Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
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Ingeborg Bachmann
Romancista, dramaturga e poetisa austríaca, Ingeborg Bachmann nasceu a 25 de Junho de 1926, em Klagenfurt. Testemunhou a ocupação da Áustria pelas tropas alemãs, quando contava apenas doze anos de idade, experiência que veio a manifestar na sua obra.
Estudou Filosofia e Direito nas Universidades de Innsbruck, Graz e Viena. Nesta última apaixona-se pelo poeta judeu Paul Celan, que após dois meses abandona a cidade; mantendo porém o complexo relacionamento - que influenciou a obra de ambos - à distância. Ali apresentou a sua tese de doutoramento, dedicada ao pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, no ano de 1950. Publicou posteriormente um ensaio sobre a Filosofia da Linguagem de Ludwig Wittgenstein.
Em 1951, estreou-se como escritora de peças de teatro radiofónico para a emissora Rot/Weiss/Rot, incumbência que abdicou em 1953, ano em que não só publicou a sua primeira colectânea de poesia,Die Gestundete Zeit (O Tempo Aprazado), que venceu o prémio do Gruppe 47, o movimento literário mais conceituado da época do pós-guerra, como também vai viver para Itália. Pouco tempo após, muda-se novamente; desta vez para a Universidade de Harvard e como professora convidada, regressando depois a Itália, onde, entre 1954 e 1955, escreveu colunas de carácter político para o jornal alemão Westdeutschen Allgemeinen Zeitung, usando o pseudónimo de 'Ruth Keller'.
Em 1958, conheceu em Paris o escritor suíço Max Frisch, com quem manteve uma relação até os inícios da década de 60, altura em que optou por uma vida mais discreta, desligando-se das suas actividades políticas e sociais, e dividindo o seu tempo entre cidades europeias como Munique, Berlim, Zurique e Roma. No ano seguinte, foi a primeira professora da recém-instituida cadeira de Poética na Universidade de Frankfurt, e em 1964 foi galardoada com o Prémio da Crítica de Berlim pela sua obra, em parte autobiográfica, Das Dreißigste Jahr (1961, O Trigésimo Ano), e com o respeitado Prémio Georg Büchner, tendo sido ainda nomeada para a Academia das Artes de Berlim Ocidental. Nesse período iniciou uma viagem pelo Sudão e Egipto. Foi-lhe entregue a Medalha Nacional Austríaca em 1968.
Na Primavera de 1973 deu uma série de conferências na Polónia, tendo visitado os campos de concentração de Auschwitz e Birkenau. A 17 de Outubro desse mesmo ano, Bachmann faleceu em Roma, três semanas após ter ficado gravemente queimada num incêndio ocorrido no seu apartamento, motivado por um cigarro mal apagado. Restam dúvidas quanto à natureza do incidente, reavivadas sobretudo pelo teor da escrita da autora, em Malina (1971, Malina): «Tenho que ter cuidado para não cair de caras no disco do fogão, para não me desfigurar, para não me queimar (...) onde tantas vezes queimei farripas de papel, não tanto para queimar qualquer coisa escrita, mas para acender um último e muito último cigarro.»
A escrita de Ingeborg Bachmann está intimamente ligada às suas experiências enquanto mulher assim como à reflexão sobre as circunstâncias históricas em que viveu e que marcaram a sua vida, do seu país e inclusivamente de todo o mundo.
Manobras de Outono
Não digo: isso foi ontem. Com insignificantes
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gôndolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.
Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e miríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas cenas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.
Vamos viajar! Debaixo de ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pores-de-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gôndolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.
Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e miríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas cenas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.
Vamos viajar! Debaixo de ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pores-de-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
Paris
Entretecidos na roda da noite
os vagabundos dormem
lá em baixo nas galerias trovejantes;
mas onde nós estamos é a luz.
Temos os braços carregados de flores,
mimosas de muitos anos;
ouros caem de ponte em ponte
ofegantes no rio.
Fria é a luz,
mais fria ainda é a pedra frente ao portão,
e as taças das fontes
já estão meio vazias.
Que será quando, perturbados
de saudade até ao esvoaçar dos cabelos,
aqui ficarmos e perguntarmos: Que será
quando passarmos a prova de beleza?
No alto do carro da luz,
vigilantes também, estamos perdidos
nas alamedas dos génios, lá em cima,
mas onde nós não estamos é a noite.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
os vagabundos dormem
lá em baixo nas galerias trovejantes;
mas onde nós estamos é a luz.
Temos os braços carregados de flores,
mimosas de muitos anos;
ouros caem de ponte em ponte
ofegantes no rio.
Fria é a luz,
mais fria ainda é a pedra frente ao portão,
e as taças das fontes
já estão meio vazias.
Que será quando, perturbados
de saudade até ao esvoaçar dos cabelos,
aqui ficarmos e perguntarmos: Que será
quando passarmos a prova de beleza?
No alto do carro da luz,
vigilantes também, estamos perdidos
nas alamedas dos génios, lá em cima,
mas onde nós não estamos é a noite.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
O tempo aprazado
Vêm aí dias difíceis.
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefeceram ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Do outro lado enterra-se-te a tua amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe o silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães.
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!
Vêm aí dias difíceis.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefeceram ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Do outro lado enterra-se-te a tua amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe o silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães.
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!
Vêm aí dias difíceis.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
Assírio & Alvim, 1993
Selecção, tradução e introdução de Judite Berkemeier e João Barrento
Gloriastrasse
The blessing of morphine, but not the blessing of a letter,
the blessing of people, words, conforting words, but only
within delirium the single apparition which everyone awaits,
no return while alive, only transfiguration.
Evil, not simply mistakes, lasts,
what can be forgiven is long since forgiven, the blade's cut
has also headed, only the cut made by evil
does not heal, but opens during the night, every night.
Ingeborg Bachmann
Darkness Spoken: The Collected Poems
Zephyr Press, 2006
Tradução de Peter Filkins
the blessing of people, words, conforting words, but only
within delirium the single apparition which everyone awaits,
no return while alive, only transfiguration.
Evil, not simply mistakes, lasts,
what can be forgiven is long since forgiven, the blade's cut
has also headed, only the cut made by evil
does not heal, but opens during the night, every night.
Ingeborg Bachmann
Darkness Spoken: The Collected Poems
Zephyr Press, 2006
Tradução de Peter Filkins
A Fool's Word
A slag heap, the word,
beaten down with stones
in this slag heap, the echo
carted off (though I didn't
cart it away again)
call to us
that it was not
the beginning
it was the end.
The blessing of morphine,
but not
the blessing of a word,
the blessing of a fresh made bed,
but not
the blessing of holding hands.
And yet no hand,
no words, hold a blessing.
Ingeborg Bachmann
Darkness Spoken: The Collected Poems
Zephyr Press, 2006
Tradução de Peter Filkins
beaten down with stones
in this slag heap, the echo
carted off (though I didn't
cart it away again)
call to us
that it was not
the beginning
it was the end.
The blessing of morphine,
but not
the blessing of a word,
the blessing of a fresh made bed,
but not
the blessing of holding hands.
And yet no hand,
no words, hold a blessing.
Ingeborg Bachmann
Darkness Spoken: The Collected Poems
Zephyr Press, 2006
Tradução de Peter Filkins
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