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«Mas ninguém se atrevia a dizer-lhe nada, porque todos o temiam. Sim, na idade em que a maior parte das pessoas se encolhem o mais que podem, como que para se desculparem de continuarem presentes, Louis fazia com que o temessem e comportava-se como bem lhe dava na gana. Até a sua jovem esposa renunciara a forçá-lo a arriar a bandeira, valendo-se da cona, esse ás de trunfo das mulheres novas. Porque sabia o que ele faria caso ela negasse a entreabrir-lha. Mais, Louis ia ao ponto de lhe exigir que lhe facilitasse a tarefa, servindo-se de meios que ela considerava frequentemente exorbitantes. E ao mais pequeno sinal de revolta da parte dela, ele ia ao lavadouro buscar a pá de bater e espancava-a até ela reconsiderar. Diga-se entre parênteses.»
(...)

Samuel Beckett
Malone está a morrer
Dom Quixote, 1993
Tradução de Miguel Serras Pereira
«Deixarei de responder às perguntas. Tentarei também não as fazer. Há-de ser possível enterrar-me, deixarei de ser visto à superfície. Daqui até lá fico a contar histórias de mim para mim, se for capaz. Não serão histórias do mesmo género que antes, mais nada. Serão histórias nem bonitas nem feias, calmas, nelas já não haverá fealdade, nem beleza, nem febre, será quase vida, como o artista. O que é que eu disse agora? Não tem importância. Prometo-me muita satisfação, uma certa satisfação. Estou satisfeito, aí está, estou pronto, reembolsam-me, já não preciso de nada. Deixem-me começar por dizer que não perdoo a ninguém. Desejo a todos uma vida atroz e depois as chamas e o gelo dos infernos e nas execráveis gerações vindouras uma memória honrada. Por esta noite basta.»
(...)

Samuel Beckett
Malone está a morrer
Dom Quixote, 1993
Tradução de Miguel Serras Pereira
«Estou no quarto da minha progenitora. Sou eu quem cá vive agora. Não sei como cá cheguei. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente. Ajudaram-me pois. Sozinho, não teria chegado. Esse fulano que vem cá todas as semanas, talvez seja graças a ele que eu estou aqui. Ele diz que não. Dá-me um dinheirito e leva as folhas. Tantas folhas, tantas. Sim senhor, trabalho, um pouco como antigamente, simplesmente agora já não sei trabalhar. O que não tem importância, suponho. Quanto a mim, gostaria agora de falar das coisas que me restam, de fazer as minhas despedidas, de acabar de morrer. Eles não querem. Sim, são muitos, parece. Mas é sempre o mesmo que cá vem. Fará isso mais tarde, diz ele. Muito bem. Já não tenho muita vontade, como vêem. Quando vem buscar as folhas, torna a trazer as da semana anterior. Vêm marcadas com sinais que não entendo. Aliás, nem as releio. Quando não faço nada, não me dá nada, e ralha comigo. E no entanto, eu não trabalho por dinheiro. Por que trabalho, então? Nem sei. Não sei grande coisa, com franqueza. A morte da minha mãe, por exemplo. Estaria ela já morta quando cheguei? Ou só terá morrido mais tarde? Por morta quero dizer pronta para enterrar. Não sei. Talvez nem a tenham ainda enterrado. Seja como for, sou eu quem tem agora o quarto dela. Deito-me na cama dela. Faço no penico dela. Tomei o lugar dela. Só me falta um filho. Devo ter um algures, quem sabe? Mas não creio. Seria agora velho, quase tanto como eu. Era uma rica sopeira. Não o verdadeiro amor. O verdadeiro amor era com outra. Já vão ver. Esqueci-lhe outra vez do nome. Tenho às vezes a impressão que cheguei a conhecer o meu filho, que me ocupei dele. Depois digo para comigo que isso era impossível. Impossível eu ter podido ocupar-me de alguém. Esqueci-me também da ortografia e de metade das palavras. O que, parece, não tem grande importância. Isso queria eu. É um tipo tão bizarro, este que me vem cá ver. Vem aos domingos, suponho, não falha um. Aos outros dias não está livre. Foi ele quem me disse que começara mal, que era preciso começar de outra maneira. Isso queria eu. Comecei no princípio, vejam lá, como um bandalho. Ora aí têm o meu princípio. Mesmo assim, se bem compreendi, vão guardá-lo. O trabalhão que me deu. Aqui o têm. Custou-me muito. Era o princípio, não sei se compreendem. Ao passo que, agora, é quase o fim. Será melhor, o que faço agora? Não sei. O problema não está aí. Aqui têm o meu começo. Algum significado deve ter, visto que o guardam. Aqui o têm.»


