Sabemos o que o mundo é; e nele a existência de ervas.
Rápida atravessa a criança o sol para terminar velho no poen-
te, como um apressado comboio.
Toca as flores como Cristo tocava nos homens para os curar,
e toca também nos porcos.
Duas mulheres, lado a lado, passeiam. E um homem ao lado
dos seus versos passeia. Quem vai mais acompanhado: essas
duas mulheres, essas duas amigas, ou esse homem sábio e os
seus versos?
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
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Heiner Müller
Édipo é cego porque alguém escreveu em cima dos seus
olhos. A cegueira é uma escrita em sítio errado.
As minhas máquinas devoram-me o ordenado. A noi-
va casará com um cadáver, mas os pais do noivo ocultam de modo
exacto o segredo. O tubarão com uma única dentada pode ar-
rancar a carne da boca do cantor.
Ao lado da menina pequenina a mãe canta uma canção. Ao
lado da mãe, a menina ingénua tapa os ouvidos com força, con-
vencida de que assim não se verá o seu sangue.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
olhos. A cegueira é uma escrita em sítio errado.
As minhas máquinas devoram-me o ordenado. A noi-
va casará com um cadáver, mas os pais do noivo ocultam de modo
exacto o segredo. O tubarão com uma única dentada pode ar-
rancar a carne da boca do cantor.
Ao lado da menina pequenina a mãe canta uma canção. Ao
lado da mãe, a menina ingénua tapa os ouvidos com força, con-
vencida de que assim não se verá o seu sangue.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
23.
Fecundar o VAZIO.
Não é FORNICAR. É fecundar.
Fazer filhos no vazio: possibilidades do corpo ocupar o Espaço.
Os filhos do vazio são Corpo.
Gonçalo M. Tavares
Livro da Dança
Assírio & Alvim, 2001
Não é FORNICAR. É fecundar.
Fazer filhos no vazio: possibilidades do corpo ocupar o Espaço.
Os filhos do vazio são Corpo.
Gonçalo M. Tavares
Livro da Dança
Assírio & Alvim, 2001
4.
a poesia dos terrestres e o Sagrado uso da verticalidade (herberto).
Subir com os deuses estranhos, os óbvios.
a ciência é o deus-óbvio, o veneno come a madeira do escadote e as
Pernas da dançarina da Frente são de rã (ou seja: curtas) enquanto
atrás são de lua (longas).
A lua é longa e quem dança deve usar pernas de rã (CURTAS) para
alcançar o céu (alto). Assim é, quem é Esplendor (poética da VERTI-
GEM).
RESUMO ou Síntese ou avançar 1 pouco:
O Corpo deve produzir conferências verticais cada vez mais altas
e terminar no Projector que ilumina o Sol.
A terra secreta é o corpo, e o corpo tem o sagrado da TERRA.
Provocar as cidades e as Pessoas
ATIRÁ-LOS AO Segredo.
(ATIRAR as Pessoas ao Segredo).
Gonçalo M. Tavares
Livro da Dança
Assírio & Alvim, 2001
Subir com os deuses estranhos, os óbvios.
a ciência é o deus-óbvio, o veneno come a madeira do escadote e as
Pernas da dançarina da Frente são de rã (ou seja: curtas) enquanto
atrás são de lua (longas).
A lua é longa e quem dança deve usar pernas de rã (CURTAS) para
alcançar o céu (alto). Assim é, quem é Esplendor (poética da VERTI-
GEM).
RESUMO ou Síntese ou avançar 1 pouco:
O Corpo deve produzir conferências verticais cada vez mais altas
e terminar no Projector que ilumina o Sol.
A terra secreta é o corpo, e o corpo tem o sagrado da TERRA.
Provocar as cidades e as Pessoas
ATIRÁ-LOS AO Segredo.
(ATIRAR as Pessoas ao Segredo).
Gonçalo M. Tavares
Livro da Dança
Assírio & Alvim, 2001
Giánnis Ritsos
__Uma formiga furou lentamente o planeta. Como se o planeta
fosse um balão e a formiga, lâmina.
__O homem é uma crosta à volta de um balão. E um dia a for-
miga preta vem, e fura-o.
__Somos bípedes porque o céu nos pendurou nos cabides das
omoplastas.
__Não há roupa bípede: todo o tecido quando largado cai no
chão em muitas patas.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
fosse um balão e a formiga, lâmina.
