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Velho carro de um velho num país de velhos
Um gato a quem falta já a ousadia acrobata dos telhados
E as unhas de aço nas retraídas patas
De veludo puído.

Já foste um gato de muito foles sem contar
Com o da indiferença.
Contigo aprendi a lisonja no regaço e a redobrada vénia
Dos amantes de serviço.

Os dois sentimos as festas
No pêlo e na pele metafórica dos sentidos
Politicamente correctos.
Não houve fogo que nos queimasse o gozo de estar vivos.

Aqui é o sol do frio que nos faz sorrir
Aos pés da escada. Não te debruces em excesso
Nas rochas do Carvoeiro.
O gato e a água juntos não serão a melhor escolha de acabar.



Armando Silva Carvalho
O Amante Japonês
Assírio & Alvim, 2008

O cobridor

À entrada do metro está o cobridor de damas
e cavalheiros
de pé perna cruzada a coçar os testículos
e a fumar para o chão em escarros
pouco límpidos.
O metro pede que chova em cima
do cobridor
que encena a sua rábula cinéfila
e leva aos tomates uma estranha fome
de afecto,
melancólica.
Já viajei de metro
e eu próprio
já supus que nos meus testículos
o mundo vinha adormecer
com as mãos suadas.
Às vezes
trocávamos de papel,
e ninguém sabia quem cobria quem,
cobertos éramos todos
por uma tristeza
austera
que o metro punha no ar
irrespirável.
Hoje, tomates são só de importação ou virtuais.
E os cobridores
uma espécie em vias de extinção
na esquina fluorescente do dia descaído
e na cabeça da noite que já nem dá por nada.



Armando Silva Carvalho

Lisboas
Quetzal Editores, 1999

Cinzas de Sísifo

Eu vi o sobressalto.
Nesse bosque de lâminas e luvas
tocaste cada coisa como
um grito.

E amaste a minha boca
como quem corta
os pulsos ao silêncio.

Se o vento te derrama
entre folhas e cinza
é sempre a mesma voz que não perdoa

a mesma lei

o mesmo labirinto.



Armando Silva Carvalho
O nevoeiro envolve devagar
Casas e almas
Entranha-se na escrita e molha-me
As palavras
Que nascem da manhã num trabalho de parto
Suave e melancólico.

Sinto nas vértebras a indecisão
Da Vida,
A memória encoberta,
Todo o meu corpo se dissolve
Numa cinza líquida.
Morrer assim, seria a despedida do meu signo.
Água na água,
Assim como era no princípio.

Sinto o passado fluir
Por entre sombras que o presente
Não quer interpretar.
Fluidos são também os prédios que me deixam
Num mar de leite aéreo,
Droga feliz, sem álcool, sem química,
Sem ressaca.
Futuro? que futuro?
São as próprias palavras que já nascem
sem tempo.

Agora nada me devora.
Se eu próprio erguesse os braços como um espectro,
Quem me apontaria o caminho,
Aqui,
Neste país submerso?



Armando Silva Carvalho

O Amante Japonês
Assírio & Alvim, 2008
Altos ciprestes, esses poemas
Que se perfilam ao longe na planície escrita dos meus dias.
Negras presenças do mundo, dos homens, da rosa
Incendiada nas palavras.

Recusados troféus que sabem agonizar
E sobem livres da terra
Num rouco, musculoso grito de transfiguração
Pela natureza.

Que mãos, que olhos, que sexos,
Que espáduas, beijos, que fragilidades nuas, venenosas,
Que fibras, febres, pugilatos,
Que murmúrios, hossanas, que traições, que crimes?

Vê-los no ar denso da memória,
A sua tenebrosa sombra acabrunha-me.
Não posso recusar o sangue que me trazem
Não posso recuar da morte que me acenam.

Versos do começo e do fim
Fábulas de nervos ao redor do cérebro
Quem vos traz aqui ao sabor do vento imoderado
De encontro ao vidro sujo do meu rosto e do carro?



Armando Silva Carvalho
O Amante Japonês
Assírio & Alvim, 2008

A chave inglesa

Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo turtuoso
que me fez traidor.



Armando Silva Carvalho
As Escadas não têm Degraus
Livros Cotovia, 1990
Não me lembro de mortos nos teus interiores.
Os mortos, muitos já, que pesam como pedras vivas
Na bagageira usada do meu pensamento,
Esses mortos não invadem com as nódoas de memória
A tua, tão transportadora, e feita ao mundo
Na desordem fútil do esquecimento vão.

Mortos subtis, de repente nus, ou então cobertos
Duma terra adversa ao teu rodar atento
Surgem como sombras de amor e logo se dispersam
Sem que as palavras sirvam de refrão à existência
Muda ou gravada na alma um instante passageiro,
Urgentes ou cativos da minha vida móvel.

Mortos que nadam nesse lago do nada e acendem
na bagagem o fogo que consome
As imagens de outrora e nunca saberão
Como pronunciar vivos a palavra mortos
Agora que contigo vou e não sei enfrentar
O reflectir do tempo no espelho vão da hora.



Armando Silva Carvalho
O Amante Japonês
Assírio & Alvim, 2008
Transportaste os meus versos, e a prosa corrida e manuscrita
Chegava a descer ao nível dos pedais,
Amarfanhada.
Quando solta de mim, a prosa era uma crueldade
Meio oculta.
Sentias-me a tremer, nas minhas mãos
As lâminas
Degolavam as sílabas,
Era um sangue confuso, incongruente,
Que manchava os estofos e vinha, gota a gota,
Turvar a placenta do texto
Nascido no meu colo.

Loucura tão apertada em ti
E à nossa volta as árvores erguendo a nobreza vegetal
Que subia dos alicerces
Da terra,
Da água ao abandono pelas inclinações
Que eu dava à língua.

Anos e anos e dias que chegavam à noite ofegantes
Sem saber o que fazer às frases.
Um mistério indefeso, infante e natalício
Cruzava-se nos teus vidros
Com a névoa tensa, densa, cimentada.

Eu não sabia dizer, puxava devagar as linhas novas,
Nervosas, cordões umbilicais
Toda essa baba azul da esferográfica
Ao redor do produto, ali, parido,
Deitado no papel.

Lembro agora esse tempo acrobático,
Em que a cabeça reclinava
E declinava
Ao volante o lume, os nossos breves lumes
Nas paragens,
As palavras roxas, franzinas, às cegas, enrodilhadas no tempo,
Na tua paciência,
No parque maternal da minha escrita.



Armando Silva Carvalho
O Amante Japonês
Assírio & Alvim, 2008