Samuel Beckett
Molloy
Editorial Presença, 1964
Tradução de Rui Guedes Da Silva
__Murphy tinha estado recentemente na cidade de Cork, Irlanda, a estudar com um homem chamado Neary, o qual, por essa altura, era capaz de fazer parar o coração sempre - ou quase sempre - que assim o desejava, e de o manter parado durante todo - ou quase todo - o tempo que queria. Esta rara faculdade, adquirida depois de anos de estudo ao norte de Nerbudda, na Índia, Neary só a aplicava em circustâncias especiais, reservando-a para as situações realmente insuportáveis, como quando, por exemplo, tinha vontade de beber e não podia, ou se encontrava num grupo de Galeses sem poder escapar-se, ou sentia os formigueiros duma forte inclinação sexual que não podia satisfazer.
__Não era com o propósito de conseguir um coração assim que Murphy tinha ido sentar-se aos pés de Neary, porque sabia que um tal órgão em breve se revelaria fatal para um homem do seu temperamento, mas simplesmente com a esperança de obter para o seu um pouco do que Neary, então um Pitagórico, chamava a Apmónia. Isto porque Murphy tinha um coração de tal maneira irracional que não havia médico que conseguisse descobri-lhe o segredo. Inspeccionado, palpado, auscultado, radiografado ou cardiografado, era um coração como os outros. Mas, apenas coberto e no cumprimento das funções era como Petruchka prisioneiro, ora fazendo um tal esforço que parecia ir imobilizar-se a todo o instante, ora num tal estado de ebulição que dir-se-ia ir rebentar. Era ao ponto médio entre estes dois que Neary chamava Apmónia. Quando se fartou de lhe chamar Apmónia, começou a chamar-lhe Isonomia. Quando se cansou de lhe chamar Isonomia, chamou-lhe Harmonia. Mas, fosse o que fosse que lhe chamasse, no coração de Murphy é que isso não entrava. Neary não conseguia conciliar os contrários no coração de Murphy.
__As suas despedidas foram memoráveis.
Neary acordou de um dos seus sonos de pedra e disse:
- Murphy, a vida não passa de figura de fundo!
- Um lento regresso ao lar - respondeu Murphy.
(...)


Samuel Beckett
Murphy
Editorial Presença, 1961
Tradução de José Manuel Simões
queria que o meu amor morresse
e a chuva chovesse sobre o cemitério
e sobre mim pelas ruas onde eu andar
chorando aquela que julgou amar-me



Samuel Beckett

As Escadas não têm Degraus
Cotovia, 1990
Tradução de Miguel Esteves Cardoso
vêm
diferentes e parecidas
com cada uma é diferente e parecido
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é parecida



Samuel Beckett

As Escadas não têm Degraus
Livros Cotovia, 1990
Tradução de Miguel Esteves Cardoso

Cascando

1

fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas


2

a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a revolver outra vez no coração
amor amor amor pancada da velha batedeira
pilando o soro inalterável
das palavras

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem


3

a não ser que te amem



Samuel Beckett

As Escadas não têm Degraus
Cotovia, 1990
Tradução de Miguel Esteves Cardoso

samuel beckett






samuel beckett
1906 - 1989


"O hábito é o balastro que prende o cão ao seu vómito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito."

o primeiro amor

Um dia, ao regressar da casa de banho, dei com a porta do meu quarto fechada à chave e as minhas coisas empilhadas diante da porta. Vejam lá como eu tinha prisão de ventre nessa época. Era a ansiedade que me provocava prisão de ventre, acho eu. Mas será que eu tinha realmente prisão de ventre? Não creio. Calma, calma. E no entanto devia ter, porque como explicar de outra maneira essas longas, essas atrozes permanências nas retretes, nos W.C.? Onde eu não lia nunca, nem aí nem noutros sítios, não sonhava nem reflectia, olhava vagamente para o almanaque suspenso de um prego diante dos meus olhos em que se via a imagem a cores de um jovem barbudo rodeado de carneiros, devia ser Jesus, separava as nádegas com as mãos e soltava, um! hã! dois! hã!, com movimentos de remador, e o meu único desejo era ir para o quarto e deitar-me. Era mesmo prisão de ventre, não era? Ou será que confundo com diarreia? Tudo se mistura na minha cabeça, cemitérios e casamentos e as diferentes espécies de fezes.



Samuel Beckett
O Primeiro Amor
Hiena, 1985