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  «É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder estar de pé, nem suficientemente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. Pode imaginar nesta cela um frequentador dos cimos e das cobertas dos navios. O quê? Podia-se viver nesta cela e ser-se inocente? Improvável, altamente improvável. Ou então o meu raciocínio caía pela raiz. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. De resto, nós não nos podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança  a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.
  Acredite-me, as religiões enganam-se desde o momento que pregam moral e fulminam mandamentos. Deus não é necessário para criar culpabilidade, nem para castigar. Para isso bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do juízo final. Permita-me que ria respeitosamente. Eu espero-o a pé firme: conheci o que há de pior, que é o juízo dos homens.»

(...)

Albert Camus
A Queda
Livros do Brasil, s/d
Tradução revista de José Terra
«Até amanhã, pois, meu caro senhor e compatriota. Não, agora facilmente atina com o caminho; deixo-o nesta ponte. Nunca passo, de noite, numa ponte. É a consequência de um voto. Suponha, no fim de contas, que alguém se atira à água. De duas uma, ou o senhor o segue, para o tirar, e, em tempo de invernia, expõe-se ao pior, ou o abandona à sua sorte e os mergulhos retidos causam por vezes estranhas cãibras. Boa noite! Como? estas damas, por detrás das vidraças? O sonho, meu caro senhor, o sonho com pouco esforço. Estas criaturas perfumam-se com especiarias. Entra-se, elas correm as cortinas e a navegação começa. Os deuses descem sobre os corpos nus e as ilhas vão à deriva, dementes, encimadas por uma cabeleira desgrenhada de palmeiras ao vento. Experimente.»

(...)

Albert Camus
A Queda
Livros do Brasil, s/d
Tradução revista de José Terra
«Não sei se sabe, senhor Meursault, disse, não é
que eu seja mau, o que eu sou é nervoso. O outro disse-me:
«Se és homem, desce do eléctrico.» Respondi-lhe: «Vá,
sossega, tem calma.» Disse-me que não era um homem.
Então desci e disse-lhe: «É melhor que te cales, ou parto-te
a cara.» Respondeu-me: «Sempre queria ver.» Então dei-lhe
um soco. Caiu. Quando eu o ia a ajudar a levantar, começou
do chão a dar-me pontapés. Então dei-lhe uma joelhada e
dois «bicanços.» Tinha a cara cheia de sangue. Perguntei-lhe
se queria mais. Disse que não.»
(...)

Albert Camus
O Estrangeiro
Livros do Brasil, 2001
Tradução de António Quadros
    Hoje a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.
Recebi um telegrama do asilo: «Sua mãe falecida. Enterro
amanhã. Sentidos pêsames.» Isto não quer dizer nada. Tal-
vez tenha sido ontem.
    O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta
quilómetros de Argel. Tomo o autocarro das duas horas e
chego lá à tarde. Assim posso passar a noite a velar e
estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao
meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia
recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito.
Cheguei mesmo a dizer-lhe. «A culpa não é minha.». Não
respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas 
palavras. A verdade é que eu não tinha nada que me
desculpar. Ele é que tinha de me dar os pêsames. Mas com
certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto.
Por agora, é um pouco como se a mãe não tivesse morrido.
Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e
tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.
(...)

Albert Camus
O Estrangeiro
Livros do Brasil, 2001
Tradução de António Quadros
«Com algumas outras verdades, descobri a pouco e pouco estas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com grande nitidez. Tive, antes de mais, de recuperar a memória. Gradualmente, fui vendo mais claro, aprendi um pouco do que sabia. Até ali, tinha sido sempre ajudado por uma espantosa faculdade de esquecimento. Esquecia tudo e em primeiro lugar as minhas resoluções. No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava-lhes atenção, é certo, quando as circunstâncias a isso me obrigavam, mas de uma maneira cortês e superficial. Por vezes, fazia menção de me interessar por uma causa estranha à minha vida quotidiana. No fundo, porém, eu não participava nela, salvo, é certo, quando a minha liberdade fosse contrariada. Como dizer-lhe? Tudo isso resvalava. Sim, tudo resvalava por mim.

(…)

Chegou o dia em que não pude mais. A minha primeira reacção foi confusa. Já que era mentiroso, ia manifestá-lo e jogar com a minha duplicidade à cara de todos aqueles imbecis, antes mesmo que a descobrissem. Levado à parede, responderia ao desafio. Para me precaver contra o riso, imaginei então lançar-me à irrisão geral. Em suma, tratava-se ainda de escapar ao julgamento. Queria pôr do meu lado os que riam ou, pelo menos, pôr-me do lado deles. Pensava, por exemplo, em empurrar os cegos na rua, e, à alegria surda e imprevista que isto me dava, descobria até que ponto uma parte da minha alma os detestava; projectava furar os pneus dos carrinhos de aleijados, ir berrar “pelintras” sob os andaimes onde trabalhavam os operários, esbofetear as crianças de peito no metropolitano. Sonhava com isso tudo e nada fiz ou, se fiz alguma coisa parecida, esqueci-me. O certo é que a própria palavra justiça me punha fora de mim. (…)»



Albert Camus
A Queda
Edição Livros do Brasil, s/d
Tradução revista de José Terra

«Sei bem que não se pode passar sem dominar ou ser-se servido. Todo o homem tem necessidade de escravos como de ar puro. Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava.»

Albert Camus
A queda
Livros do Brasil, 2008
«Ergui a cabeça e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, estalou um riso atrás de mim. Surpreendido, voltei-me bruscamente: não havia ninguém. Fui até ao parapeito: nenhum batelão, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso pelas minhas costas, um pouco mais distante, como se fosse a descer o rio. Fiquei ali, imóvel. O riso diminuía, mas eu ouvia-o ainda mais distintamente por detrás de mim, vindo de parte nenhuma, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, percebia que o meu coração batia precipitadamente. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso; era um riso bom, natural, quase amigável, que repunha as coisas no seu lugar. Em breve, aliás, deixei de o ouvir. Alcancei os cais, meti pela rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava aturdido, respirava a custo. Nessa noite, telefonei para um amigo que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi rir sob as minhas janelas. Abri. Efectivamente, no passeio, alguns jovens despediam-se alegremente. Fechei de novo as janelas, encolhendo os ombros; ao fim e ao cabo, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me à casa de banho para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que o meu sorriso era dúbio…»



Albert Camus
A Queda
Livros do Brasil, 2008
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