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Talvez certa manhã andando por um ar de vidro,
árido, voltando-me, veja acontecer assombrado:
o nada por cima dos meus ombros, e atrás de mim
o vazio, com um terror de embriagado.

Depois, como sobre um écran postar-se-ão lado a lado
árvores casas colinas para o costumado credo.
Mas será tarde demais; e eu escapar-me-ei calado
por entre os homens que não olham para trás, com o meu segredo.


Eugenio Montale
Poemas
Assírio & Alvim,  2004

As rimas

As rimas são mais maçadoras do que
as senhoras de São Vicente: batem à porta
e insistem. Repeli-las é impossível
mas como estão do lado de fora suportam-se.
O poeta decente afasta-as
(as rimas), esconde-as, faz batota, tenta
o contrabando. Mas as beatas ardem
de zelo e mais cedo ou mais tarde (rimas e velhotas)
batem de novo à porta e são sempre as mesmas.


Eugenio Montale
Poemas
Assírio & Alvim,  2004
Tradução, prefácio e notas de José Manuel de Vasconcelos

Os limões

Escuta, os poetas laureados
movem-se apenas entre plantas
com nomes pouco comuns: buxos, ligustros ou acantos.
Por mim, prefiro os caminhos que vão dar às fossas
cobertas de ervas onde em lameiros
meio secos os miúdos apanham
alguma enguia definhada:
as veredas que bordejam as ravinas,
descem por entre os tufos dos canaviais
e entram pelas hortas, por entre os limoeiros.

É melhor ainda quando a algazarra dos pássaros
se cala engolida pelo azul do céu:
mais claro se ouve o sussurro
dos ramos amigos no ar que quase não se move,
e as impressões deste cheiro
que não consegue separar-se da terra
e faz chover no peito uma doçura inquieta.
Aqui das divertidas paixões
por milagre cala-se a guerra,
aqui também nós os pobres temos a nossa parte de riqueza
que é o cheiro dos limões.

Olha, nestes silêncios em que as coisas
se abandonam e parecem perto
de trair o seu último segredo,
esperamos por vezes
descobrir um erro da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não liga,
o fio do novelo que finalmente nos leva
ao centro de uma verdade.
O olhar procura derredor,
a mente indaga harmoniza separa
no perfume que se espalha
quando o dia mais enfraquece.
São os silêncios nos quais se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma perturbada Divindade.

Mas a ilusão perde-se e o tempo transporta-nos
até ruidosas cidades onde o azul se mostra
apenas em pedaços, no alto, entre os telhados.
Então a chuva cansa a terra: concentra-se
o tédio do inverno sobre as casas,
a luz torna-se avara – a alma amara.
Quando um dia, de um portão entreaberto
por entre as árvores de um pátio
se nos depara o amarelo dos limões;
e o gelo do coração se desfaz,
e ao peito afluem
as suas canções
as trombetas de ouro da solaridade.


Eugenio Montale
Poemas
Assírio & Alvim,  2004
Tradução, prefácio e notas de José Manuel de Vasconcelos
DESAPARECERAM AGORA os círculos de ansiedade
que percorriam o lago do coração
e o estremecer vasto da matéria
que empalidece e morre.
Hoje uma vontade de ferro varre os ares,
arranca os arbustos, maltrata as palmeiras
e no comprimido ar escava
grandes sulcos com cristas de baba.
Todas as formas se abalam no tumulto
dos elementos; é um solitário uivo, um bramido
de existências rasgadas: tudo destrói
a hora que passa: viajam pela cúpula do céu
não se sabe se folhas ou aves - que se apagam.
E tu que toda te agitas entre o baque
dos ventos desarvorados
e apertas contra ti braços cheios
de flores que ainda não nasceram;
como sentes hostis
os espíritos que convulsa terra
sobrevoam em enxames,
a minha vida frágil, e como amas
agora as tuas raízes.


Eugenio Montale
Poemas
Assírio & Alvim,  2004
Tradução, prefácio e notas de José Manuel de Vasconcelos