__O homem é uma crosta à volta de um balão. E um dia a for-
miga preta vem, e fura-o.
__Somos bípedes porque o céu nos pendurou nos cabides das
omoplastas.
__Não há roupa bípede: todo o tecido quando largado cai no
chão em muitas patas.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
[a mulher tem a química dos animais...]
a mulher tem a química dos animais e o pólen das plantas,
e da Grande Alma rouba o Apetite para multiplicar as coisas que nascem.
Os contágios são calmos.
Se uma flor voasse perdia o cheiro;
e se o pássaro tivesse aroma de rosa, de certeza seria coxo.
Porque o mundo se organizou todo de uma vez e depois calou-se.
Ficámos nós, sós, e a Filosofia.
A pedra calada, o animal grunhe,
a erva cresce tão lenta que só a vemos quando ela é adulta,
e os cães ladram debaixo do Sol.
Todos somos resíduos imperfeitos
e os organizadores do Baile saíram logo no início,
deixando a Música, mas não os passos.
Por isso tropeçamos,
partimos a unha má e boa,
apaixonamo-nos por uma mulher e depois já é outra,
e, no Fundo, o que queríamos era sossego e não dançar.
Do que temos medo é da solidão, temos de o reconhecer,
esse caixão que vem antes do tempo,
e nos fecha dos outros e do dia.
O que queremos é sossego;
nem Mistérios nem passos de dança,
apaguem a Música.
Gonçalo M. Tavares
Investigações Novalis
Difel, 2002
e da Grande Alma rouba o Apetite para multiplicar as coisas que nascem.
Os contágios são calmos.
Se uma flor voasse perdia o cheiro;
e se o pássaro tivesse aroma de rosa, de certeza seria coxo.
Porque o mundo se organizou todo de uma vez e depois calou-se.
Ficámos nós, sós, e a Filosofia.
A pedra calada, o animal grunhe,
a erva cresce tão lenta que só a vemos quando ela é adulta,
e os cães ladram debaixo do Sol.
Todos somos resíduos imperfeitos
e os organizadores do Baile saíram logo no início,
deixando a Música, mas não os passos.
Por isso tropeçamos,
partimos a unha má e boa,
apaixonamo-nos por uma mulher e depois já é outra,
e, no Fundo, o que queríamos era sossego e não dançar.
Do que temos medo é da solidão, temos de o reconhecer,
esse caixão que vem antes do tempo,
e nos fecha dos outros e do dia.
O que queremos é sossego;
nem Mistérios nem passos de dança,
apaguem a Música.
Gonçalo M. Tavares
Investigações Novalis
Difel, 2002
80.
é evidente que podemos explicar.
é evidente que podemos concluir.
é evidente que podemos curar.
é evidente que podemos abrir 1 consultório e dizer : PAGA!
é evidente que podemos psicanalizar.
é evidente que podemos ter componentes.
é evidente que podemos começar pelo início.
é evidente que podemos ter emoção e razão e céu em cima e terra por baixo.
é evidente que podemos comer e não dar por isso, defecar e não dar por isso,
fornicar e fecundar e não dar por isso.
é evidente que podemos Regressar.
é evidente que podemos enumerar e dar os nomes certos às coisas erradas.
é evidente que podemos acertar.
é evidente que podemos ter 1 corpo sem falhas excepto
a falha grande que é MORRER e as outras falhas pequenas que são a dor a doença
e a velhice.
é evidente que podemos fixar, explicar, concluir, exemplificar, começar, abrir 1 consultório,
curar, receber e pagar, estruturar, desenvolver, ter ideias claras e ideias claras.
é evidente que podemos pensar, dançar e depois pensar ou então o contrário.
é evidente, enfim, insisto, que podemos explicar,
mas é melhor não.
Gonçalo M. Tavares
Livro da Dança
Assírio & Alvim, 2001
é evidente que podemos concluir.
é evidente que podemos curar.
é evidente que podemos abrir 1 consultório e dizer : PAGA!
é evidente que podemos psicanalizar.
é evidente que podemos ter componentes.
é evidente que podemos começar pelo início.
é evidente que podemos ter emoção e razão e céu em cima e terra por baixo.
é evidente que podemos comer e não dar por isso, defecar e não dar por isso,
fornicar e fecundar e não dar por isso.
é evidente que podemos Regressar.
é evidente que podemos enumerar e dar os nomes certos às coisas erradas.
