Mostrar mensagens com a etiqueta georges perec. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta georges perec. Mostrar todas as mensagens
Tendo ponderado bem tendo-se enchido de coragem decide ir procurar o seu chefe de serviço para lhe pedir um aumento vai então procurar o seu chefe de serviço digamos para simplificar porque é sempre preciso simplificar quer ele se chame senhor xavier isto é senhor quer mr x vai então procurar mr x aí das duas uma ou mr x está no escritório ou mr x não está no escritório se mr x estivesse no escritório aparentemente não havia problema mas evidentemente mr x não está no escritório então só tem uma coisa a fazer estar atento no corredor ao seu regresso ou à sua chegada mas suponhamos que não que ele não chega nesse caso acabaria por não ter mais do que uma única solução regressar ao seu próprio escritório e esperar pela tarde ou pelo dia seguinte para fazer outra tentativa mas todos os dias verificamos que ele demora a voltar nesse caso o melhor que tem a fazer em vez de continuar a andar às voltas no corredor é ir ter com a sua colega mlle y a quem para dar mais humanidade à nossa seca demonstração chamaremos doravante mlle yolande mas das duas uma ou mlle yolande está no escritório ou mlle yolande não está no escritório se mlle yolande estiver no escritório aparentemente não há problema mas suponhamos que mlle yolande não está no escritório nesse caso visto que não tem vontade de continuar a andar às voltas no corredor enquanto espera o hipotético regresso ou a eventual chegada de mr x apresenta-se-lhe uma única solução dar a volta aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da organização onde trabalha depois regressar ao escritório de mr x esperando que desta vez ele tenha chegado ora das duas uma ou mr x está no escritório ou mr x não está no escritório admitamos que ele não está por isso está atento ao seu regresso ou à sua chegada andando às voltas no corredor sim mas suponhamos que ele demora a chegar nesse caso vai ver se mlle yolande está no escritório das duas uma ou está ou não está se não estiver o melhor a fazer é dar a volta aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da organização onde trabalha mas suponhamos antes que mlle yolande está no escritório nesse caso das duas uma ou mlle yolande está de bom humor ou mlle yolande não está de bom humor mas suponhamos para começar que mlle yolande não está então mesmo nada de bom humor nesse caso sem desanimar dê a volta aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da  organização onde trabalha depois regresse ao escritório de mr x desejando que ele tenha chegado ora das duas uma ou mr x está no escritório ou mr x não está no escritório será que você está no seu escritório não então por que quereria que mr x estivesse no dele talvez ele esteja no seu escritório com a intenção de lhe passar uma ensaboadela quando regressar ou talvez ele esteja a andar às voltas diante do escritório do seu próprio chefe que se chama zosthène e a quem nos convirá doravante chamar mr z mr x não está portanto no respectivo escritório e por conseguinte você está atento ao seu regresso ou à sua chegada enquanto anda às voltas no corredor e se avizinha do seu escritório vamos admitir sem difi culdade que pode decorrer um certo lapso de tempo antes que mr x chegue ou regresse aconselhamo-lo então para matar o tédio que a sua monótona deambulação corre o risco de provocar a ir tagarelar por um momento com a sua colega mlle yolande contanto que evidentemente não só ela esteja no escritório se não estiver não tem outra opção senão ir dar a volta aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da organização onde trabalha a não ser que regresse ao seu próprio escritório enquanto espera por uma ocasião mais favorável mas também que esteja de bom humor se mlle yolande estiver no escritório mas não estiver de bom humor dá a volta aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da organização onde trabalha mas suponhamos antes para simplificar porque é sempre preciso simplifi car que mlle yolande está simultaneamente no escritório e de bom humor nesse caso entra no escritório de mlle yolande e dá dois dedos de conversa com ela seja como for das duas uma ao fim de algum tempo ou avistará mr x chegando ou voltando para o escritório ou não avistará mr x chegando ou voltando para o escri tório suponhamos a eventualidade mais verosímil a saber que não avista mr x pela simples razão de que mr x não regressa isto é ao eliminar a hipótese desastrosa para a nossa demonstração de uma chegada ou de um regresso de mr x que não veria ocupado que está a conversar com mlle yolande nesse caso deve continuar a sua conversa com mlle yolande a não ser que essa conversa deixe infelizmente mlle yolande de mau humor se esta última eventualidade ocorresse só lhe restava dar a volta mais uma vez aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da organização onde trabalha depois voltar pensativo para o seu próprio escritório à espera de dias melhores mas acabará por chegar o momento em que ao conversar com mlle yolande verá passar mr x chegando ou voltando para o escritório deverá então agir com tacto e celeridade e inventar um bom pretexto para sair do escritório de mlle yolande senão vai melindrá-la e da próxima vez não o deixará trocar dois dedos de conversa com ela o que o obrigará a dar a volta uma e outra vez aos diferentes serviços cujo conjunto constitui toda ou parte da organização onde trabalha voltas que com o tempo acabarão por parecer suspeitas e por indispor talvez até o seu chefe de serviço o que evidentemente não é o seu objectivo inventa então um bom pretexto para sair por exemplo tenho de ir mudar o disco ou tenho medo de ter engolido uma espinha ao almoço ou desculpe mas tenho de ir levar a vacina contra o sarampo e vai procurar mr x tendo toda a razão para pensar que visto que acaba de o ver passar mr x está agora realmente no escritório vamos supor para simplificar porque é sempre preciso simplificar que efectivamente mr x está no escritório se bem que seja preciso nunca esquecer como disse Ionesco que quando se bate à porta às vezes há alguém e às vezes não há ninguém estando a verdade como se sabe no meio mr x está pois no escritório e como mr x é o seu superior hierárquico bate antes de entrar depois espera pela resposta evidentemente das duas uma ou mr x levanta a cabeça ou mr x não levanta a cabeça se levantar a cabeça isso significa pelo menos que ouviu o seu toque e que tem a intenção de responder ou pela afi rmativa ou pela negativa

