Mostrar mensagens com a etiqueta franco loi. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta franco loi. Mostrar todas as mensagens
Non vi innamorate
non credete al cuore...

Sou filho de Schönberg e do maestro Mahler,
do diapasão sinfónico e diafónico,
sou o tetracorde do inferno e sou o pentacorde,
sou como uma borboleta que procura
entre ervas uma flor rara e belíssima para se apaixonar;
e sete, setenta vezes sete, infinito,
em terra, em céu, até onde pode chegar o pensamento,
é o campo de árvores e de gritos,
e timbres, perdidos sabores; como a chuva
que parece cair mas sobe,
e se alarga afundando as raízes, grave,
e, suspirando ao sol, faz caminhar
as nuvens e penetra talvez no divino
para além do universo onde
ao celestre da atmosfera parece gritar obscuramente
os esquecimentos e dissonâncias, longínqua piedade,
e alegria, indiferenças, dores, doces apelos das estrelas,
e, como diz o meu mestre, escorre
a doce matemática apaixonante
da melodia que dá a intensidade...
Meu Schönberg, meu Berg, gente que se arrisca,
que pela teia da música se aventura
procurando tacteá-la, desenleia, esquadrinha,
mistura às apalpadelas na ânsia de encontrar...
- encontrar o quê? a história de um dia alegre?
a hipocrisia de um velho que deixou de amar?
ou o pensativo planar de uma asa branca
sobre a amendoeira rescendendo a sonho?
ou o morrer de amor da juventude
que canta e passa, breve, como o esquecimento?
ou a tristeza do homem que envelhece
e para quem todos os dias são para poupar?
encontrar aquelas belas canções dos que morreram?
a voz das sombras? o ressoar do sopro?
aquele som do ar e da respiração
a que chamamos espiritual, e que te parece arder?
talvez saber os nomes da consciência,
o sentido daqueles suspiros, deste brumoso caminhar
entre homens que parecem não ter cara
e máquinas com pressa de matar,
o sentido deste infeliz tormento
feito de indolência, de um dizer sem falar,
de um aipo de agonia que se embrulha no desconforto,
que sabe de roer mas não como acabar? -
... gente que chama experiência à fantasia
e que por entre os erros parece encontrar-se,
que, como o rouxinol, na lua nova,
ao baloiçar de um sino quer cantar,
essa gente que ri e se diverte, se entrega à loucura
e, enganada ou não, brinca no que faz...
Amigos, mestres, marceneiros de harmónicas,
é a vida que o órgão quer fazer soar!
E a teoria é como uma caixinha
onde estão fechados os ossos que não cantam.

Franco Loi
Memória
Quetzal Editores, 1993
Mariuccia,
as primeiras maminhas da minha vida,
sorriso maroto entre as grades da varanda,
tu, de ébano,
olhos de fuinha, a rapariga de sempre,
que sob as franjas da toalha verde, a ternura,
ali, debaixo de uma mesa, como gatos abraçados,
entre os sapatos das mães e das velhas bichanando,
ali, como uma flor em botão que me beijasse,
me oferecia, qual violeta, o belo veludo da sua graça,
a mim, o seu miúdo, que arrastava
com a mãozinha magra para o sótão,
e a voz que nos chamava era o anoitecer...
oh, tardes da rua Cardano,
pátios de neblina,
sopros de bruma que vêm dos canais,
o Ernesto que aos sessenta chorava a mãe,
por ela que com uma escova lhe fustigava a cara,
ele, o sapateiro, embebedava-se com o homem das bicicletas,
e ela, velha, paralítica rameira,
grita: de joelhos!
de joelhos, seu malandro!
não te faças de novas, não mereces o pão!
e em baixo, das retretes, os resmungões sibilavam:
sacana do Ernesto, como um cacho!
e nós que com os garotos vozeávamos:
o Gigi! O Gigi!
passarinhávamos céleres
e era o vendedor de castanhada que chamava do carrinho
por mim e pela Mariuccia, e pelos mundos secretos.

Franco Loi
Memória
Quetzal Editores, 1993
Inclino a cabeça entre os pensamentos
e de longe me vem a melancolia,
e rio devagar, sem porquê, mas rio,
olho depois uma árvore que treme pela morte
que passa rente a mim. Será engano?
ou era o vento? Alheio à minha sorte,
de mim próprio inimigo, caminho estrada fora.


Franco Loi
Memória
Quetzal Editores, 1993 
Olhei o homem e dentro estava ainda
qualquer coisa que da sombra me espreitava.
Era um espelho, como um céu de noite
em que as estrelas são tantas e pesam sobre ti,
e te espiam e, de facto, não te vêem,
ficam no escuro como pedras sem lembranças,
mas estão lá, qual memória da vida,
e tu és um sopro do teu ser longínquo...
Procurei no espelho, e quase lá no fundo
estava outro qualquer que me buscava,
alguém que sofria a sua própria dor,
e eu já não era nada, era só a história
que não se via já atrás do espelho.

Franco Loi
Memória
Quetzal Editores, 1993