é evidente que podemos acertar.
é evidente que podemos ter 1 corpo sem falhas excepto
a falha grande que é MORRER e as outras falhas pequenas que são a dor a doença
e a velhice.
é evidente que podemos fixar, explicar, concluir, exemplificar, começar, abrir 1 consultório,
curar, receber e pagar, estruturar, desenvolver, ter ideias claras e ideias claras.
é evidente que podemos pensar, dançar e depois pensar ou então o contrário.
é evidente, enfim, insisto, que podemos explicar,
mas é melhor não.
Gonçalo M. Tavares
Livro da Dança
Assírio & Alvim, 2001
A tristeza
«O senhor Valéry percorria sempre as mesmas ruas da cidade com os mesmos sapatos, um par de sapatos para cada rua.
Desde que nascera que vivia por ali, mas só conhecia 5 ruas que percorria com os seus 5 pares de sapatos diferentes.
O senhor Valéry explicava:
- É que absorvo demasiado as coisas. É como se ao atravessar uma rua nova o chão ficasse colado aos meus sapatos e mais ninguém tivesse espaço para pousar os pés. É como se a partir daí só os pássaros pudessem percorrer a rua - finalizava, num tom poético, muito raro em si, pois era uma homem que s orgulhava da sua lógica.
- O problema - explicava o senhor Valéry -não é dos sapatos, é da minha vontade de levar para casa tudo aquilo em que toco.
E o senhor Valéry clarificava:
- Como não me sinto completo comigo apenas, penso que tudo o que não sou eu me poderá completar, e portanto quero-o para mim, e roubo-o ao mundo.
- Na verdade, as ruas agarram-se aos meus sapatos porque eu não sou feliz - disse o senhor Valéry, melancólico.»
Desde que nascera que vivia por ali, mas só conhecia 5 ruas que percorria com os seus 5 pares de sapatos diferentes.
O senhor Valéry explicava:
- É que absorvo demasiado as coisas. É como se ao atravessar uma rua nova o chão ficasse colado aos meus sapatos e mais ninguém tivesse espaço para pousar os pés. É como se a partir daí só os pássaros pudessem percorrer a rua - finalizava, num tom poético, muito raro em si, pois era uma homem que s orgulhava da sua lógica.
- O problema - explicava o senhor Valéry -não é dos sapatos, é da minha vontade de levar para casa tudo aquilo em que toco.
E o senhor Valéry clarificava:
- Como não me sinto completo comigo apenas, penso que tudo o que não sou eu me poderá completar, e portanto quero-o para mim, e roubo-o ao mundo.
- Na verdade, as ruas agarram-se aos meus sapatos porque eu não sou feliz - disse o senhor Valéry, melancólico.»
Gonçalo M. Tavares
O Senhor Valéry
Editorial Caminho, 2002
«Três cabides: um para pendurar o casaco, outro para pendurar uma corda já com o nó de enforcado. Outro cabide ainda: o chapéu.
Não podes ter o conhecimento integral das coisas.
Fumei um cigarro, uma t-shirt branca, a barba por fazer. Atravesso a rua já encasacado. Frio brutal. Pessoas de um lado para o outro a fazerem compras e no meio do passeio um rapaz de tronco nu, no meio deste frio brutal, de joelhos, com o tronco esticado e a cabeça baixa e a mão igual a um cabide, dirigida para a frente e para cima, aberta, a pedir.»
Não podes ter o conhecimento integral das coisas.
Fumei um cigarro, uma t-shirt branca, a barba por fazer. Atravesso a rua já encasacado. Frio brutal. Pessoas de um lado para o outro a fazerem compras e no meio do passeio um rapaz de tronco nu, no meio deste frio brutal, de joelhos, com o tronco esticado e a cabeça baixa e a mão igual a um cabide, dirigida para a frente e para cima, aberta, a pedir.»
Gonçalo M. Tavares
Água, Cão, Cavalo, Cabeça
Editorial Caminho, 2006
Água, Cão, Cavalo, Cabeça
Editorial Caminho, 2006
Italo Calvino
__Quatro homens gostavam de quatro mulheres. Quatro corpos cheios com quatro águas. Quatro sítios do mar foram mergulhados por quatro homens.
__Nenhuma cidade é tão bela como um sinónimo.
__Desci do dorso do elefante para o rinoceronte, do rinoceronte para o tigre, do dorso do tigre para o cão, do cão para o gato; e este, por fim, cedeu. Uma escada de animais não é menos perigosa do que uma escada escorregadia.
