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Quarto solilóquio

Distante, a voz da morte - alheia ou própria -
conjura actos fiéis: promessa inteira.
Alguma ternura, quando muito
circula uma linguagem verdadeira.

Retirámos à morte o sentido
que recebemos de qualquer maneira.



Ruy Cinatti
Paisagens Timorenses com Vultos
Relógio d'Água, 1996

Solidão na Cidade e Sonho

«O que eu desejo,
ó luarenta cidade»,
disse o rio,
«é que ninguém te toque.»

Imóvel, paredes mestras
afundando-se na sombra.
Ruas prolongadas,
abertas em campo grande,
fechadas em poços negros,
por onde tirita, de febre,
um homem.

Eu, rio apreendido,
captado veio d' água
na rede do espírito
que deambula sem norte.

Qualquer parcela de mim
que pouco a pouco se eleva
no nevoeiro nascente
que do rio sobe
e a cidade cobre.

Nenhum pássaro cantou
na madrugada. Eu corri
contra a força de uma vela,
e tu, árvore imóvel.

Som a tempo, respondi
marulhar d' águas nas folhas
caindo no cais deserto
onde se aproxima um homem.

«O que eu desejo,
ó luarenta cidade»,
disse o rio,
«é que ninguém te toque.»



Ruy Cinatti
Tempo da Cidade
Colecção Forma
Editorial Presença, 1996

Num Jardim

O cisne imaculado atira, atrai
seu bico feroz contra as migalhas
que lhe atiram
para o atraírem.

Ensina às crianças que o seguiram
lições de cortesia.
Aos pais, que as seguram, o movimento
de um corpo imaculado cortejando
aérea água
- onda veloz
que as crianças detêm com a mão.



Ruy Cinatti
Tempo da Cidade
Colecção Forma
Editorial Presença, 1996

Modernidade

Gostaria de escrever poemas
amados pelos inimigos actuais.
Gostaria mas não faço (favores).
Se os fizesse seria inimigo de mim próprio,
fetal
como os demais.

Sei que sou lento e que busco a forma
num carro de bois.
Os vincos abertos na memória
reflectem-se na estrada.

Adversos, não,
os tais poemas que gostariam tanto
os críticos d'hoje.
Sinto-me perplexo não sei onde.
Não estou a mais.

(Babo-me de cócegas, ai, ai!...
saltam-me fusos dos olhos...)

Portanto, avante
mútuo descante.
Subitamente bebido à mesma fonte,
desanuvio-me.



Ruy Cinatti
Archeologia ad Usum Animae
Colecção Forma, Presença, 2000

Mandato Social

Somos tão poucos mas vale a pena construir cidades.
Denunciar a tinta
gasta em discursos.
Os mitos criam-se de baixo para cima.
As plantas enraízam
e só depois recortam o céu
ou são colhidas para efeitos vários.
O boletim metereológico diz que vai chover,
mas nunca se sabe se vem um ciclone,
e então salve-nos Deus
se não soubermos prever
os alicerces,
o boato dito pelo telefone,
o sonho, esse mesmo, em que se morre
de estupidez, o coração a bater
como de cavalo que ganhou a corrida
e é levado pelo dono
ao parque do hipódromo.
Basta de balancé
entre o que é, o que virá, o que não é.
Basta de poetas com as mãos cruzadas
e de operários a cair de sono.
Basta de velhotes impotentes
a fornicar sabedoria antiga.
O mandato social é desobriga
como na Páscoa a comunhão dos homens.
Somos poucos mas vale a pena construir cidades
e morrer de pé.



Ruy Cinatti
Archeologia ad Usum Animae
Colecção Forma, Presença, 2000