(...)

Georges Perec
A arte e o modo de abordar o seu chefe de serviço para lhe pedir um aumento
Editorial Presença, 2010
Tradução de Isabel Pascoal
  Sim, a coisa poderia começar assim, aqui, deste modo, de uma maneira um pouco pesada e lenta, neste lugar neutro que é de todos e de ninguém, onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio ecoa, longínqua e regular. Do que se passa por detrás das pesadas portas dos apartamentos apenas captamos quase sempre esses ecos estilhaçados, esses restos, esses destroços, esses esboços, esses estímulos, esses incidentes ou acidentes que se desenrolam no que se chama as «áreas comuns», esses pequenos ruídos abafados que o tapete de lã vermelha desbotado amortece, esses embriões de vida comunitária que se ficam sempre pelos patamares. Os habitantes de um mesmo prédio vivem a centímetros uns dos outros, separados por um simples tabique, partilham entre si os mesmos espaços repartidos ao longo dos andares, fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, puxar o autoclismo, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, e de prédio em prédio, e de rua em rua. Barricam-se nas áreas privadas - que é assim que se chamam - e bem gostariam de que nada dali saísse, mas por muito pouco que dali deixem sair, o cão pela trela, a criança que vai ao pão, os que se despedem e os que são despedidos, é pela escada que tudo isso sai. Porque tudo o que se passa passa pela escada, tudo o que chega chega pela escada, as cartas, as participações, os móveis que os carregadores trazem ou levam, o médico chamado de urgência, o viajante que regressa de uma longa viagem. Por isso é que a escada e um lugar anónimo, frio, quase hostil. Nas casas antigas havia ainda alguns degraus de pedra, corrimões de ferro forjado, esculturas, tocheiros, às vezes uma banqueta para permitir que as pessoas idosas descansassem entre dois andares. Nos prédios modernos há elevadores de paredes cobertas de inscrições que se pretendem obscenas e escadas ditas de «urgência», de betão bruto, sujas e sonoras. Neste prédio, onde há um velho elevador quase sempre avariado, a escada é um lugar vetusto,  de duvidosa limpeza, que de andar em andar se degrada segundo as convenções da respeitabilidade burguesa: passadeira de espessura dupla até ao terceiro, depois simples, e nenhuma nos dois andares de cima.
  Sim, vai começar assim: entre o terceiro e o quarto andar, Rua Simon-Crubellier, número onze. Vai uma mulher de cerca de quarenta anos a subir a escada; vai vestida com uma gabardine comprida de napa e tem na cabeça uma espécie de barrete de feltro, em forma de pão de açúcar, um pouco a ideia que fazemos de um chapéu de duende, aos quadrados vermelhos e cinzentos. Um grande saco de tela escura, um daqueles sacos usados para viagens de um dia, pendendo-lhe do ombro direito. Tem um lençinho de cambraia atado a um dos anéis de metal cromado que ligam o saco à alça. Três motivos estampados como que au pochoir repetem-se regularmente ao longo de toda a superfície do saco: um grande relógio de pêndulo, um pão grande cortado ao meio e uma espécie de recipiente de cobre sem asas.
  A mulher está a olhar para uma planta que segura na mão esquerda. É uma simples folha de papel cujos vincos ainda visíveis atestam que foi dobrada em quatro, e que está agarrada por um clip a um espesso volume policopiado: o regulamento do condomínio respeitante ao apartamento que a mulher vai visitar. A verdade é que na folha foram esboçadas, não uma, mas três plantas: a primeira, ao alto e à direita, permite localizar o prédio, quase a meio da Rua Simon-Crubellier, que divide obliquamente o quadrilátero formado, no Bairro da Plaine Monceau, no XVII arrondissement, pelas Ruas Médéric, Jadin, de Chazelles e Léon Jost; a segunda, ao alto e à esquerda, é um planta em corte do prédio, indicando esquematicamente a disposição dos apartamentos e especificando o nome de alguns ocupantes: a senhora Nochère, porteira; senhora de Beaumont, segundo direito; Bartlebooth, terceiro esquerdo; Rémi Rorschash, produtor de televisão, quarto esquerdo; Doutor Dinteville, sexto esquerdo; e também o apartamento vago, no sexto direito, que foi ocupado até à morte por Gaspard Winckler, artesão; a terceira planta, na metade inferior da folha, é a do apartamento de Winckler: três divisões a dar para a rua, uma cozinha e uma retrete viradas para o pátio, uma arrecadação sem janela.
  A mulher tem na mão direita um volumoso molho de chaves, por certo as de todos os apartamentos que visitou durante o dia; várias estão penduradas em porta-chaves de fantasia: uma garrafa-miniatura de Marie Brizard, um tee de golfe e uma vespa, um dominó representando um duplo-seis e uma ficha de plástico, octogonal, com uma flor de tuberosa embutida.

