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isto é um assalto!

— Isto é um assalto! — gritou o homem ao mesmo tempo que encostava um caderno de apontamentos à cabeça de uma vendedora, de 21 anos, residente em Mechelen.
A jovem contou que pelas 16h30 de ontem passava na Rue des Bogards, junto aos lavadouros públicos, em Bruxelas, quando foi abordada pelo assaltante, que lhe exigiu pelo menos quatro histórias originais ou o mesmo número de poemas.
Segundo a polícia, a vítima possuía apenas duas histórias e uma lista de supermercado, tudo avaliado em 10.400 caracteres tendo sido obrigada, para completar o valor exigido, a trautear o primeiro andamento do terceiro concerto brandeburguês, imitando uma tuba desafinada. De seguida, o criminoso fugiu na direcção de um automóvel cinzento escuro, onde o esperava um cúmplice que, de acordo com uma testemunha, era «a cara chapada de Mowsle Lockyer». «No mínimo, era o seu irmão gémeo» — acrescentou ainda a testemunha com certa emoção.




Rui Manuel Amaral
Caravana
Angelus Novus, 2008

o bibliotecário

Sempre ao fim da manhã e também ao fim da tarde, o bibliotecário recolhe os livros abandonados
em cima das mesas. Aproveita para afagar as lombadas, ajeitar as folhas, limpar as capas com gestos ternos e profissionais. Depois, e usando de todo o cuidado para não lhes causar algum desgosto ou perturbação, conduz cada livro ao seu exacto lugar. Com veemente paciência, procura então colocar cada volume na posição mais cómoda, alinhando a lombada com as restantes lombadas da mesma estante. As mãos tremem-lhe de tanto zelo. No entanto, e apesar do cuidado com que o bibliotecário se entrega à sua meticulosa tarefa, os livros dedicam-lhe uma profunda inimizade. Conspiram e manobram nas suas costas, desde o primeiro dia. O bibliotecário ouve-os falar e dá conta de tudo. Mas tanto se lhe dá porque ama verdadeiramente os livros. Porque ama-os apaixonadamente com todas as suas forças. Os livros, porém, não se deixam comover por estas demonstrações de afecto. Escarnecem do seu irritante desejo de agradar, lançam ofensas, urdem as piores armadilhas : os livros de história disfarçam-se de livros de botânica, os de medicina escondem-se sob a capa dos de teologia, e assim por diante.
Ora, os mais acérrimos inimigos do bibliotecário são os livros de poesia. Já vi livros de poesia enterrarem os dentes, sem cerimónias, nas mãos pequenas do bibliotecário.
Mais do que isso : já vi clássicos da poesia puxarem-lhe a língua, cuspirem-lhe na cara, chamarem-lhe falso Judas e lambe-cus. Felizmente, são dos menos solicitados pelos leitores. De facto, apesar dos seus esforços para atraírem as atenções, com as suas capas escandalosamente azuis ou desmesuradamente grandes, raras são as vezes em que saem do lugar. Por isso, o ódio cresce a cada dia que passa. E à noite, colados à sua imensa imobilidade, os livros de poesia sonham com a morte do bibliotecário.


Rui Manuel Amaral
Caravana
Angelus Novus, 2008

poema do tráfego

Tombou uma gota, depois outra,
em seguida numerosas gotas tombaram
sobre os vidros e o tejadilho.
As velhotas fecharam as janelas
e o ar ficou mais quente.
Agora é um imenso casulo azul,
cercado pelo murmúrio da chuva.
Em volta há milhares de flores intermitentes
brilhando na escuridão.
Flores vermelhas, verdes
e amarelas.
O rádio explode: 20 horas no continente e madeira,
19 nos açores.
Enquanto as velhotas cabeceiam,
o autocarro avança mais um metro
por dentro da eternidade.

rui manuel amaral,
extraído de dias felizes