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Calçada do Combro/80

Tal o diabo ausente do inferno
me apareces à esquina desta rua,
ou como o manipanso
no seio da cartolina resguardado
surges-me de improviso
e sempre me perturbas
quando passas cosido nas paredes
e aí roças as calças
sujas pelas nódoas simétricas
que se juntam por cima da bainha;
e nas veias circula Preludin
e na cara desce um véu de escuridão
que subtrai
ao convívio dos outros
teu sucumbido modo.
Contra as mulheres que se atarracam
a segurar nos filhos
destacas teu desenho,
vestes agora de cinzento escuro
e calas aquilo a que chamas amor,
a sórdida invenção ocidental
 - como Graham Greene pensaria
à saída de um quarto de aluguer.


Fátima Maldonado
Os presságios
Editorial Presença, 1983

Uppercut

Passava-se por baixo de uma porta
que parecia ter sido retirada
da boca submersa de um vulcão.
Ao fundo dois suecos procuravam
a chave no granito extraviada.
Suspensa da janela
uma voz salitrosa fabricou um enigma-
Viram a cabeça tentando decifrar
a esfíngica toada,
mas a voz contida pela pedra
sentada sobre as patas leoninas
negou-se à tradução.
Descia-se pela rampa
e no passeio a buganvília estava
sobre o muro contra o céu.
Deixara de assombrar-me
ficara ao abandono
em volta do meu quarto
no sítio onde a infância
sozinha apodreceu.
Mas agora, acossada no ringue da cidade,
assentara um directo na face azul do astro.

Ao ver-se acometido
o cobalto da cara purpureou num ápice.
No malar azulado a buganvília pôs,
precipitadamente,
um adesivo roxo.


Fátima Maldonado
Os presságios
Editorial Presença, 1983

Crepúsculo I

Quando às vezes te deixo
desamparado e nu
como se magoado depusesses
teu verdento contorno
na paz de um mausoléu
e me fitas ao longe
tocando-me ao de leve
na anca recolhida,
o algodão da saia a subjuga,
com a ponta dos olhos
a baça íris uiva
da cor do figo murcho
de quem só pensa em seus próprios retábulos
ansiosas epígrafes
de infância acometida por vária derisão.
Velado de negrura
zelas pelo teu recato,
no deserto lampejam as pistolas
e mais não te derimo
não forço a tua mão
não ouso recusar a sede que me ofereces
e se te fosse escrava
oferta, aberta, rouca
não duvido que fosse
tua mão amputar
a língua que navega à deriva
por entre o silabar coralíneo da troça
e revulsa e agita amotinando a boca.


Fátima Maldonado
Os presságios
Editorial Presença, 1983

A Adoração dos Magos

Aquela noite a três
foi como desenhar a maçarico
numa chapa de ferro
um vento fóssil, um vítreo monograma,
o rasto ao exceder o voo de uma carriça
cativo flutua no vidro de uma jarra.
Suspensos percorriam na polpa da vertigem
léguas sobre o abismo.
Pendentes do zinco da manhã
à espera do início
do seguinte espectáculo
dispersaram o sémen
nas chaminés da noite leprosa.
Nos terraços da luta percorreram
as danças mais funestas da ternura.
Num combinar astuto de referências
abriram-se os portais
e despediram galopes penitentes
os animais libertos
das tecidas mansões.


O unicórnio branco depôs sua cabeça
nos braços da senhora,
compadecida dama,
e lhe tocou fiando suas lãs
entre as unhas crivadas por metralha.
Sinto-lhes o assédio,
em cada joelho poisam
um queixo armadilhado,
a barba já cresceu desde o jantar.
«É a adoração dos magos» - murmuras tu –
fincando na ravina os dedos imanados
enquanto o tronco investe
a pele percorrida por venosas nascentes.
Olho por sobre um ombro
e surpreendo a treva
ofendida esgueirar-se
entre os dedos da porta.
O noctívago galgo
devora a escuridão às cegas no recinto.
Em breve a luz envolve
de opalinas unções as cabeleiras.
Iminentes desenham-se as saídas,
o croissant no prato, o garoto no copo,
o revestir a pele doutros fatos
a tragédia jazente nos horários.
Aquela noite a três foi sem remédio.



Fátima Maldonado
Os Presságios
Editorial Presença, 1983

cerimónia funesta

O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.



Fátima Maldonado
Vida Extenuada
& etc, 2008

Quando a conheci

Quando a conheci
interessava-me
pela guerra,
suplantavam-me nos torneios
se me distraía
com decotes ou cismas,
entre amigos espalhava
dobrões nos bordéis,
a cidade era doce nas fontes,
pórticos saravam travessias.
Ela degolou tudo,
honrei-lhe o corpo
cravando tão fundo quanto pude
os pregos da paixão,
entrelacei espinhos do amor
numa coroa real,
e no escudo
mandei pintar insígnias
da casa a que pertence.
Mas traiu-me
e matei-a.



