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daniel faria

fiz a minha casa aqui
tu sabes porquê

escolhi construí-la sobre um rochedo
não para que perdure
mas para que não desabe quando o vento soprar
e por aqui o vento sopra sempre

sabes que não te evito
trago os bolsos cheios dos teus poemas

quando era pequeno trazia nos bolsos
pedras que apanhava no caminho

os poemas são cheios de palavras por dentro
e as palavras que há nas pedras perduram ao vigor dos cinzéis
são como casas construídas sobre rochedos
falam de nós se na infância as levámos nos bolsos
falam de nós como se fossem poemas
e nós escutamos a sua voz
porque expomos as nossas mãos ao silêncio

as pedras estão cheias de silêncio por dentro
como se fossem poemas

as palavras habitam o coração do silêncio
e se eu não sei contar as palavras que há dentro dos teus poemas
como posso saber quantas habitam o coração do teu silêncio



José Rui Teixeira
Quando o Verão Acabar
Quasi
Edições, 2002
Nunca mais regressaste a casa desde agosto.
O teu lugar à mesa ficou vazio. Eu passei a coleccionar
os nomes de coisas distantes, sentei-me a desenhar
sistemas de coordenadas, soletrei os hemisférios
das palavras, regressei às zonas epidérmicas do toque,
à fome anatómica dos gestos, às regiões endémicas
dos sismos, à solidão unívoca das margens dos rios,
ao silêncio lento das magnólias. Trouxe o domingo
para dentro de casa e guardei-o junto ao parto
em que me deste à luz.

Digo: Os dias são todos de morrer.
Nenhuma das memórias que tenho de ti
sabe negar essa evidência.


Nunca mais regressaste a casa desde agosto.
Eu fiquei sentado na soleira da porta à espera
da cura. Brincava ocasionalmente com o fogo,
porque era a tua voz que me trazia o outono,
era a fuligem nas tuas mãos que me ensinava
a hermenêutica dos dilúvios e a mecânica
da extinção das espécies.

Eu fiquei incendiado
em compartimentos sem atributos térmicos,
manuseando de um modo temerário coisas
como dogmas ou outros objectos teosóficos.

Mas nunca mais regressaste a casa e eu aprendi
a soletrar silenciosamente o teu regresso.



José Rui Teixeira
Para Morrer
Quasi Edições, 2003

4

Criava alfabetos nos sulcos que o tempo imprimia
na superfície do granito e soletrava as incisões
na estância milimétrica que cada uma ocupava
enquanto itinerário de silêncio ou epifania luminosa.

Depois a mesa enchia-se como um útero
e o fogo tomava o seu lugar e todos falavam
e riam e a casa em combustão para fora
como janelas ou portas entreabertas, e tudo
desmoronava.

Falavam e riam sob os escombros,
no segredo do fim como os talheres pousados
e os copos vazios. Depois morriam
com os ventres inchados e os olhos doentes.

Quando era criança mergulhava a cabeça
debaixo de água, porque a apneia trazia o silêncio
estrutural dos abismos e a iminência da morte.



José Rui Teixeira
O fogo e outros utensílios da luz
Quasi Edições, 2005

Quando eu era criança anoitecia

Quando eu era criança anoitecia
sobre a verdade intrínseca de haver ruas
pequenas e horizontes pequeno no fundo
das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira
da porta nas noites de Verão e as raparigas
sangravam demoradamente o calor
para dentro dos pulmões e cresciam-lhe
os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu
era criança a minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido.



José Rui Teixeira

Oráculo
Quasi Edições, 2006
Confesso que não compreendi o sentido em mutação
de qualquer referência ao modo como abres
as pernas e esperas que sacie a minha fome.
Disseram-me sempre coisas diferentes.
Aceito que não basta a extensão húmida do meu desejo
sobre a fragilidade da tua nudez,
o modo como o teu abdómen contrai,
como respiras tão perto e estrangulas a minha vontade.
Aceito que não bastaria perfurar-te os olhos
ou rasgar-te o ventre. Dentro de ti é um lugar
em que me situas à distância inteligível das coisas,
sempre que aceitas com condescendência
a minha intimidade, o modo vulnerável e subterrâneo
com que sinto subjugar-te.