__Uma velocidade de escrita tal que o ponto final seja simultâneo com a primeira letra da frase. Assim:
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
__Nenhuma cidade é tão bela como um sinónimo.
__Desci do dorso do elefante para o rinoceronte, do rinoceronte para o tigre, do dorso do tigre para o cão, do cão para o gato; e este, por fim, cedeu. Uma escada de animais não é menos perigosa do que uma escada escorregadia.
__Uma velocidade de escrita tal que o ponto final seja simultâneo com a primeira letra da frase. Assim:
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
Virgílio
__Meu caro poeta, não te levo pela mão, que as frases de uma vida não fazem uma vida inteira. Há ainda o cansaço e as acções. Um ou outro amor a céu aberto e uma ou outra traição a céu fechado e negro.
__Morremos da infância quando pela primeira vez nos perdemos na cidade. E na segunda vez morremos de amor. E na terceira, de tudo morremos, o que é morrer simplesmente.
__A terra de cor vermelha como o vinho fará de ti um dançarino. Quem dança faz do chão a sua terra, assim como quem chora.
__A pátria é o sítio onde sofro. E onde por vezes danço. E é isto.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
__Morremos da infância quando pela primeira vez nos perdemos na cidade. E na segunda vez morremos de amor. E na terceira, de tudo morremos, o que é morrer simplesmente.
__A terra de cor vermelha como o vinho fará de ti um dançarino. Quem dança faz do chão a sua terra, assim como quem chora.
__A pátria é o sítio onde sofro. E onde por vezes danço. E é isto.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
Thom Gunn
Há um lugar onde se colocam bengalas ao lado do ponto de partida para uma corrida de cem metros.
Sapatos pretos cheios de cimento como se fossem pés.
Um porco, na pocilga nojenta, a quem colocaram a máscara com o rosto de um homem.
Um desmentido em forma de mentira, com dois lados para fugir que terminam à frente do pelotão de fuzilamento.
Um cão, o sósia de um cão, três meninos gémeos, a mãe que amamenta dois, a criança que come chocolate, uma enorme explosão, ao longe o grunhido de um porco que sobreviveu.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
Sapatos pretos cheios de cimento como se fossem pés.
Um porco, na pocilga nojenta, a quem colocaram a máscara com o rosto de um homem.
Um desmentido em forma de mentira, com dois lados para fugir que terminam à frente do pelotão de fuzilamento.
Um cão, o sósia de um cão, três meninos gémeos, a mãe que amamenta dois, a criança que come chocolate, uma enorme explosão, ao longe o grunhido de um porco que sobreviveu.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
Ésquilo
A magia é mais auditiva que táctil. Os Deuses não te tocam, contam-te segredos.
Claro que isto é óbvio, e ainda hoje se sabe que uma canção mexe mais num corpo que um empurrão ou o soco.
Mas os Deuses aos surdos contarão segredos em cor; como se a pintura fosse um sussurro alternativo, uma canção que permaneceu pousada na matéria.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
Claro que isto é óbvio, e ainda hoje se sabe que uma canção mexe mais num corpo que um empurrão ou o soco.
Mas os Deuses aos surdos contarão segredos em cor; como se a pintura fosse um sussurro alternativo, uma canção que permaneceu pousada na matéria.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
«Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.»
Gonçalo M. Tavares
Jerusalém
Editorial Caminho, 2005
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.»
Gonçalo M. Tavares
Jerusalém
Editorial Caminho, 2005
«Lenz não tinha ilusões acerca da terra que pisava: havia entre a natureza e o homem um ponto de ruptura que há muito fora ultrapassado. Existia uma luz nova nas cidades, a luz da técnica, luz que dava saltos materiais que antes nenhum animal conseguira dar; e essa nova claridade aumentava o ódio que os elementos mais antigos do mundo pareciam ter guardado, desde sempre, em relação ao homem. Ele receava da mesma maneira um terramoto e um dia de sol em que pássaros desconhecidos parecem iniciar uma amizade eterna com casais de apaixonados que não conhecem. Nestes dias calmos, Lenz via uma saúde falsa, uma preparação da maldade – alguém, com cuidado, limpava o cadafalso na véspera de a vítima o pisar. Ele não se entusiasmava com a ordem dos elementos; sabia bem que essa ordem não era confundível com a ordem das cidades, onde o maestro, as leis e o polícia indicam o caminho certo de deslocação da música e dos criminosos. Sabe-se bem para onde cada coisa vai. Mas o que era ordem para a natureza era estranho para a cidade.
