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Viajar é muito útil, faz trabalhar a
imaginação. O resto não passa de
decepções e fadigas. A nossa viagem é
inteiramente imaginária. Daí a sua
força.

Vai da vida até à morte. Homens,
animais, cidades e coisas, é tudo
imaginado. Um romance, apenas uma
história fictícia. Di-lo Littré, que nunca
se engana.

Aliás, à primeira vista todos podem
fazer o mesmo. Basta fechar os olhos.

É do outro lado da vida.


Louis-Ferdinand Céline
viagem ao fim da noite
Ulisseia, 1973
Tradução de Aníbal Fernandes
«A coragem não é perdoar, acho que se perdoa demais! Até porque não serve de nada, está mais que provado. É abaixo de todos os seres humanos, em último lugar, que colocamos a criada! Há-de haver alguma razão. Não nos esqueçamos disto. Será preciso uma noite deixar adormecer profundamente as pessoas felizes e enquanto dormirem, digo-vos eu, acabar com elas e com a sua felicidade de uma vez para sempre. No dia seguinte já não se falará mais da sua felicidade e encontrar-nos-emos livres de modo a podermos ser tão infelizes quanto quisermos. Lola ia e vinha através da sala, algo despida, e o seu corpo ainda continuava a parecer-me de facto bastante desejável. Um corpo luxuoso é sempre uma possibilidade de violação, de arrombamento precioso, directo, íntimo, no mais vivo dessa riqueza, desse luxo, e sem pretensões de repetição.»



Louis-Ferdinand Céline
viagem ao fim da noite
Ulisseia, 1973
Tradução de Aníbal Fernandes
«Também eu me deixei arrastar em direcção às luzes, um cinema, depois um outro ao lado, depois ainda um outro e assim sempre pela rua fora. Eram retidas grandes quantidades de gente ao pé de cada um deles. Escolhi um também, um cinema onde se viam fotografias de mulheres em combinação. E que coxas, meus senhores! Fortes! Amplas! Precisas! E umas caras graciosas por cima, como que desenhadas para contrastar, delicadas, frágeis, a crayon, sem quaisquer retoques a fazer, perfeitas, sem um descuido, sem um defeito, perfeitas digo-vos eu, graciosas mas firmes e concisas ao mesmo tempo. Tudo quanto a vida pode desabrochar de mais perigoso, verdadeiras imprudências de beleza, estas indiscrições sobre as possíveis harmonias, divinas e profundas.»



Louis-Ferdinand Céline
viagem ao fim da noite
Ulisseia, 1973
Tradução de Aníbal Fernandes
«Infelizmente não duraram muito, as aldeias... Ao fim de um mês, naquele cantão já nenhuma delas existia. Às florestas, a essas atiraram-lhes para cima com o canhão. Duraram pouco mais de oito dias. Dão também lindas fogueiras, as florestas, mas não vale a pena.
Por essa altura as colunas de artilharia ocuparam todas as estradas num sentido, enquanto que os civis, ao escaparem-se, o faziam no outro. Em suma, já não podíamos ir nem vir, tínhamos de ficar onde estávamos.
Fazia-se bicha para morrer. O próprio general já não encontrava acampamentos sem soldados. Acabávamos por nos deitar todos em pleno campo, generais ou não. Os que ainda tinham um resto de sentimento, perderam-no. Foi a partir desse mês que começaram a fuzilar soldados para lhes levantar o moral, por esquadras, e que a polícia militar passou a ser citada na ordem do dia pela maneira como fazia a sua própria guerrazinha, a mais profunda, a mais verdadeira de todas.»



Louis-Ferdinand Céline
viagem ao fim da noite
Ulisseia, 1973
Tradução de Aníbal Fernandes
«Somos virgens no horror como na volúpia. Poderia eu suspeitar desse horror ao deixar a Praça de Clichy? Quem saberia prever, antes de entrar verdadeiramente na guerra, tudo quanto esconde a alma sórdida, heróica e preguiçosa dos homens? Nesse momento eu era arrastado por uma fuga em massa para a chacina geral, para o fogo... Que tinha subido das profundezas e acabara por chegar. »