Depois expulsas-me de ti sem dores de parto
e eu guardo a sensação de te habitar
com uma certa presunção de inocência.



José Rui Teixeira
Assim na Terra
Quasi Edições, 2005

quando eu era criança os velhos escolhiam

Quando eu era criança os velhos escolhiam
dias amarelos para morrer. Trazia
os pés descalços sobre muitos caminhos
como se não ouvisse a minha mãe
a chamar-me para dentro.
O céu pesava avermelhadamente sobre
a minha cabeça como o linho sobre os mortos.
Depois houve muitos invernos.
Intempéries de silêncio debaixo das arcadas
anunciaram o fim do mundo.

Quando eu era criança as paredes de casa
eram permeáveis à luz. A minha mãe
tinha a densidade interior de uma mesa
e braços extensíveis como archotes
para fora ou bosques de bétulas.
A minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido.
Quando eu era criança a tijoleira da cozinha
representava constelações e eu esperava
pacientemente o dia da ira do Senhor.

Quando eu era criança anoitecia
sobre a verdade intrínseca de haver ruas
pequenas e horizontes pequenos no fundo
das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira
da porta nas noites de verão e as raparigas
sangravam demoradamente o calor
para dentro dos pulmões e cresciam-lhes
os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu
era criança a minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido.



José Rui Teixeira
Oráculo
Quasi Edições, 2006

Horizonte

havia uma menina sentada
junto a uma janela

ela vestia uma velha camisa de dormir
larga
e tinha cabelos castanhos lisos
longos

tinha uma caixa de plástico vermelha
no colo
e olhava o horizonte cinzento
ao longe

talvez vivesse numa ilha
e talvez brincasse junto ao mar
nas tardes de verão

ela estava sentada
não sei bem se num banquinho de madeira
ou se num rochedo do tamanho do mundo

às vezes
os seus olhos pousavam suavemente
na caixa vermelha
e os seus pequenos dedos
imprimiam na superfície do plástico
antigas histórias
de gente que não mais voltara do mar

a casa era do tamanho
de uma janela que dá para o mundo

e a madeira cheirava a madeira
e alguma coisa nela me dizia
que outrora fora barcos

nenhum entardecer
se assemelhava ao que habitava
aquela janela

e a menina sabia-o
não sei bem como

os seus olhos cinzentos
olhavam o horizonte
com a paciência
de quem olha os horizontes

e por vezes
esticava o pescoço
para ver mais longe

ela descobrira sozinha
o significado da palavra longe

o tempo era
verdadeiramente
algo indistinto

e os cabelos
acariciados pela tempestade
gritavam
aos olhos mais atentos
a palavra eternidade

sempre que abria as mãos
caíam ao chão
punhados de terra
ainda misturada com raízes

e no seu colo pousava
aquela caixa vermelha de plástico liso
como uma mancha de sangue
no branco sujo
da camisa de dormir

de vez em quando
cantava
melodias tristes
que ela ouvira
certamente
da boca dos mortos
que escolheram aquele lugar
para olhar o horizonte

um dia
alguém vindo do mar
dissera-lhe ao ouvido
a palavra infinito
e ela rira

ria sempre
que alguém dizia
infinito

desde então
passava noites inteiras
na sua janela

nenhuma palavra
se lhe ouvia
mas ria-se às vezes
como se riem as crianças

há quem diga
que lhe morrera o mundo
e que perdera o tempo
numa noite de tempestade

outros dizem que aprendeu a falar com os mortos
e que passeia no fundo dos mares

que chama pelo respectivo nome cada estrela
e que tem uma música para cada pôr-do-sol

que guarda na pequena caixa de plástico
todos os sonhos dos homens

eu sei que ela tem uma janela nos olhos

imagino que corra na praia
e que caminhe sem dificuldades
na estrada do horizonte

julgo que é sozinha desde sempre
e que não gosta de andar com guarda-chuva

provavelmente
conhece mesmo o fundo dos mares

e nem sequer me custa acreditar que
se pudesse ver o que esconde
aquela caixa de plástico
ela me pareceria vazia



José Rui Teixeira
Quando o Verão Acabar
Quasi
Edições, 2002