Mostrar mensagens com a etiqueta miguel torga. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta miguel torga. Mostrar todas as mensagens

diário V

Palheiros de Mira, 26 de Junho de 1949

O dia inteiro deitado na areia, bêbedo de sol, de sal e de som. Fui com os homens ao mar, ouvi-os cantar o Avé enquanto a corda da rede deslizava no bordo do barco, mas, apenas desembarquei, estendi-me novamente no chão, e ali fiquei ensimesmado a olhar. Não há dúvida que nunca serei capaz de dizer coisa com coisa do muito que trago na alma e tenho recolhido no meu já longo caminho. Tanto livro, tanta palavra, tanto esforço, e nada! Chocalha um oceano inteiro dentro de mim, e não consigo ir além dum poema estúpido, sonolento, que acaba assim:


O mar é bom,
Toca música.



Miguel Torga
Diário V
Edição do Autor, 1951

diário XII

Coimbra, 1 de Abril de 1973

A ironia dos actos praticados! Estúpidos, quase todos, e são eles que nos dão a inteligência da vida. Uns, fruto do acaso, outros deliberadamente consumados, numa visão retrospectiva dir-se-ia que articulam num plano de coerência intrínseca tão alheio à vítima e tão inexorável que o sentido das opções mal se distingue do império das circunstâncias que os precedem e lhes sucedem, de tal forma encadeadas, que a personalidade, perplexa, se sente abolida. Mas onde teria corpo o drama de ser homem, sem a trama dos actos? Só diante da sua irreversibilidade no perfil biográfico é que se vê até que ponto eles foram igualmente absurdos e necessários para que acontecesse, no tempo, esta aventura inédita de nascer com data, ter um nome próprio, e morrer.


Miguel Torga
Diário XI
Coimbra Editora

diário XI

Coimbra, 16 de Fevereiro de 1969

Escrever... Nausear-se e nausear os outros de prosa e de versos... Ah, grande Rimbaud! Tu, sim, soubeste resistir à tentação! Obrigado pelos deuses a rezar a primeira missa, recusaste-te heroicamente a rezá-la segunda vez...



Miguel Torga

Diário XI
Coimbra Editora

passagem pelo cárcere

(Nota: Torga foi preso pela PIDE em Novembro de 1939 em Leiria e levado mais tarde para o Aljube de Lisboa)



(…)

- És então escritor?
- Sou.
- E poeta também, pelos vistos…
- Também.
- Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta…Vais longe!
- Hei-de ir até onde puder.
Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.
- Muito me contas! E queres então fazer a revolução social?
- Quero que me deixe em paz.
- Deixo. Mas antes vais responder a umas perguntinhas…
- Não tenho nada a acrescentar às declarações que já fiz.
- Tens. Ora pensa lá bem …
- Está pensado.
- A sério?
- A sério.
- Ouve: eu podia pôr-te aí a falar como um papagaio. Era só dar-te corda. Mas não vale a pena. Temos muito tempo. Fica para mais tarde…Verás que daqui a alguns diass mudas de ideias…
- Não mudo.
- Mudas, mudas…
Sem táctica elaborada para enfrentar a nova situação e ferido nas mais íntimas veras do amor próprio, reagia em bloco, maciçamente, com a dureza das minhas fragas.
- Tu parece que tens fumaças de valentão! Sossega, que eu tiro-as…
- Não tira.
Ainda fez um gesto. Mas deteve-se, sorriu escarninhamente, e chamou por um subalterno.
- Este segue também…


miguel torga
O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974







adolfo correia da rocha ou miguel torga
1907-1995

súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

miguel torga

ode à poesia

audio:
miguel torga na voz de joão villaret



Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
– E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas...
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!

Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?

Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse...

Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz...

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir...
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir...

Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!


miguel torga
in "Odes", 1946; "Poesia Completa", 2000