Por vezes Lenz chegava mesmo a formular a questão, dirigindo-se mentalmente para o jardim tranquilo: em que estará ele a pensar? Como se realmente ele próprio e a natureza estivessem num jogo no qual a racionalidade tinha importância, mas também a força muscular e a vontade. Um dia tranquilo era, para Lenz, um dia de saúde da natureza e, nesse sentido, dia em que esta acumulava forças que mais cedo ou mais tarde atiraria contra os humanos. Lenz não confiava na natureza.»
Por vezes Lenz chegava mesmo a formular a questão, dirigindo-se mentalmente para o jardim tranquilo: em que estará ele a pensar? Como se realmente ele próprio e a natureza estivessem num jogo no qual a racionalidade tinha importância, mas também a força muscular e a vontade. Um dia tranquilo era, para Lenz, um dia de saúde da natureza e, nesse sentido, dia em que esta acumulava forças que mais cedo ou mais tarde atiraria contra os humanos. Lenz não confiava na natureza.»
Gonçalo M. Tavares
Aprender a rezar na Era da Técnica
Editorial Caminho, 2007
Às vezes escondo-me no corpo e ninguém me vê.
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas.
Posso até dizer algumas palavras,
posso até exprimir-me num longo discurso,
mas a verdade é que não falo com elas.
Estou escondido algures no meio do meu corpo.
Enfio-me todo no esófago ou no centro da artéria aorta ou na veia jugular,
e, por vezes, quando estou mais tímido, chego mesmo a esconder-me nos músculos da planta do pé.
Apesar de não saber os nomes destes músculos escondo-me lá muitas vezes.
Aliás, é melhor fugirmos para sítios de que desconhecemos o nome: ficamos ainda melhor escondidos.
É a minha opinião.
A minha personalidade a refugiar-se inteira no dedo mínimo do pé esquerdo, vejam bem.
Por vezes acontece-me.
O meu EU alojado no dedo mínimo do pé esquerdo.
Os mais importantes pensamentos concentrados no dedo mínimo do pé esquerdo.
As minhas sensações mais íntimas escondidas no dedo mínimo do pé esquerdo.
Quando me pisam é que é uma desgraça.
Só se tiver a sorte de me pisarem o outro pé.
Quando me pisam o pé mais importante começo a gritar; e começar a gritar é o começo do fim.
Quando gritamos não nos podemos esconder.
O corpo vem todo à pele ver o que se passa.
A pele é como se fosse uma janela.
Quando gritamos de dor, todas as células do corpo vêm à janela, ou seja, à pele, para assistir à procissão.
Mas há muitas células do meu corpo que não concordam totalmente com as minhas ideias.
Obedecem-me porque não têm alternativa, mas nas costas gozam-me e por vezes insultam-me.
Prefiro mesmo assim os insultos.
Os insultos são pequenas pancadas vindas do fundo dos órgãos.
É mais ou menos suportável.
O terrível é quando se põem a rir de mim.
Eu digo:
— Sou um grande acrobata,
e sinto logo algumas células a rirem-se.
As costelas abanam todas.
Os dentes é como se tivessem muito frio.
Os dedos dos pés encolhem-se.
É como se soprasse uma rajada de vento no meio do corpo.
Ainda por cima riem-se de quem as alimenta.
Se isto não é ingratidão, não sei o que é ingratidão.
Células más, um dia ainda vos mato.
O problema é que elas me têm por refém.
É impossível matar as próprias células do corpo sem morrer.
Parecendo que não, esta vida é muito complicada.
Gonçalo M. Tavares
O homem ou é tonto ou é mulher
Campo das Letras, 2002
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas.
Posso até dizer algumas palavras,
posso até exprimir-me num longo discurso,
mas a verdade é que não falo com elas.
Estou escondido algures no meio do meu corpo.
Enfio-me todo no esófago ou no centro da artéria aorta ou na veia jugular,
e, por vezes, quando estou mais tímido, chego mesmo a esconder-me nos músculos da planta do pé.
Apesar de não saber os nomes destes músculos escondo-me lá muitas vezes.
Aliás, é melhor fugirmos para sítios de que desconhecemos o nome: ficamos ainda melhor escondidos.
