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O desafio da criação

"Como todos vocês sabem, não há nenhum escritor que escreva tudo aquilo que pensa, é muito difícil transpor o pensamento para a escrita, creio que ninguém o faz, nunca ninguém o fez, mas existem simplesmente muitíssimas coisas que, ao serem desenvolvidas, se perdem."


Juan Rulfo

O galo de ouro e outros textos dispersos
Cavalo de Ferro, 2005
Tradução de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu

A Cuesta de las Comadres

   "Ao Remigio Torrico matei-o eu.
   Nessa altura já havia pouca gente nos ranchos. primeiro tinham abalado um após outro; mas os últimos quase foram em manada. Ganharam e abalaram, aproveitando a chegada das geadas. Em anos passados chegaram as geadas e acabaram com as sementeiras numa só noite. E este ano também. Por isso abalaram. Certamente acharam que no ano seguinte seria a mesma coisa e parece que já não se sentiram com vontade de continuar a suportar as calamidades do tempo todos os anos e a calamidade dos Torricos a toda a hora.
   Assim, quando eu matei o Remigio Torrico, já estavam bem vazias de gente a Cuesta de las Comadres, e as lombas dos arredores.
   Isto sucedeu para aí em Outubro. Lembro-me que havia uma lua muito grande e muito cheia de luz, porque eu sentei-me na soleira da porta da minha casa a remendar um saco todo esburacado, aproveitando a boa luz da lua, quando chegou o Torrico.
   Devia ter estado bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava de lua.
   - Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado. - Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, por eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhes coser os buracos, e a agulha albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
   - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe a que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
   - Seca-se-me a boca por te estar falando do que me fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
   Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.
   Soube que me culpava de ter matado o irmão. Mas não tinha sido eu. Lembrava-me de quem tinha sido, e ter-lho ia fito, embora parecesse que ele não me daria oportunidade para lhe falar como estavam as coisas.
   - Odilón e eu chegámos a brigar muitas vezes - continuou a dizer-me. - Era algo duro de entendimento e gostava de afrontar toda a gente, mas não passava dali. Com umas tantas porradas acalmava-se. E é isso que quero saber: se te disse alguma coisa ou se te quis tirar alguma coisa ou o que é que se passou. Pode ser que te tivesse querido bater e tu adiantaste-te. Algo assim deve ter sucedido.
   Eu abanei a cabeça para lhe dizer que não, que eu não tinha nada a ver...
   - Ouve - atalhou-me o Torrico - o Odilón levava nesse dia catorze pesos no bolso da camisa. Quando o levantei, revistei-o e não encontrei esses catorze pesos. Depois soube que ontem tinhas comprado uma manta.
   E isso estava certo. Eu tinha comprado uma manta. Vi que os frios vinham com muita pressa e o gabão que eu tinha estava já todo desfiadinho, por isso fui a Zapotlán a conseguir uma manta. Mas para isso tinha vendido o par de chibos que tinha, e não foi com os catorze pesos de Odilón que a comprei. Ele podia ver que, se o saco se tinha enchido de buracos, isso se devia a que tive de levar o chibozinho ali metido, porque ainda não podia andar como eu queria.
   - Fica a saber de uma vez por todas que penso cobrar o que me fizeram a Odilón, seja quer for que o matou. E eu sei quem foi - ouvi que me dizia quase em cima da minha cabeça.
   - De maneira que fui eu? - perguntei-lhe.
   - E que mais teria sido? O Odilón e eu éra-mos sem-vergonhas e tudo o que quiseres, e não digo que não chegámos a matar ninguém; mas nunca o fizemos por tão pouco. É isso que te digo.
   A lua grande de Outubro batia em cheio sobre o curral e mandava até à parede da minha casa a sombra longa de Remigio. Vi que se movia em direcção a um medronheiro e que agarrava o machado que eu tinha pendurado ali. Depois vi que regressava com o machado na mão.
   Mas quando ele se tirou da frente, a luz da lua fez brilhar a agulha de albardar que eu tinha enfiado no saco. E não sei porquê, mas de repente comecei a ter uma grande fé naquela agulha. Por isso, ao passar Remigio Torrico a meu lado, desenfiei a agulha, e sem esperar mais nada espetei-a nele, pertinho do umbigo. Enfiei-lha até onde coube. E aí a deixei.
   Logo depois encolheu-se todo como quando nos dá uma cólica e logo após ficou inteiriçado até se dobrar de joelhos e ficar sentado no chão, todo entumescido e com o susto a assomar-se-lhe pelo olho.
   Por instantes parecia que se ia a endireitar para me dar uma machadada com o machete; mas de certeza que se arrependeu ou já nem sabia o que faziam, largou o machado e voltou a encolher-se. Não fez mais que isso.
   Então vi que se lhe ia entristecendo o olhar como se começasse a sentir-se doente. Há muito que não me tocava ver um olhar assim tão triste e deu-me lástima. Por isso aproveitei para lhe tirar a agulha de albarda do umbigo e enfiar-lha um bocadinho mais para cima, ali onde pensei que teria o coração. E sim, ali o tinha, porque apenas deu dois ou três respingos como um frango decapitado e depois ficou muito quieto.
   Já devia estar morto quando lhe disse:
   - Olha, Remigio, vais-em desculpar, mas eu não matei o Odilón. Foram os Alcaraces. Eu andava por lá quando ele morreu, mas lembro-me bem que não fui eu que o matei. Foram eles, toda a família inteira dos Alcaraces. Caíram-lhe em cima, e quando me dei conta, o Odilón estava agonizado. E sabes porquê? Para começar, o Odilón não devia ter ido a Zapotlán. Tu sabes isso. Mais tarde ou mais cedo tinha que lhe acontecer alguma coisa nessa aldeia, onde havia tantos que se lembravam dele. E nem sequer os Alcaraces gostavam dele. Nem tu nem eu podemos saber o que foi ele lá fazer a meter-se com eles.
   «Foi uma coisa assim de repente. Eu acabava de comprar a minha manta e já estava de saída quando o teu irmão escarrou um golo de mescal na cara dos Alcaraces. Ele fê-lo a brincar. Via-se que o tinha feito para se divertir, porque fê-los rir a todos. Mas estavam todo bêbados. Odilón e os Alcaraces e todos. E de repente caíram-lhe em cima. Sacaram das facas e saltaram-lhe em cima e bateram-lhe até não deixarem de Odílon nada que servisse. Disso morreu.
   «Como vês, não fui ei quem o matou. Gostava que te desses conta que eu não me intrometi em nada.»
   Isso disse ao defunto Remigio.
   Já a lua se tinha metido do outro lado das azinheiras quando eu regressei à Cuesta de las Comadres com o camaroeiro vazio. Antes de voltar a guardá-lo, dei-lhe uns quantos mergulhos no arroio para lhe enxaguar o sangue. Eu ia precisar dele dentro de pouco tempo e não ia gostar de ver o sangue do Remigio a todo a hora.
   Lembro-me que isso aconteceu para aí em Outubro, na época das festas de Zapotlán. E digo que me lembro que foi for esses dias, porque em Zapotlán estavam queimando foguetes enquanto que do outro lado para onde atirei o Remigio se levantava um grande bando de urubus a cada estampido que davam os foguetes.
Disso me lembro."