  Gaspard Winckler morreu há quase dois anos. Não tinha filhos. Não se lhe conhecia família. Bartlebooth encarregou um notário de encontrar os seus eventuais herdeiros. A única irmã, Anne Voltimand, morrera em 1942. O sobrinho, Grégoire Voltimand, foi morto no Garigliano em Maio de 1944, quando foi transposta a linha Gustav. Foram precisos vários meses para que o notário descobrisse um primo afastado de Winckler; chamava-se Antonie Rameau e trabalhava num fabricante de sofás por módulos. Os direitos da sucessão, a que se juntavam as despesas ocasionadas pelo apuramento de sucessíveis, revelaram-se tão elevados que Antoine Rameau teve de vender tudo em leilão. Há alguns meses já que os móveis foram dispersos por casas de leilões; há algumas semanas o apartamento foi comprado por uma agência.

  A mulher que sobe a escada não é a directora da agência, mas a adjunta; não trata das questões comerciais, nem das relações com os clientes, mas apenas dos problemas técnicos. Do ponto de vista imobiliário, o negócio é são, o bairro valioso, a fachada de pedra talhada, a escada é correcta apesar da antiguidade do ascensor, e a mulher vem agora inspeccionar com mais cuidado o estado do local, traçar uma planta mais exacta das instalações, por exemplo, com riscos mais grossos para distinguir as paredes dos tabiques e semicírculos com setas para indicar em que sentido abrem as portas, e prever as obras, preparar uma primeira estimativa quantificada da renovação: a divisória que separa a retrete da arrecadação será deitada abaixo, permitindo instalar uma casa de banho com polibã e W.C.; os ladrilhos da cozinha serão substituídos; uma caldeira de paredes a gás da cidade, mista (aquecimento central, água quente) tomará o lugar da velha caldeira a carvão: o parquete de desenho regular das três divisões será retirado e substituído por uma chapa de cimento que virá a ser coberta por um forro e uma alcatifa.
  Destes três pequenos quartos em que durante quarenta anos viveu e trabalhou Gaspard Winckler, já não resta muito. Os seus poucos móveis, o seu pequeno banco de carpinteiro, a serra de recortes, as minúculas limas, já não estão lá. Na parede do quarto, diante da cama, ao lado da janela, já não está aquela tela quadrada de que ele gostava tanto: representava uma antecâmara onde estavam três homens. Dois estavam de pé, com chapéus altos que lhes pareciam aparafusados aos crânios. O terceiro, também vestido de preto, estava sentado perto da porta, na atitude de um senhor que espera por alguém, e tratava de enfiar as luvas novas, cujos dedos se moldavam aos seus.
  A mulher sobe a escada. Em breve o velho apartamento se tornará uma grandiosa habitação, gr. salão, 1q., conf., vista, calmo. Gaspard Winckler morreu, mas é longa a vingança que tão pacientemente, tão minuciosamente urdira ainda não se satisfez de todo.

