Atravessas a noite − é a mais longa
noite da tua vida.
Atravessas o mundo, sobrevoas
o maior continente
− ilhas verdes e outros paraísos −,
as muitas horas pesam-te no corpo,
mas os ponteiros não se movem.
A escala será breve: uma cidade
onde o céu desagua noutro céu
absoluto **** negro.
Os passageiros saem − vais com eles,
autómato perdido na corrente
dos outros seres humanos, teus irmãos
siameses,
e é este o aeroporto de Bangkok:
cafés e restaurantes e free-shops
e de súbito aqui ou além
minúsculos cubículos,
stalags ou gulags de vidro transparente
onde algumas pessoas como tu
fumam e continuam a fumar.
Agora a dez mil metros de altitude
sobre a Ásia Central **** sobre a eterna
noite,
imaginas que o dia já nasceu
no aeroporto de Bangkok
e contemplas num morno pesadelo
aqueles pequenos cárceres de névoa,
o castigo cumprido em silêncio,
a cinza dos seus rostos.
Fernando Pinto do Amaral
A Luz da Madrugada
Publicações Dom Quixote, 2007
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Levanta-te, não chores
Levanta-te, não chores.
Tens de saber que às vezes é difícilmatar o que nos mata,
ir aguçando o gume do cutelo
e movê-lo depois, logo em relâmpago,
até que o monstro seja degolado
e não fique sequer uma gota de sangue,
da cicuta voraz que lhe corria
plas veias tão geladas, sob a pele
que terias beijado quase a medo
em busca de um sabor que fosse o fogo
e o ar e a água,
mas era só veneno adocicado,
daquele que vicia sem parecer viciar
e nos deixa sem cura a vida inteira.
Levanta-te, bem sabes,
desde o tempo dos contos infantis,
que todo o mal procura disfarçar-se
em rostos como aquele,
na perfeição volátil desse abismo
a que chamam beleza e vai ardendo
em lânguidos sorrisos e olhares
feitos de pura seda, seduzindo
espíritos como o teu,
demasiado inocentes ou perversos
para desconfiar da eternidade
ou para resistir à luz fosforescente
que, obedecendo às leis da natureza,
sempre soube atrair até à morte
o alucinado voo das borboletas.
Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
de apertar o gatilho as vezes necessárias
para que tudo morra - os estertores
da tua alma ou do teu corpo
mesmo assim doem menos, acredita,
que o travo torvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
os mil e um poemas
que haverias de ler, talvez sem esforço,
à flor daquela face, não hesites,
porque a felicidade tem um preço
e os versos, quaisquer versos, são apenas
a memória infiel deste vento que move
as árvores lá fora enquanto é noite,
mas que às primeiras horas da manhã
deixará elevar-se um nevoeiro
tão espesso e esbranquiçado, que o amor
será nesse momento uma palavra baça
que nada te dirá, a ti ou a ninguém.
Fernando Pinto do Amaral
Poesia Reunida 1990-2000
Publicações Dom Quixote, 2000
Segredo
Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
Fernando Pinto do Amaral
Poesia Reunida 1990-2000
Publicações Dom Quixote, 2000
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
Fernando Pinto do Amaral
Poesia Reunida 1990-2000
Publicações Dom Quixote, 2000
A única resposta
Jantáramos os dois pela primeira vez:
amizade ou amor, pouco interessava
desde que alí estivesses. O meu mundo
ia mudando à medida do teu,
a cada gesto vão da vã conversa
antes que fôssemos pelo Bairro Alto
e enfim o Lumiar, a tua casa.
Eu podia contar uma história, dizer
como aquele rosto atravessava o meu -mas não,
«nada de narrativas, nunca mais».
Apenas a certeza de estar morto
há tanto tempo, que já não me lembro
de cor nenhuma dos teus olhos. Não,
já não existe o dia nem a noite
e este silêncio deve ser talvez
a única resposta. É bem melhor
ficar à espera de que não regresses.
Fernando Pinto do Amaral
A Escada de Jacob
Assírio & Alvim, 2005
amizade ou amor, pouco interessava
desde que alí estivesses. O meu mundo
ia mudando à medida do teu,
a cada gesto vão da vã conversa
antes que fôssemos pelo Bairro Alto
e enfim o Lumiar, a tua casa.
Eu podia contar uma história, dizer
como aquele rosto atravessava o meu -mas não,
«nada de narrativas, nunca mais».
Apenas a certeza de estar morto
há tanto tempo, que já não me lembro
de cor nenhuma dos teus olhos. Não,
já não existe o dia nem a noite
e este silêncio deve ser talvez
a única resposta. É bem melhor
ficar à espera de que não regresses.
Fernando Pinto do Amaral
A Escada de Jacob
Assírio & Alvim, 2005
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