 

Juan Rulfo
A planície em chamas
Cavalo de Ferro, 2003
Tradução de Ana Santos

Não ouves ladrar os cães

"Ali estava já a aldeia. Viu brilhar os telhados sob a luz da lua. Teve a impressão que o esmagava o peso do filho ao sentir que os joelhos se lhe dobravam no último esforço. Ao chegar ao primeiro cobertiço encostou-se sobre o lancil do passeio e soltou o corpo, frouxo, como se o tivessem desconjuntado.
   Desprendeu com dificuldade os dedos com que o filho tinha vindo a segurar-se ao seu pescoço e, ao ficar livre, ouviu como por todo o lado ladravam os cães.
   - E tu não os ouvias, Ignacio? - disse - Não me ajudaste nem sequer com esta esperança."



Juan Rulfo

A planície em chamas
Cavalo de Ferro, 2003
Tradução de Ana Santos

Deram-nos a terra

"Depois de tantas horas de caminhar sem encontrar nem uma sombra de árvore, nem uma semente de árvore, nem uma raiz de nada, ouve-se o ladrar dos cães.


Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se a ladrar os cães e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.
Viemos caminhando desde o amanhecer. Agorinha devem ser para aí umas quarto da tarde. Alguém se assoma ao céu, estica os olhos para onde o sol está pendurado e diz:
- São para aí umas quarto da tarde.
Esse alguém é o Melitón. Com ele vamos ver o Faustino, o Esteban e eu. Somos quarto. Eu conto-os: dois à frente, outros dois atrás. Olhos mais para trás e não vejo ninguém. Então digo para mim próprio Já pouco, aí às onze, éramos vinte e tal; mas pouco a pouco foram-se dispersando até não ficar mais nada que este novelo que somos nós.
Faustino diz:
- Pode ser que chova.
Todos levantamos a cara e olhamos uma nuvem negra e pesada que passa por cima das nossas cabeças. E pensamos:
Não dizemos o que pensamos. Há bastante tempo que se nos acabou a vontade de falar. Acabou-se com o calor. Uma pessoa conversaria com muito gosto noutro sítio, mas aqui dá muito trabalho. Uma pessoa põe-se a conversar aqui e as palavras aquecem na boca com o calor lá de fora, e secam-nos a língua até nos deixarem sem fôlego.
Aqui as coisas são assim."



Juan Rulfo

A planície em chamas
Cavalo de Ferro, 2003
Tradução de Ana Santos

pedro páramo

"Pensava em ti, Susana. Nas colinas verdes. Quando lançávamos papagaios na época do vento. Ouviamos lá em baixo o rumor vivo da aldeia enquanto estávamos por cima dele, no alto da colina, e, entretanto, fugia-nos o fio de cânhamo arrastado pelo vento. "Ajuda-me, Susana". E umas mãos suaves apertavam as nossas mãos. "Solta mais fio."
"O ar fazia-nos rir; juntava os nossos olhares enquanto o fio corria entre os dedos atrás do vento, até se partir com um leve estalido como se tivesse sido despedaçado pelas asas de algum pássaro. E lá do alto, o pássaro de papel caia às piruetas, arrastando a sua cauda de cordel, perdendo-se no ventre da terra.
"Os teus lábios estavam molhados como se o orvalho, os houvesse beijado".
"Lembrava-me de ti. De quando ali estavas, olhando-me com os teus olhos de água marinha."


"...Havia uma lua grande no meio do mundo. Os meus olhos perdiam-se, a olhar para ti. Os raios da lua filtravam-se sobre a tua cara. Não me cansava de ver essa aparição que tu eras. Suave, esfregada pela lua; a tua boca macia, húmida, irisada de estrelas; o teu corpo cada vez mais transparente na água da noite. Susana, Susana San Juan."


Juan Rulfo
Pedro Páramo
Cavalo de Ferro