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«Falar com jovens não conduz a nada, pensei eu, e quem afirma o contrário é hipócrita, pois os jovens não dizem nada às pessoas já de uma certa idade e aos velhos, esta é que é a verdade; não tem interesse absolutamente nenhum o que dizem jovens a pessoas idosas, absolutamente nenhum, pensei eu, e é a maior hipocrisia afirmar o contrário. Foi sempre moderno dizer que os velhos devem falar com os jovens, porque os jovens têm muito a dizer aos velhos, mas o contrário é que é verdade: os jovens não têm absolutamente nada a dizer aos velhos. Obviamente os velhos teriam alguma coisa a dizer aos jovens, mas os jovens não entendem o que os velhos lhes dizem, porque não podem de modo nenhum entendê-lo e, por isso, também de modo nenhum o querem entender.»


Thomas Bernhard
Derrubar Árvores
Assírio & Alvim, 2007
Tradução de José A. Palma Caetano
«Fui eu que lhes virei as costas, não elas a mim, pensei eu. Corremos durante anos atrás delas e mendigamos a sua amizade, pensei eu, e uma vez que temos a sua amizade, já essa amizade não nos interessa mais. Fugimos delas, elas alcançam-nos e apoderam-se de nós e nós submetemo-nos a elas, a cada uma das suas ordens, pensei eu, e nelas nos abandonamos, até que ou morremos ou nos evadimos. Fugimos delas e elas alcançam-nos e esmagam-nos. Corremos atrás delas, imploramo-lhes que nos recolham e elas recolhem-nos e matam-nos. Ou procuramos evitá-las desde o princípio e conseguimos evitá-las durante toda a vida, pensei eu. Ou caímos na sua armadilha e sufocamos. Ou escapamos-lhes e difamamo-las, caluniamo-las, propalamos mentiras sobre elas, pensei eu, para nos salvarmos caluniamo-las,onde quer que possamos, para delas nos salvarmos, fugimos delas para defesa da nossa vida e acusamo-las por toda a parte de serem elas as culpadas de tudo o que nos acontece. Ou elas escapam-se-nos e caluniam-nos e acusam-nos,propalam toda a espécie de mentiras sobre nós, para se salvarem, pensei eu. Julgamos que já estamos mortos e encontramo-las e elas salvam-nos, mas nós não lhes ficamos agradecidos por isso, por nos terem salvo,pelo contrário, amaldiçoamo-las, odiamo-las por isso, perseguimo-las toda a nossa vida com o nosso ódio, por nos terem salvo. Ou insinuamo-nos na sua intimidade, elas repelem-nos, nós vingamo-nos e caluniamo-las, dizemos mal delas por toda a parte, perseguimo-las com o nosso ódio em última instância até à sepultura. Ou elas ajudam-nos no momento decisivo e nós odiamo-las, porque elas nos ajudaram, como elas nos odeiam, porque nós as ajudamos, pensei eu na poltrona de orelhas.»


Thomas Bernhard
Derrubar Árvores
Assírio & Alvim, 2007
Tradução de José A. Palma Caetano
«Mas também o que é que têm para dizer jovens escritores, pensei eu, que imaginam saber tudo e que afinal só são capazes de achar tudo ridículo, sem conseguirem justificar por quê ridículo. Disso só se apercebem muito mais tarde, pensei eu; primeiro acham tudo ridículo sem saber por quê, isso são eles, só mais tarde é que sabem por quê, mas então já não o dizem, porque já para isso não têm qualquer razão. Era a gargalhada tola e oca e estúpida inteiramente característica desta juventude dos nossos perversos e estúpidos e perigosos anos oitenta que os dois soltavam, pensei eu. Eles riem às gargalhadas e acham tudo ridículo e ainda nem sequer publicaram um único livro, pensei eu, como tu há trinta anos. Eles só têm a sua gargalhada, nada mais, e dão-se por satisfeitos com essa sua gargalhada. Eles só têm essa gargalhada e toda a catástrofe da vida ainda na sua frente, pensei eu. Eles só têm essa gargalhada e nem sequer uma justificação para ela.»


