-me no amor de algumas,
e é difícil assim frequentá-las a todas.


Amei as mulheres e acho mesmo
que gostaria de perder-me por elas,
assim eu tivesse dinheiro
e elas ajudassem um bocadinho.


Vicente Gallego
Tradução A.M.

Põe-lhe a culpa a ele

Hoje foste com amigas para a festa e,
sem saber, dás-me
um tempo para estar só que já começa
a escassear na minha vida, um tempo útil
para procurar pensar em ti como se fosses
o que devias ser sempre,
quando eu pensava em ti: aquela pessoa,
semelhante em tudo a outra qualquer,
que uma noite longínqua teve o gesto
generoso e estranho de me entregar o seu amor.
Mas o amor transforma-nos, faz de nós espiões
ridículos do outro, implacáveis juízes
que condenam sem provas e compartem
suas estúpidas penas com o réu.
O amor confunde-nos e faz agora
que eu veja na tua festa uma traição.


Para escapar à armadilha chamo-me
os nomes adequados àquele que nela se enreda:
egoísta, ridículo, inseguro, ciumento...
E como um exercício de humildade penso em ti
a divertir-te sozinha, imaginando-te a dançar
e a olhar para os outros homens;
com o calor da bebida
confessas a uma amiga algumas coisas
minhas que te irritam sem eu saber,
saboreando por alguns momentos uma vida diferente
que te tenta esta noite porque és humana,
embora eu não lhe ache graça nenhuma.


Dou conta agora de que tu duvidas
como eu duvido por vezes e também te aborreces
e até algum dia terás sonhado
foder como uma louca com aquele tipo do anúncio
do perfume da moda.
Para acalmar-me um pouco
desta última ideia, digo a mim mesmo
que o amor é um jogo onde contam
muito mais os truques que as cartas,
e procuro ser razoável,
pensando que é mais giro que me ames
porque existem festas, e dúvidas,
e corpos da publicidade dos perfumes.
O que quero que saibas é que compreendo
certas coisas melhor do que pensas,
que sou semelhante a ti, que pensei beijar-te
quando chegares a casa; e que será o amor
- esse tipo grotesco e ardiloso -
que vai agredir-te com palavras
absurdas de censura, quando voltares, sim,
porque já estás a tardar, minha puta de merda.



Vicente Gallego
Antología poética
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes
Tradução A.M.

Cervantes