Fui gerado por meu pai e por minha mãe.
Ao meu pai geraram-no o seu pai e sua mãe, meus avós,
à minha mãe geraram-na o seu pai e a sua mãe, meus avós.
Estes foram gerados por outros antes deles e estes por outros.
Não preciso de contar o que todos sabem. Não preciso de dizer
as mãos deste e os olhos daquela, os narizes de uns e outros:
de todos guardo a memória e as coisas, na fidelidade possível
que a memória e as coisas alcançam. Estas são as minhas partes
e com elas jamais serei um estropiado ou um esquecido, um mendigo de futilidades.
Sou gerado pelos que me geram todos os dias,
pelo amigo e pelo adversário, por aqueles que amo
mas não menos por aqueles que odeio,
pelos que falam sabiamente mas mais pelos que escutam sabiamente.
Sou gerado também pelas coisas que não têm consciência de mim
e que a minha consciência recebe no seu capricho,
mas muito menos do que pelas coisas dos homens.
Sou gerado pelos deuses em que não acredito
e gero eu também deuses em que não acredito.
Sou sobretudo gerado pela mulher que me faz e pelo homem que se faz
dia e noite, no trabalho e no descanso, umas vezes justamente
e outras injustamente, e gerado sou pelas palavras que gero e que me geram
de noite e de dia. tanto de noite como de dia.
Isto é o que desejo para as minhas gerações seguintes: que ao entardecer
a minha barba floresça como a amendoeira em flor em vós
(assim foi com os velhos que me geraram),
que as minhas mãos permaneçam delicadas mas capazes de ferir ainda em vós
(assim foi com os velhos que me geraram),
que a minha voz permaneça suave mas capaz de ferir ainda em vós
(assim foi com os velhos que me geraram).
Para mim desejo apenas que a mulher ache ainda calor no meu peito,
um humilde abrigo antes de a noite gerar o dia.
E que possa sempre dormir recordado como o amanuense esquecido.
(Outros há que dizem que são da minha geração
e que dela falam com rancor ou arrogância.
Digo que esses são pobres de alma ou bastardos.
Sou filho único e nunca falo da minha geração com rancor ou arrogância.)
É a minha geração exacta e as coisas por mim geradas que aqui digo,
tão verdadeiras como o pai ser filho, sombras estéreis de seres,
da pequenez dos frutos que tombam das árvores
e serenos adormecem no chão. Tanto no princípio como no fim.
J.P. Moreira
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olhas o corpo nu contra o espelho:
és da cor do mar
quando anoiteces. respiras
para lá deste lado do vidro
e o teu olhar -
tão fecundo - compactua
com o sacrifício desumano das gaivotas.
olhas o corpo nu contra o espelho:
uma sombra que a forma ensombra
estende à mão
que se avizinha a súplica
de um duelo: na luz - como
na infância -
o primeiro coração palpita
na penumbra
um privilégio irrecusável.
J.P. Moreira
és da cor do mar
quando anoiteces. respiras
para lá deste lado do vidro
e o teu olhar -
tão fecundo - compactua
com o sacrifício desumano das gaivotas.
olhas o corpo nu contra o espelho:
uma sombra que a forma ensombra
estende à mão
que se avizinha a súplica
de um duelo: na luz - como
na infância -
o primeiro coração palpita
na penumbra
um privilégio irrecusável.
J.P. Moreira
pensa bem nos nichos que só as unhas alcançam
pensa na porcaria que as unhas escondem
pensa na moça que hoje faz anos
e tu não esqueceste mas nem uma palavra
pensa em tudo o que apodrece
dentro de ti
em cada um dos teus mortos que apodrece
dentro de ti
em cada furto à verdade
em cada masturbação matreira
em cada impureza inconfessada
dentro de ti
que nem as unhas alcançam.
eu sei que pensas muito em tudo isso
mas nada disso importa.
já te falei de corpos mutilados na rosa dos séculos
(corpos queimados corpos decepados corpos desmembrados
pedaços de carne desfiada drapejando ao vento
não como o desejo muitos deles com a alma ainda lá dentro)
da imortalidade da alma da redenção condicional da alma
da real importância do logos do mal que radica na alma
ad aeternum
de como a alma se alegra na contemplação das pequenas crias
de todos os animais sobretudo dos ferozes?
pensa pensa bem em tudo isso
sem esquecer que é tudo uma mesma coisa.
mas nada disso importa.
pensa na porcaria que as unhas escondem
pensa na moça que hoje faz anos
e tu não esqueceste mas nem uma palavra
pensa em tudo o que apodrece
dentro de ti
em cada um dos teus mortos que apodrece
dentro de ti
em cada furto à verdade
em cada masturbação matreira
em cada impureza inconfessada
dentro de ti
que nem as unhas alcançam.
eu sei que pensas muito em tudo isso
mas nada disso importa.
já te falei de corpos mutilados na rosa dos séculos
(corpos queimados corpos decepados corpos desmembrados
pedaços de carne desfiada drapejando ao vento
não como o desejo muitos deles com a alma ainda lá dentro)
da imortalidade da alma da redenção condicional da alma
da real importância do logos do mal que radica na alma
ad aeternum
de como a alma se alegra na contemplação das pequenas crias
de todos os animais sobretudo dos ferozes?
pensa pensa bem em tudo isso
sem esquecer que é tudo uma mesma coisa.
mas nada disso importa.
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