Thomas Bernhard
Derrubar Árvores
Assírio & Alvim, 2007
Tradução de José A. Palma Caetano

O meu bisavô era negociante de banha

O meu bisavô era negociante de banha
e hoje
toda a gente o conhece ainda
entre Henndorf e Thalgau,
Seekirchen e Köstendorf,
e todos ouvem a sua voz
e se juntam
à sua mesa,
que era também a mesa do Senhor.
Em 1881, na Primavera,
decidiu-se pela vida: plantou
uma parreira junto à parede da casa
e reuniu os mendigos;
a mulher, Maria, a da fita preta,
deu-lhe mais mil anos.
Ele inventou a música dos porcos
e o fogo da amargura,
falava do vento
e do casamento dos mortos.
Ele não me daria nenhum pedaço de toucinho
para os meus desesperos.


Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

Diante da Aldeia

Os rostos que emergem dos campos perguntam-me
pelo regresso.
O meu grito não perturba a andorinha
pousada no ramo partido. Sombria
é a minha alma, que o vento impele
para o mar, a fim de cheirar o sal da terra.
A minha lenda é mortal.
Debaixo da árvore, que é semelhante ao meu irmão,
conto as estrelas dos mareantes.


Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta
estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem
pergunto por mim me viu.
Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens
por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.

Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,
que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,
os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.

A terra fala uma linguagem que ninguém entende,
porque é inesgotável  - dela arranquei estrelas e tirei pus
nos desesperos
e bebi vinho do seu jarro,
que é feito das minhas dores.

Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus
atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante
e os dois chegam juntos ao meu coração,  que anuncia a ruína das
_______________________________________almas.


Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas
e causam graves danos nos monumentos.
Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.
Debaixo da porta está afixado um mandamento:
_______________NÃO MATARÁS
--- mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,
que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.
Leio essas notícias como uma fábula,
de uma faca para a outra - sem me aborrecer.
Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme
sob o movimento da mão de Deus.


Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

Chuva de Verão

Pássaros, calem-se,
    nenhuma tarde
me consola, por cima
   da ponte cai a chuva
na minha tristeza, nenhum
    rumor do Verão
me faz mudar,
    nenhum vento
me impede de dormir...

    Amanhã de manhã
não quero ir
    para debaixo de nenhuma árvore,
as minhas pálpebras anseiam pelo sono
    do Inverno e da neve,
quero, à chuva,
    regressar
às folhas
    e às arcadas sombrias.

Pássaros, calem-se, tenho frio,
    a minha sombra
cresce por cima
    da noite
para os bosques,
    aí descansam
sob flores negras
    os mortos,
os mortos errantes.



Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

Sacrifício de Novembro

Sou indigno destes campos e dos sulcos dos arados,
indigno deste céu, que na minha memória
inscreve os seus sinais infrenes para um novo milénio,
indigno destes bosques, cujo pavor
irrompe no meu envelhecer com as trovoadas das cidades.
Sou indigno destas mães na encosta e indigno
dos camponeses, que revolvem o seu dia
com vacas e pereiras, bebedeira e foices.
Sou indigno destes montes e destes campanários,
indigno de uma noite semeada de estrelas
e indigno do atalho de cada mendigo
que termina em tristeza.
Sou indigno desta erva, que os membros me refresca,
dos troncos das árvores, que o norte
leva à sua crua enfermidade com a chuva
e as sombras dos rapazes,
que fazem ao mosto o seu sacrifício de Novembro
entre os negros montes que suportam a minha efemeridade.
Sou indigno destas procissões
que gera o mês de Maio entre macieiras em flor,
do leite e do mel, da glória e da podridão
que me estão prometidas.
Sou indigno de estar entre párocos, açougueiros e negociantes,
indigno dos vaticínios destas hortas e jardins,
indigno do domingo, que vomita no azul a sua doce fumarada.
Indigno sou também das moças ao desamparo, manchadas de vermelho,
nesta paisagem milenária,
cujo pão sabe a fome e a mortos,
a vaidade e à amargura das mães
que não podem fugir ao seu tormento,
ao tormento dos esquecidos que o sol nos campos vai queimando.
Indigno sou ainda do melro, indigno do ranger da roda do moinho,
indigno faço o meu jogo nas margens do rio,
que das aldeias nada quer saber.
Sou indigno destas almas que, em nuvens e moitas,
falam umas às outras da terra em flor,
da música que o céu moribundo entoa,
dos grandes abandonos, a deslizar sobre as colinas,
procedendo, impacientes, procelosos invernos do mundo.


Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

Paris

O teu choro a quem não o quer
Paul Eluard


I

Não posso dormir, porque o circo veio parar
__em frente à minha janela e muita gente acorre em alvoroço!
________________________________Como através da erva
do Inferno, vejo os seus rostos, que trazem a esta cidade a destruição
_e as poesias inesgotáveis, de que ouvi
falar, a dormir, entre Nancy e Versalhes,
_das celas da prisão sob as estrelas do rio,
que envia ao céu a sua amargura,
_nas margens e nas florestas, que fedem aos cadáveres dos alemães.
Eu dormia quando era pastor e lia a minha Bíblia
_e não pensava no metropolitano que despedaçava o meu sono,
como se eu fosse culpado, como se tivesse aniquilado raparigas
_e induzido rapazes a um sono de dez horas,
como se eu fosse um dos mendigos que não mostram o rosto
_quando o sol vai passear por cima da catedral,
como se eu fosse o homem dos olhos que vos apunhalam, porque
_ não quero morrer à fome, «à la fin tu es la de ce monde ancien...»
Oh, eu conheço o meu Pascal e os meus poetas dos pavilhões,
_os gemidos que saem dos hospitais sobre o Sena
e que a fétida manhã faz entrar pela tua janela, atingindo em cheio
_o teu coração, que tens de trazer contigo, mesmo que o quisesses devorar,
esse coração, num sítio verde e soalheiro, esse coração
_que uma vez se arrastou no doce feno e sonhou com baldes de leite a
_________________________________________________sussurar,
esse coração que sufocava nas estradas, que esteve nas fábricas
_e teve de respirar o suor da gente néscia que trabalhava nas queijarias,
esse coração que viu nascer o dia antes de o Sol chegar,
_que dormitava com ladrões em frios catres
no fim dos comboios,
_nas margens das bebedeiras,
_nas margens da erva,
_nas margens da glória,
_nas margens da ciência,
esse coração que quer sair do cárcere, para ser livre como as aves
e como as nuvens de Março pairar sobre a Torre Eiffel, com a qual
_________________________________________estou sozinho,
_para ter as maiores conversas do ano,
deste ano de luto e tristeza.


II

Não posso dormir, porque três milhões fazem muito barulho!
_Três milhões que sonham com os progressos da técnica,
que rezam a sua luta sob os solavancos das locomotivas,
_ que dos sarcófagos de vidro fumegam para a manhã,
não posso dormir, porque sei que eles desprezam o meu rosto,
_este rosto que foi uma vez carne e sangue
e que esta noite se contrai, para se tornar na visagem horrenda do
________________________________________________Diabo,
_no abismo, no aniquilamento,
um rosto que não é digno de nenhuma paz,
_este meu rosto, que viu mais que todos os rostos desta cidade juntos,
desta cidade que chora nas árvores e sob o vestido de seda
_da «chansonette» na praça da Concórdia...


III

Se eu pudesse dizer quantas vezes quis morrer esta noite,
morrer sem salmo e sem mãe nem pai, morrer como os animais
que sufocam, encurralados entre muros,
_morrer como um verme pisado, sem qualquer assistência,
morrer como o melro esmagado pela roda do comboio aéreo,
_morrer como as almas das árvores, que mandam com o vento
os seus segredos para os oceanos, quando a Primavera chega, porque
_«à la fin tu es las de ce monde ancien...»,
tanto sofrimento, tanto cheiro de corpos humanos nunca eu antes
________________________________________tinha respirado.


