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 José Saramago 
(16/11/1922 - 18/06/2010)


"Todos sabemos que cada dia que nasce 
é o primeiro para uns e será o último para outros 
e que, para a maioria, é só um dia mais."

___gggg

Passo num gesto

Passo num gesto que eu sei
Deste mundo agoniado para o espaço
Onde o quanto serei
No tempo que sobra escasso

No outro mundo sou rei
E o meu rosto de cristal e puro aço
É o espelho que forjei
Com suor pena e cansaço

E se o mundo que deixei
Tem as marcas desenhadas do meu passo
São baralhas que enredei
São teias e vidro baço

Tantas provas cá terei
Tantas vezes do pescoço solto o laço
Se me sangraram em rei
Aceitem a lei que eu faço

Vem a ser que o homem novo
Está na verdade que movo



José Saramago

Provavelmente Alegria
Editoral Caminho, 1999

Como um vidro estalado

Como um vidro estalado.
A quem me ler
Não direi, já agora, se esta imagem
Vem serena dos ramos que perderam
As folhas contra o céu, ou se mastigo
Qualquer raiva escondida.
Como doendo, ou sendo, ou mastigando,
Sejam rendas aéreas, alma ferida,
Fecho, brusco, o poema onde não digo


José Saramago
Provavelmente Alegria
Editoral Caminho, 1999

Demissão

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.



José Saramago
Os Poemas Possíveis
Lisboa, Caminho, 1999
Não é verdade que o céu seja indiferente às nossas preocupações e anseios. O céu está constantemente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizemos bons conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele ou a nossa, já demonstrou que não vale a pena esforçar a memória, que todos a temos mais ou menos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estivermos de olho atento, como foi o caso do comandante quando sobre a caravana, em certa altura do caminho, caiu um rápido mas abundante aguaceiro. Para os homens da força, empenhados no penoso trabalho de empurrar o carro de bois, aquela chuva foi uma bênção, um acto de caridade pelo sofrimento em que têm vivido sujeitas as classes baixas. O elefante salomão e o seu cornaca subhro desfrutaram do súbito refresco, o que não impediu o guia de pensar no arranjo que lhe faria futuramente um guarda-chuva em situações como esta, principalmente no caminho para viena, de poleiro e protegido da água que caísse das nuvens.



José Saramago

A viagem do elefante
Editorial Caminho, 2008

o ano da morte de ricardo reis, 1984

Não digamos, Amanhã farei, porque o mais certo é estarmos cansados amanhã, digamos antes, Depois de amanhã, sempre teremos um dia de intervalo para mudar de opinião e projecto, porém ainda mais prudente seria dizer, um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez um dia preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos...


josé saramago

O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984

intimidade

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.


José Saramago