(...)


Georges Perec
A vida - Modo de usar
Editorial Presença, 1989
Tradução de Pedro Tamen
  
«Não tens por hábito nem te apetece fazer diagnósticos. O que te perturba, o que te comove, o que te mete medo, mas que por vezes te arrebata, não é a rapidez da tua metamorfose, é, pelo contrário, justamente, a sensação vaga e pesada de que não se trata de uma metamorfose, de que nada mudou, de que sempre foste assim, ainda que só hoje o saibas; isto, no espelho rachado, não é o teu novo rosto, as máscaras é que caíram, o calor do teu quarto fê-las derreter, o torpor descolou-as. As máscaras do bom caminho, das grandes certezas. Será que, durante vinte e cinco anos, não soubeste nada do que hoje é já o inexorável? Nunca viste falhas naquilo que para ti constitui a tua história? Os tempos mortos, as passagens inúteis. O desejo fugaz e pungente de deixares de ouvir, de deixares de ver, de ficares em silêncio e imóvel. Os sonhos insensatos da solidão. Amnésico errando pelo País dos cegos: ruas largas e vazias, luzes frias, rostos mudos por onde deslizasse o teu olhar. Nunca serias atingido.»



Georges Perec
Um Homem que Dorme
Editorial Presença, 1991
«Atingir o fundo não significa nada. Nem o fundo do desespero, nem o fundo do ódio, da decadência etílica, da solidão orgulhosa. A imagem demasiado bela do mergulhador que, com um vigoroso pontapé, regressa à superfície existe para te lembrar, se fosse necessário, que aquele que caiu tem direito a todas as honras: a misericórdia de Deus estende-se sobre ele como sobre os habitantes do céu a quem dá o alimento. Os pecadores, como os mergulhadores, foram feitos para serem absolvidos.»



Georges Perec
Um Homem que Dorme
Editorial Presença, 1991
«Ainda não viveste, e no entanto, já está tudo dito, tudo acabado. Só tens vinte e cinco anos, mas o teu caminho já está traçado. Os papéis, as etiquetas estão prontos: desde o bacio da tua primeira infância até à cadeira de rodas da tua velhice, todos os assentos aguardam a sua vez. As tuas aventuras estão tão bem descritas que a revolta mais violenta não faria pestanejar ninguém. Por mais que saias para a rua e mandes às urtigas os chapéus das pessoas, e cubras a cabeça de imundícies, e andes descalço, publiques manifestos, dês uns tiros de pistola à passagem de um qualquer usurpador, de nada servirá: a tua cama já está feita no dormitório do hospício, o teu talher está posto à mesa dos poetas malditos. Barco bêbedo, miserável milagre: o Harrar é uma atracção de feira, uma viagem organizadora. Tudo está previsto, tudo está preparado até ao mais ínfimo pormenor: os grandes arroubos do coração, a fria ironia, as grandes dores, a plenitude, o exotismo, a grande aventura, o desespero. Não venderás a tua alma ao diabo, não irás, de sandálias nos pés, precipitar-te no Etna, não destruirás a sétima maravilha do mundo. Tudo está já preparado para a tua morte: a bala que te levará deste mundo já está fundida há muito tempo, já designaram as carpideiras para acompanharem o teu caixão.»



Georges Perec
Um Homem que Dorme
Editorial Presença, 1991
«Durante muito tempo construíste e destruíste os teus refúgios: a ordem ou a inacção, o vaguear ou o sono, as rondas nocturnas, os instantes neutros, a fuga das sombras e das luzes. Talvez pudesses continuar ainda por muito tempo a mentir, a embrutecer-te, a cair na tua própria armadilha. Mas o jogo acabou, acabou a grande festa, a embriaguez falaciosa da vida suspensa. O mundo não se mexeu e tu não mudaste. A indiferença não te tornou diferente.

Não morreste. Não enlouqueceste.»



Georges Perec
Um Homem que Dorme
Editorial Presença, 1991