IV

Já não suporto ser mais humilde que o vendedor de espargos,
ser mais humilde que a vidente e mais humilde
que o padre que bate com o pé na pia de água benta de Notre Dame...
_Já não suporto ser mais pobre que o mendigo,
que arrecadou os meus últimos dez francos,
_sem me dizer sequer «bonjour»,
mais pobre que as prostitutas e as crianças que, debaixo dos castanheiros,
_vão lambendo gelados com as línguas do Demónio,
que se parecem com as línguas deste mundo quente, cintilante, aleatório.
_São pessoas que não têm nome, não se chamam Primavera, nem Verão,
nem Inverno, têm o belo nome colectivo de PARIS
_e podem ver-se à noite, de bocas abertas
e rostos cavados, silentes e estertorando de sofrimento terreno,
_ que a ciência lhes ensinou,
para que possam acusar Deus!
_ Vês estas pessoas remarem para casa com sapatos de salto alto e
__________________________________________aspirarem o ar
do fraterno oceano, fazerem as agulhas
_e arrancarem aos apitos o seu som trinados,
estenderem as pernas em cadeiras de veludo algo desengonçadas,
________________________________esconderem as úlceras
_e lerem às meninas uma palavra bem conhecida da Bíblia,
sentadas na borda da cama, quando a última claridade do dia já está
_____________________________________________farta do sol.


V

E onde está o teu amigo que te devia explicar estas poesias,
que espeta a carne assada para a pôr no teu prato, enquanto recitas um
_______________________________________poema de Baudelaire?
__Onde está o teu amigo que te acompanha até à beira-rio, vestindo
_________________________________________uma camisa lavada,
com punhos perfumados, movendo-se como os jovens senhores dos 
_____________________________________________castelos de Loire,
_de cujas bocas só saem palavras como «Valery, Eluard, Coty,
Ile de France» ou Notre natures est dans le mouvement...»?
Onde está o teu amigo que dez vezes por dia te diz quão rico tu és
e que desfia os teus pensamentos à beira do lago
em que os Franceses contradizem a sua história gloriosa,
_onde se comportam como se a revolução só ontem tivesse terminado.
Onde está o teu amigo que exalta a tua pobreza,
_que foi criada
numa aldeia da desesperada e fragmentada Áustria
por uma mãe que só frequentou três classes da escola primária
_e por um pai que a tempestade do norte impeliu como um animal
____________________________________através das entranhas
_do frio escandinavo
quando fugia ao malogro da sua própria alma?


VI

Paris: um mar que te aniquila, uma aura
_de telhados, capelas mortuárias, de fábricas e saias de seda,
uma aura de árvores irisantes e danças delicadas, em rodopio,
_o cheiro dos albergues de urina abertos, onde os homens abandonados
_____________________________escrevem, com a sua água dourada,
destinos que, há muito esquecidos, já não consolam nenhum coração,
________________________________________em cristalinas
paredes de pez, prisioneiros do pó e da fome da manhã,
que se levanta com o dia, com o dia que debaixo da ponte
_acorda e esfrega os olhos.
Este é o vício do meu cérebro, destruído por milhões de vocábulos
_e por milhões e milhões de palavras de consolo, que vão desdes os
_____________________________________________Gregos
até ás luzes verdes e vermelhas do cruzamento,
_este é o ponto em que a terra foi mais fria para mim...
Não posso dormir, nunca poderei dormir
porque vejo sempre este rio e sempre
me impele o asco destes bordéis, esta beleza que vai morrendo
_entre os troncos da Avenida de Ternes...
Não posso dormir, porque o circo veio parar
_em frente da minha janela e muita gente acorre em alvoroço! Quero
_____________________________________________esquecer
toda essa gente, porque a minha fome é grande... e me faz regressar a 
______________________________________________um país
_que ainda ninguém viu, um país de verdes e soluçantes madrugadas,
um país que tem o meu nome,
uma manhã sem destruição....


Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano

A Noite

A noite treme diante da janela e quer trespassar-me o coração,
gritando os nomes que eu infamei.
Oh, esses nomes que em cada cruz estão gravados e conspurcam o meu
trabalho diário.

Sei que me hei-de levantar e destruir a minha cama
e com a cama os sonhos que cresceram no meu cabelo para setenta anos.

Hei-de levantar-me e recitar o meu verso
para os mendigos que vivem de abandono,
nas ruas das grandes lojas. Nas ruas
em que as mulheres enganam a sua carne por um dia de feira.
Essas ruas que foram feitas com o trigo do meu pai
e com a pobreza da minha mãe,
que se cortou no braço com uma foice e parecia então
o próprio sol

Oh, a noite que me trespassa o coração
com todos os que eu infamei...



Thomas Bernhard
Na Terra e no Inferno
Assírio & Alvim, 2000
Tradução de José A. Palma Caetano