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Escrevia à mão a cidade

Habitava da cidade
os lugares mais pequenos.

Limpava-lhe o pó,
pintava-lhe os cabelos,
escondia-lhe as rugas
(chegava mesmo a deitar-se
ou a deitar areia sobre as ruas
abertas).

Às vezes chorava-lhe no centro
a ausência,
ou matava-lhe os homens
que corrompiam os homens.
Por fim,
esquecia-lhe as feridas.

Escrevia à mão a cidade
e a cidade escrevia-se
sobretudo
no cinzento
no esquecimento.

Eram tão simples as palavras
da cidade,
mas complexos os amigos
que dela habitavam
os lugares mais pequenos.



Filipa Leal

Talvez os Lírios Compreendam
Cadernos do Campo Alegre, 2004
Na frágil timidez de aves de papel,
balouçando, morrendo a cada queda,
porque houve asas enrugadas,
e um desespero de salitre e ervas aromáticas.
E rasgámos as palavras,
arquivámos o voo como se crescêssemos,
ou tivesse amanhecido devagar.



Filipa Leal
Talvez os Lírios Compreendam
Cadernos do Campo Alegre, 2004

Alguém me repetia

A voz é grave e rouca.
Na mesa ao lado, chora uma criança que não conhece a memória.
Há uma voz quente que um dia me falou ao ouvido.
Dizia-me.
Tentava explicar-me os ventos, as marés,
o terno refúgio dos dias que estão longe.
Eu julgo que dormia aninhada, com os olhos brilhantes e o coração atento.
Talvez tenha sentido uma mão leve a percorrer-me as costas. Talvez devagar.
Fazia movimentos circulares. Talvez tentasse mostrar-me o caminho.
Dizia-me.
Eu não compreendi porque vivia como se recordasse já.
Não há tempo para o presente quando se está fechado na memória.
Disse.
Não vivia do passado. Não era isso que tentava dizer: Havia em mim a certeza
da recordação futura - como a espiral de onde não se sai.
A voz começou a delirar em círculos. Ofendidos talvez, os círculos.
Eu estava no centro desse som que baixava como se a qualquer momento
pudesse abater-se sobre mim. Sem me sufocar talvez.
Dizia. Dizia.
A linguagem tornava-se cada vez mais estranha e imprópria.
Como nos sonhos em que se procura gritar
talvez agitasse os braços levemente.
Mas nenhuma voz nos cabe nas mãos, nem nas palavras.
Eu habito a quente loucura do poema sólido que em mim se concretiza.
Eu habito a quente loucura do poema sólido que em mim se concretiza.
Alguém repetia.
Mas a voz era cada vez mais líquida e talvez não coubesse no poema.
As mãos arrastavam o corpo para o lugar onde a minha solidão
talvez recordasse a voz. Dizia-me. Para que mais rápido se interrompesse
o dia, para que mais rápido se recordasse
a vida. Eu ia rolando sobre a cama como uma criança em direcção ao abismo.
As mãos voltavam a trazer-me para o centro do círculo.
No silêncio, perderia a consciência. São sempre as vozes que nos trazem
de volta. Talvez.
Era o dia em que me encostei à parede para olhar o círculo, a voz, as mãos.
Como se observasse aquela solidão.
E não houve nada que me pudesse dizer: Talvez.



Filipa Leal
A Cidade Líquida e Outras Texturas
Deriva Editores, 2006

No fundo dos relógios

Demoro-me neste país indeciso
que ainda procura o amor
no fundo dos relógios,
que se abre
como se abrisse poros solitários
para que neles caiam ossos, vidros, pão.
Demoro-me
no ventre desta cidade
que nenhum navio abandonou
porque lhe faltou a água para a partida,
como por vezes desaparece a estrada
que nos conduz aos lugares
e ali temos que ficar.



Filipa Leal
A Cidade Líquida & Outras Texturas
Deriva Editores, 2006