Mostrar mensagens com a etiqueta georg trakl. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta georg trakl. Mostrar todas as mensagens

Cântico do despedido

 A Karl Borromäus Heinrich

Cheio de harmonias é o voo das aves. As florestas verdes
Juntaram-se ao crepúsculo às choupanas mais calmas;
Os prados de cristal da corça.
O murmurar do regato acalma o escuro, as sombras húmidas

E as flores do Verão, que tinem belas ao vento.
Já há luz de crepúsculo na fronte do homem pensativo.

E uma pequena lâmpada, o Bem, brilha no seu coração
E a paz da ceia; pois santificado é o pão e o vinho
Pelas mãos de Deus, e de olhos nocturnos contempla-te
Calmamente o irmão, pra repousar do jornadear espinhoso.
Oh o morar no azul cheio de alma da noite.

Amoroso envolve também o silêncio no quarto as sombras
____________________________________dos velhos,
Os martírios purpúreos, queixa de uma grande estirpe
Que agora se vai piedosa no solitário neto.

Pois mais radioso acorda sempre dos negros minutos da loucura
O paciente no limiar empedernecido
E com força o envolve o fresco azul e o declinar luminoso
_________________________________do outono,

A casa calma e as lendas da floresta,
Metida e lei e os caminhos lunares dos solitários.


Georg Trakl
Poemas
O Oiro do Dia, 1981
Antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela

A caminho

Ao anoitecer levaram o estranho prà câmara mortuária;
Um cheiro a bréu; o sussurro baixo de plátanos vermelhos;
O voo escuro das gralhas; na praça renderam a guarda.
O sol caiu em linhos pretos; sempre de novo volta este
_________________________anoitecer passado.
No quarto ao lado a irmã toca uma sonata de Schubert.
Baixinho o seu sorriso mergulha no poço em ruínas
Que murmura azulado no crepúsculo. Oh! que velha é a
_____________________________nossa raça.
Alguém fala em segredo lá em baixo no jardim; alguém
_______________________abandonou este céu negro.
Na cómoda cheiram maçãs. A avó acende velas de ouro.

Oh, como o Outono é suave. Baixo soam os nossos passos
______________________________no velho parque
Por baixo de altas árvores. Oh, quão grave a face de jacinto
_____________________________do crepúsculo.
A fonte azul a teus pés, secreta a calma rubra da tua boca,
Rodeada de sombra do sono da folhagem, do ouro escuro
__________________________de girassóis já murchos.
As tuas pálpebras estão pesadas de papoila e sonham baixo
______________________________na minha fronte.
Sinos suaves fazem tremer o peito. Nuvem azul,
a tua face caiu em mim no crepúsculo.
Uma canção à guitarra, que soa numa taberna estranha,
Os sabugueiros bravos além, um dia de Novembro há muito
___________________________________passado,
Passos familiares na escada ao crepúsculo, o aspecto
_________________________de traves crestadas,
Uma janela aberta em que ficou uma esperança doce -
Indizível é tudo isto, ó Deus, que abalado se cai de joelhos.

Oh, que escura é esta noite. Uma chama purpúrea
Apagou-se na minha boca. No silêncio
Morre a harpa solitária da alma apavorada.
Deixa lá, quando ébria de vinho a cabeça mergulha na
___________________________________sarjeta.

Georg Trakl
Poemas
O Oiro do Dia, 1981
Antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela

Salmo

Dedicado a Karl Kraus

Há uma luz que o vento apagou.
Há uma taberna no campo, de onde à tarde sai um bêbado.
Há um vinhedo queimado e negro com covas cheias de aranhas.
Há uma sala que caiaram a leite.
Morreu o louco. Há uma ilha no mar do sul
Para receber o deus do sol. Rufam os tambores.
Os homens executam danças guerreiras.
As mulheres dão às ancas cingidas de trepadeiras e flores de fogo,
Quando o mar canta. Oh, o nosso paraíso perdido.

As ninfas deixaram as florestas douradas.
Enterra-se o forasteiro. Depois começa a cair uma chuva cintilante,
Aparece o filho de Pã sob a forma de um trabalhador da terra
Que passa o meio-dia a dormir no asfalto em brasa.
Há rapariguinhas num pátio, com vestidinhos cheios de uma pobreza que
trespassa o coração!
Há quartos cheios de acordes e sonatas.
Há sombras que se abraçam frente a um espelho cego.
Às janelas do hospital aquecem-se os convalescentes.
Um paquete entra o canal trazendo sangrentas epidemias.

A estranha irmã volta a aparecer nos maus sonhos de alguém.
Brinca tranquila nas avelaneiras com as estrelas dele.
O estudante, talvez um sósia, olha-a longamente da janela.
Atrás dele está o seu irmão morto, ou então desce a velha escada de caracol.
No escuro dos castanheiros empalidece a figura do jovem noviço.
O jardim está imerso no entardecer. No claustro esvoaçam os morcegos.
Os filhos do porteiro deixam de brincar e buscam o oiro do céu.
Acordes finais de um quarteto. A pequena cega atravessa a alamada a tremer,
E mais tarde a sua sombra vai tacteando muros frios, envolta em contos de
fadas e lendas de santos.

Há um barco vazio que ao cair da noite vai descendo o canal negro.
Na obscuridade do velho asilo há ruínas humanas em decadência.
Os órfãos mortos jazem junto aos muros do jardim.
De quartos cinzentos saem anjos com asas sujas de excrementos.
Gotejam-lhes vermes das asas amareladas.
A praça da igreja está sombria e mergulhada no silêncio, como nos dias da
infância.
Sobre solas de prata deslizam vidas passadas
E as sombras dos condenados descem às águas soluçantes.
No túmulo, o mago branco brinca com as suas serpentes.


Em silêncio, abrem-se sobre o Calvário os olhos dourados de Deus.



Georg Trakl

Outono Transfigurado
Assírio e Alvim, 1992
Tradução de João Barrento

Os Malditos

1.
Cai o dia. Vão as velhas à fonte.
Vermelho a rir no escuro do castanheiro.
O pão traz, a escorrer, da loja um cheiro,
Na cerca os girassóis baixam a fronte.

Na taberna do rio o bulício não estanca.
Tilintam as moedas, a guitarra trina.
Há uma auréola a descer sobre a menina
Esperando à porta de vidro, doce e branca.

Oh, o brilho azul, que em vidraças desperta,
Envolto em espinhos, negro e enfeitiçado!
Um escrivão torto sorri meio desvairado
Para a água que o temporal agita.



Georg Trakl
Outono Transfigurado
Assírio & Alvim, 1992
Tradução de João Barrento