Louis-Ferdinand Céline
viagem ao fim da noite
Ulisseia, 1973
Tradução de Aníbal Fernandes
__«E o pior é pensar onde havemos de arranjar forças para no dia seguinte continuar a fazer o que fizemos na véspera e ainda em tantos outros dias já passados, onde encontraremos forças para tantas diligências imbecis, para mil e um projectos que não conduzem a nada, para as tentativas de vencer uma acabrunhante necessidade, tentativas que acabam sempre por abortar, e tudo isso para nos capacitarmos uma vez mais de que o destino é imutável e que o melhor é conformarmo-nos em ter de cair todas as noites da muralha abaixo, sob a angústia desse dia seguinte, sempre mais instável e sórdido.
__É talvez a idade que surge, traidora, e nos ameaça com o pior. Já não existe dentro de cada um de nós música suficiente para fazer dançar a vida, aí está. Toda a juventude nos abandonou para ir morrer no fim do mundo, num silêncio de verdade. Para onde ir agora, pergunto, depois de não possuirmos em nós a soma bastante de delírio? A verdade é uma agonia sem fim. A verdade deste mundo é a morte. Precisamos escolher: mentir ou morrer. E eu nunca consegui matar-me.»



Louis-Ferdinand Céline
viagem ao fim da noite
Ulisseia, 1973
Tradução de Aníbal Fernandes
«Depois das sete, em princípio já os trabalhadores voltaram para casa. As mulheres estão à volta com a loiça, o macho enrosca-se nas ondas do rádio. Vitruve põe de lado o meu romance e vai então à caça da subsistência. Lá calcorreia de porta em porta com as suas meias de malhas caídas, os seus jerseys que não têm marca. Antes da crise ainda ela se ia defendendo por causa do crédito e da maneira como atordoava os fregueses, mas contos do vigário como o dela dão-no agora de prémio aos recalcitrantes da vermelhinha. Já não são condições leais. Ainda tentei explicar-lhe que tudo isso era por culpa dos bons dos Japoneses... Não acreditava. Acusei-a de me ter dissolvido de propósito a minha linda Lenda nas suas próprias imundícies...
- É uma obra-prima! acrescentava eu. Com certeza que hão-de dar com ela!
Levou a coisa para a galhofa... Resolvemos os dois toda aquela cangalhada.
A sobrinha acabou por chegar, atrasadíssima. Era ver as ancas dela! Um verdadeiro escândalo de peida... Toda plissada a saia... Para sublinhar bem. O acordeão da racha. Nada se perde. O desempregado é um desesperado, é um sensual, não tem um chavo para convidar. Isto tem o seu proveito. «Que boa panela!» lançam-lhe eles... Mesmo na cara. No fundo dos corredores, à força de entesar por dá cá aquela palha. Os rapazolas de feições mais finas que os outros são os mais aptos a deitar-lhe o dente, a deixar-se embalar na vida. Só mais tarde é que tal aconteceu é que ela que desceu à rua para se defender!... depois de uma série de catástrofes... Mas por enquanto era só por divertimento.
Também não deu com ela, com a minha linda Lenda. Estava-se nas tintas, ela, para o «Rei Krogold»... Era só a mim que a coisa moía. A escola da malandrice era o Petit Panier, um pouco antes da estação do caminho de ferro, a verbena da Porta Brancion.
Elas, quando eu me enfurecia, não tiravam os olhos de mim. «Borra-botas» como eu era no ver delas, continha-me o mais possível! Punheteiro, tímido, intelectual e tudo. Mas agora para minha surpresa estavam com cagaço que eu me pisgasse. Se eu me pusesse ao largo, bem gostava de saber o que é que elas iriam engendrar? Sossega que a tia estava sempre a pensar nisso! Não era um sorriso, era um esgar que elas faziam mal eu falava vagamente em viagens...
A Meirelle, para além daquele cu de espanto, tinha uns olhos de romança, um olhar cativante, mas um nariz sólido, uma penca, sua verdadeira penitência. Quando a queria humilhar um pouco « Palavra, Meirelle! dizia-lhe eu, tens mesmo um nariz de homem!...» Sabia contar também lindas histórias, gostava daquilo, como um marinheiro. Inventou a princípio mil coisas para me dar prazer e depois em seguida para me prejudicar. Eu o meu fraco é gostar de ouvir boas histórias. Ela abusava, é tudo. As nossas relações vieram a descambar em violência, mas ela mereceu mil vezes essa dança, mereceu ter-se espalhado. Acabou por reconhecê-lo. Ainda muito generoso fui eu... Castiguei-a com boas razões.... Toda a gente o disse... Gente que sabe...»



Louis-Ferdinand Céline
Morte a Crédito
Assírio & Alvim, 1986
Tradução de Luiza Neto Jorge