É a minha opinião.
A minha personalidade a refugiar-se inteira no dedo mínimo do pé esquerdo, vejam bem.
Por vezes acontece-me.
O meu EU alojado no dedo mínimo do pé esquerdo.
Os mais importantes pensamentos concentrados no dedo mínimo do pé esquerdo.
As minhas sensações mais íntimas escondidas no dedo mínimo do pé esquerdo.
Quando me pisam é que é uma desgraça.
Só se tiver a sorte de me pisarem o outro pé.
Quando me pisam o pé mais importante começo a gritar; e começar a gritar é o começo do fim.
Quando gritamos não nos podemos esconder.
O corpo vem todo à pele ver o que se passa.
A pele é como se fosse uma janela.
Quando gritamos de dor, todas as células do corpo vêm à janela, ou seja, à pele, para assistir à procissão.
Mas há muitas células do meu corpo que não concordam totalmente com as minhas ideias.
Obedecem-me porque não têm alternativa, mas nas costas gozam-me e por vezes insultam-me.
Prefiro mesmo assim os insultos.
Os insultos são pequenas pancadas vindas do fundo dos órgãos.
É mais ou menos suportável.
O terrível é quando se põem a rir de mim.
Eu digo:
— Sou um grande acrobata,
e sinto logo algumas células a rirem-se.
As costelas abanam todas.
Os dentes é como se tivessem muito frio.
Os dedos dos pés encolhem-se.
É como se soprasse uma rajada de vento no meio do corpo.
Ainda por cima riem-se de quem as alimenta.
Se isto não é ingratidão, não sei o que é ingratidão.
Células más, um dia ainda vos mato.
O problema é que elas me têm por refém.
É impossível matar as próprias células do corpo sem morrer.
Parecendo que não, esta vida é muito complicada.
Gonçalo M. Tavares
O homem ou é tonto ou é mulher
Campo das Letras, 2002
Às vezes tenho medo, muito medo.
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na
possibilidade de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.
Todas as doenças pertencem a toda a gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e está a envelhecer.
Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de
lhes querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter idéias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.
Gonçalo M. Tavares
O homem ou é tonto ou é mulher
Campo das Letras, 2002
Às vezes sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na
possibilidade de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.
Todas as doenças pertencem a toda a gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e está a envelhecer.
Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de
lhes querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter idéias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada.
Gonçalo M. Tavares
O homem ou é tonto ou é mulher
Campo das Letras, 2002
«Com o seu sócio está tão envolvido na discussão das percentagens de algo, que não dá pelo que acontece: são engolidos por uma baleia. Dentro do estômago da baleia Calvino continua a discutir percentagens. Percebe, agora, qual o negócio, trata-se da venda de petróleo e de livros. Quem fica com o quê? A discussão está acesa e Calvino empenha-se nela cada vez mais; vira depois as costas ao seu sócio e sai para a rua: observa as pessoas a andarem de um lado para o outro. Os poucos que não estão com pressa, aqueles que param, discutem entre si, percentagens também: 30, não 37!, não, não, 32! Todos discutem, ele próprio não consegue deixar de repetir, para si próprio: 43%, pelo menos 43%!
Mas ao mesmo tempo existe aquela sensação de que estão todos dentro do estômago da baleia, de que aquelas pessoas que ele vê na cidade, cheias de pressa, de um lado para o outro, a discutir percentagens, e ele próprio, há muito foram comidos.»
Mas ao mesmo tempo existe aquela sensação de que estão todos dentro do estômago da baleia, de que aquelas pessoas que ele vê na cidade, cheias de pressa, de um lado para o outro, a discutir percentagens, e ele próprio, há muito foram comidos.»
Gonçalo M. Tavares
O senhor Calvino
Editorial Caminho, 2005
Hermann Broch
Um homem caminhava depressa. Havia a chuva por cima, lenta mas constante; e o chão por baixo: a caminhar tão rápido como o homem, mas em sentido inverso. A chuva ao cair no medo de um homem faz dele mais forte, e ao cair no metal – em cima de um carro, por exemplo – faz dele mais fraco.
O metal enfraquece com a chuva; e os homens, como algumas plantas, crescem com certa água em certa inclinação.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
O metal enfraquece com a chuva; e os homens, como algumas plantas, crescem com certa água em certa inclinação.
Gonçalo M. Tavares
Biblioteca
Campo das Letras, 2004
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