Fátima Maldonado
Cadeias de Transmissão
Frenesi, 1999

Os presságios

Aquela tarde no jardim da Graça
ao desviarmos os olhos da cidade
uma lava já morta apodrece no monte
e o vento magoa a nave da igreja.
Os presságios me seguem
como o guarda descansa
na sombra de uma porta
e espera sua ordem de partir
e sente estremecer no envelope
recado impaciente.

Os presságios me surgem
o mensageiro na cal se recorta
e vem de encontro à pedra
depositar a carta
sabendo de antemão
que tudo lhe negaram
e só lhe facilitam
este surdo contacto
este mediano conhecer.
É feroz a recusa
do oculto bilhete.



Fátima Maldonado
Os presságios
Editorial Presença, 1983

Às avessas da pele

Para o Al berto,
no dia da sua morte


A noite progride puxada à sirga
a sombra ao alastrar
nem por isso amansou
adolescência
é verdade
irritaste-me
até dizer basta
encenaste de mais
assustaste de menos
mas a linha cruzando
nas artérias
aparava derrames
nas astúcias
às avessas da pele
operavas a meio
da comunicação,
entre patetas
discorrias dislates
menino Caravaggio
com a mão no pescoço
pressentiste o ataque,
o lobo derrotou-te
de mais o provocaste,
a fala sem parança
a pressa
cortar a direito
na cadeirinha transportado,
criados aos varais
gritando que se afastem
para que chegue cedo
à gravação directa,
na dor ao domicílio
tinhas certa grandeza
idólatra, sentimental, português.
Agora que te foste
reconheço:
razão tinhas em expor-te
a pressa que levavas
em agarrar o pai
já muito adiantado
dava-te pouca trégua
mas tenho que dizer-te:
apesar dos colóquios,
da parva constrição
à volta do Pessoa,
da sôfrega mania
sentado de cachecol
ao lado de imbecis
eras, poeta,
profeta do amor
que sempre interpelaste
capaz de manter
debaixo do teu mar
a leva das cabeças
imunes à ternura
ao lírico desmando
de amar perdidamente
a sombra de ti próprio
nos pobres mais devassos
nos olhos mais traidores
Florbela te vinhas
tão cego lusitano
lá conduziste a nau
à soga dos engates
os bairros, as calçadas
à esquina dos jardins
derramaste a mirra
nos príncipes reais
e vais-te de repente
e nós de boca aberta
sobre esta papelada
« porque onde termina o corpo,
deve começar outra coisa, outro corpo.»



Fátima Maldonado
Vida Extenuada
& etc, 2008

Quiseste-me e depois foste desmoronando

Quiseste-me e depois foste desmoronando
glóbulo a glóbulo
alteraste sistemas rebentando artérias
devassaste lugares
deixando vestígios de razão
como sobram nas neves mais eternas
as latas de cerveja os restos do fiambre
em papéis suados de gordura
é urgente fuzilar inúteis
o que invade e destrói o nosso próprio concentrado
campo
lógicas ordenam e revelam
organizam as cinzas do que não se mede
atrevem-se a manchar
sítios remotos
o que de cada ser faz parte incerta
na deriva real da procura
tentam riscar sagrados hipotálamos
com o ponteiro dos factos
a geometria a que te condenaste
vai encerrando os dados que precisas
para jogos de risco, outras encantações
e sempre mais couraças
inerme comandado por regras brutas
como escamas de aço
suturas bolas de natal
sem perceber que pouco tempo existem
irisadas subitamente estalam.



Fátima Maldonado
Vida Extenuada
& etc, 2008

O filho pródigo

Tu tinhas uma esperança que era uma prisão.
António Gancho


Desperdiçaste na vida tanto lance
arma de falhanços disparaste
em profanos casinos açaimando
misérias
da roleta fizeste teu sudário
magoado foste o mais que tu pudeste
à terra impedida redenção
sem dó trucidando searas
rasuraste cortiças
por fim escolhida cama
o leito do pedinte mendigaste
enquanto assassinavas hectares sobre hectares
montes de sangue limpo
onde raposas vinham regougar
as reses pacientes
à mercê do fogo e do arado
dos ferros, do teu ferro gravado no flanco
homens desinquietados vinham
ao cheiro da brasa no pelo já crestado
e riam e riam
sem que tu prevenisses a extensão da desgraça
espezinhados costumes
os gestos centenário entregues ao salitre
cão sarnento amarrado
ao repúdio dos teus
inábil no firmar da coluna partida
exigias à fraqueza violências
não fazia diferença quem fugisse
era preciso cada vez pior
fogueira que tu próprio atiçaste
no pelourinho onde te prendeste
incapaz de qualquer apostasia
ou de serrar o ramo onde fizeras ninho
teu pai havia-o plantado
julgando ver ainda heráldica ramagem
mas ao desaparecer restava só um cepo
onde sucumbiste
e foste aí mesmo degolado
nem rico nem pobre
apenas desgraçado.



Fátima Maldonado
Vida Extenuada
& etc, 2008