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Penso, às vezes

Penso às vezes que chegou a hora de estar calado.
Pôr de lado as palavras,
as pobres palavras usadas
até ao fio,
vexadas uma e outra vez
até perderem
o mais leve sinal da sua intenção primitiva
de nomear as coisas, os seres,
as paisagens, os rios
e as efémeras paixões dos homens
montados em seus corcéis
que a vaidade aparelhou
antes de receber a curta,
a irrebatível lição da tumba.

Sempre os mesmos,
gastando as palavras
até não poder, sequer, orar com elas,
nem exibir os desejos
na parca extensão dos sonhos,
seus mendicantes sonhos,
mais propícios à piedade e ao olvido
que ao vão estertor da memória.

As palavras, enfim, caindo
ao poço sem fundo
onde vão buscá-las
os enfatuados tribunos
ávidos de um poder
feito de sombra e desventura.

Imerso no silêncio,
mergulhado em suas águas tranquilas
de levada que detém o seu curso
e se entrega ao imóvel
sossego das lianas,
ao imperceptível palpitar das raízes;
no silêncio, como disse Rimbaud,
há-de morar o poema,
o único possível já,
lavrado nos abismos
onde tudo o que é nomeado
perdeu há muito tempo
a menor ocasião de subsistir,
de instaurar sua estéril mentira
tecida na trama rala das palavras
que giram sem descanso no vazio
onde se perdem
as néscias tarefas dos homens.
Penso às vezes que chegou a hora de estar calado,
mas o silêncio seria então
um prémio desmedido,
uma graça inefável
que eu não creio ter ainda alcançado.


Álvaro Mutis
Tradução A.M.

Lied nocturno

E, de repente,
chega a noite
como um óleo
de silêncio e mágoa.
À sua corrente me rendo
armado apenas
da precária rede
de truncadas lembranças e saudades
que vão insistindo sempre
em retomar o perdido
território do seu reino.
Como ébrios anzóis
rodam na noite
nomes, quintas,
certas esquinas e praças,
alcovas da infância,
caras do colégio,
campinas, rios
e raparigas
rodam em vão
no silêncio fresco da noite
e ninguém acorre à chamada.
Quebrantado e vencido
me resgatam os primeiros
ruídos da alba,
diários e insípidos
como a rotina dos dias
que não serão já
a primavera febril
que um dia nos prometemos.


Álvaro Mutis
Tradução A.M.

amen

Que a morte te acolha
com todos os teus sonhos intactos.
No regresso duma furiosa adolescência,
ao princípio das férias que nunca te deram,
vai distinguir-te a morte com seu primeiro aviso.
Há-de abrir-te os olhos a suas grandes águas,
iniciando-te em sua constante brisa de outro mundo.
A morte confundir-se-á com teus sonhos,
neles reconhecendo os sinais
que antigamente foi deixando,
como um caçador que ao voltar
reconhece as suas marcas no trilho.


Álvaro Mutis
Tradução A.M.