Mostrar mensagens com a etiqueta luís miguel nava. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta luís miguel nava. Mostrar todas as mensagens

Marcas

A pele que o tempo trouxe nas entranhas
desembaraça-se
da treva agora com mais custo, comparável
apenas à de quem,
tentando a todo o transe erguer o écran

de pedra onde o cinema se desfaz, ousasse
fazer da pele a partitura
que os ossos interpretam
no meio de metáforas atadas
por dentro ao próprio corpo que nomeiam.

A pele era uma chave, outras o mundo
decerto encontraria, mas agora
das portas que, depois
de arrancadas às casas e atiradas
ao mar, foram fechadas para sempre

nem uma só subsiste atrás da qual
possamos esconder as cicatrizes.
O mar rebenta-me
de novo na memória, onde os meus ossos
parecem ancorados.

Sustento, erguendo as mãos, todos os astros.
Do sangue a que a distância se mistura
nas casas através de cujas frinchas
a custo conseguimos
fazer entrar o céu, pondo o silêncio à mostra,

há marcas no destino a que se prendem,
urdidos nas entranhas, os tecidos
que vêm coroar-nos
e sobre o corpo se assemelham ao que dentro
de cada coisa é essa coisa abstractamente.




Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Cegueira

Um traço agudo e anónimo, apesar
de nela o coração fazer publicidade,
não dá
da pele a exacta dimensão.

Qualquer de nós o sabe, ao exibirmos
as correias que prendem ao destino o coração
sentimos
romper-se a pele sob a cegueira dos tecidos.


Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002
Os nervos, essa rede quase hidrográfica através da qual todo o real nos
vem desaguar na carne, tomam com frequência a configuração duma raiz
que sub-repticiamente nos houvesse mergulhado na memória



Luís Miguel Nava
Fragmento inédito
Relâmpago, n.º 16
Fundação Luís Miguel Nava, 2005

As trevas

Começam-nos as trevas a romper
a carne, comparáveis
a neve que do céu
caísse ensanguentada

ou pedra que, ao tombar
num lago, o abrisse
em sucessivos círculos, alguns
dos quais já fora de água, em plena vida,

alguém
no meio da paisagem
empunha um calorífico

enquanto eu, que de roupa
não trago mais que um lenço,
com ele cubro a cabeça para não morrer,

aqui ninguém ignora
que os lagos gelam a partir das margens
e o homem a partir do coração,

que a luz
ascende do vazio
e tudo o que nos resta mais não é
que um sol sem crédito
num céu desafectado,

envolvem-nos as trevas
os ossos, dir-se-ia
que a própria morte
nos serve aqui de pele, como a um morcego.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002
Escrever é fazer passar as palavras através de um vidro,
sem as destruir. De um vidro, de um muro, de substâncias de que elas
se apropriam e cujas qualidades trazem para a página, de que,
quando não perecem, saem robustecidas

"o mar é conjugável como um verbo"


Luís Miguel Nava
Fragmento inédito
Relâmpago, n.º 16
Fundação Luís Miguel Nava, 2005
Ao Luis Miguel Nava, noutra estrela
Dizem que foste tu
a escolher a violência
da tua morte, num acorde perfeito
com os teus versos. Não é verdade:
tu sabias que nenhum inferno
é pessoal, por isso procuravas
um rio onde ardesses
para voltares a nascer longe da terra.
Apenas isso – o resto é merda.


Eugénio de Andrade

(Faz hoje 15 anos que faleceu Luís Miguel Nava).

Entranhas

O céu descai; agora que alguém fez
dos nossos corações refinarias,
o fumo irrompe dir-se-ia
que cheio de emoção das chaminés.

Aqueles a quem servem de entranhas as da terra
mal podem deslocar-se; até já não
haver senão céu contra o coração,
sobre eles põe subterrâneas nuvens o petróleo.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Não muita vez

Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo na memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Através da nudez

Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os
astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem.

Movem-se os tigres como câmaras na areia, prontos eles
também a deflagrarem. A manhã
espanca a praia, é impossível descrevê-la sem falar
dos fios deste poema
que a cosem com a paisagem.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Dos descampados

Cresceram-me entre os ossos já as primeiras ervas.
Talvez dos descampados que me vêm
do espírito acabar à boca dos sentidos
por fim surjam aqueles que quando escavam
o fazem como se avançassem
assim para uma vida mais autêntica.
Terão o tempo nas mãos como uma enxada.
Brilhar-lhes-ão nas pás
pedaços do meu corpo que respiram.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

O azul do mar

O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Nos teus ouvidos

Nos teus ouvidos isto explode
de amor, palavra ampola sob
os astros funcionando abril à boca das cidades, dos
imperturbáveis muros aos quais as crianças
que de cristais nos punhos acontecem passam,
seus chapéus brevíssimos, os indícios
de nada, o modo de ler, de acender
de carícias um texto na memória. De astros
as ruas eram cheias que os cuspiam hoje
na minha mãe de outrora, nas crianças de água, nos
pensamentos nenhuns que eu punha em seus joelhos, em
seus amáveis joelhos a que os astros acorriam,
minha mãe que arranco ao sono, que amanhecido eu gero, as mãos
tão de repente em pânico nos muros.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

O céu agrada-me pensar

O céu agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos, aqueles contra cujos lábios a partir de dentro empurraremos docemente os nossos nomes e que, quando levam a comida à boca, sabem que é a nós que estão a alimentar. São dois ou três amigos, aqueles só em cujos corações enfiamos achas, o clarão atinge-lhes os olhos, pensarão: hoje a memória é como se a trouxéssemos em braços. Não sei se quando o mar lhes vier ao espírito o ouviremos rebentar, o certo é que por ele às vezes sobem as marés. Há ondas que se vê terem por ele passado antes de contra os nossos corpos deflagrarem.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Matadouro

__Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando.
__ A luz que desse sangue irradiava, como se nele o sol tivesse mergulhado e os raios nele se houvessem diluído, atravessava-me os poros e fazia-me cantar o coração.
__Tratava-se de uma luz que nada tinha a ver com piedade ou a esperança, mas cuja música, sem me passar pelos ouvidos, ia direita ao coração, que nos animais acabados de abater por momentos encontrava um espelho ainda quente, tão diverso da algidez que habitualmente neles impera.
__Só num espelho assim saído há pouco das entranhas dum ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem, ao invés da frigorífica mentira onde é comum a vermos esboçar-se. Só esse espelho capta a espessa luz em que parecem ter-se consumido os próprios astros, essa luz que com os objectos que ilumina se confunde numa única substância capaz de arrancar-nos à treva e de dar cor à santidade.
__A luz do néon, ante aquela de que se esvazia o coração dum porco, é uma metáfora de impacto reduzido. A luz que das vísceras emana é a de deus, aquela que, por excessiva dose de trevas misturada, mais que qualquer outra se aproxima da de deus, que resplandece nas carcaças em costelas onde é fácil pressentir as incipientes asas de algum anjo.
__O berro do animal que qualquer faca anónima remete à condição daqueles cujo sangue se escoe ao nosso lado é o único som a que dançar merece a pena. O dia declinou-lhe nas entranhas, quantas manhãs as percorreram absorvidas pelas aberturas dos seus olhos mais não são agora do que um rastro de lume sobre a lâmina e nos baldes onde pinga, reduzidas a um furtivo clarão de dignidade de que todos de repente nos sentimos órfãos.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Ao mínimo clarão

Talvez seja melhor não nos voltarmos
a ver, ao mínimo clarão
das mãos a pele se desavém com a memória.
As mãos são de qualquer corpo a coroa.

Das dele já nem sequer o itinerário
sei hoje muito bem, onde o horizonte
se desata o mar agora
regressa ao coração de que faz parte.

Ainda é o mar contudo o que se vê
florir onde ele chegar. Chamando a esse
rapaz rebentação,
o céu rasga-se à volta dos seus ombros.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Manuel

Fui ter com ele à Feira Popular, donde minutos
depois partimos para Sintra. Lembro-me
de o carro avançar à velocidade do meu sangue.
No Guincho, onde momentos antes
de o sol se pôr parámos, vi o mar
ganhar no espírito dele outra ondulação.
De nós, assim o soube, erguem paisagens
as viagens. Entre a pele e o coração alçam-se as pontes.



Luís Miguel Nava

Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Onde à nudez

Escrevo onde à nudez cabe o papel habitualmente
atribuído a uma janela. Quando afasto as cores para no
lugar delas não deixar senão a luz ou me debruço ao
peitoril sobre os meus próprios intestinos, a ficção fica
por conta dos relâmpagos. É como se habitasse uma
cidade que tivesse um espelho por subúrbios e o mar
viesse estilhaçar-se ao fundo da memória, onde se encon-
tra o coração. Abro na página um buraco onde alicerço a
casa, as letras vêm às janelas.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

Em entrelinhas

Tem furos na consciência, este rapaz. Tem a memória
em cacos. Que fará da minha infância quando entrar no
rasgão com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe
ele do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte
em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fará,
bem como o que dirá ao ver num poema o céu em entre-
linhas.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

O tímpano e a pupila

Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos

se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002