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XXVIII

Ligar o mundo por um istmo,
um canal de sangue e virtude.

Ligar o mundo pela fronteira incendiada,
destruída até ao raso chão.

Escutar. Rente ao chão depositar o rosto,
depois seguir caminho, como quem do chão

pede um segredo, uma verdade
num corpo e numa alma, como nos disse o vidente.

Assim deposito o rosto nesse chão
e escuto atentamente a anónima violência,

o metálico som da cidade.



Luís Quintais
Riscava a palavra dor no quadro negro
Livros Cotovia, 2010

XXX

Tudo é matéria do pensar, os gritos, o tráfego,
a súbita música que destrói o sentido

e a navegação das palavras sob a luz,
a cidade acolhendo os seus dias, as suas árvores,

os seus exílios, as suas lâminas rombas
desenhando violências sob a espuma do corpo abandonado.

Hoje, fechada a porta, alguém forçou a porta:
o inverno declinava divertimentos, tomava

de assalto as casas com o frio espesso da memória.
Dentro desta casa, o vento levantava as folhas

nocturnas do pensar e do acontecer, outra vez.
Os amigos retiravam-se, numa anotação

de staccato e sorriam. Era tarde para descrever
o real, a dura categoria que nos iria levar

em direcção ao fim estendendo-se
como branco pano sobre o rosto.

A indecisa forma fará o resto,
a segura forma fará o resto.

Escreveremos com a mala e os papéis, e ninguém
virá perturbar o sangue que corre, corre

tão espesso e tão claramente
com sua orgânica, viva cor.


Luís Quintais
Riscava a palavra dor no quadro negro
Livros Cotovia, 2010

XVI

Tudo são máquinas, luciferina intenção
de cortar, pela janela, o desenho interrompido,

ou então, tudo são máquinas ainda, quando
a boca se desenha presa às palavras

enunciadas desde o começo da biografia
(que biografia, se só haverá farrapos?):

fantasmas enunciando-se à pressa
e que a cidade se reúne nos muros que a não cingem já.

Tudo são máquinas prestes a incendiar mapas,
a eliminar traços, a apagar vestígios.

«Começará o mundo depois do mundo acabado»,
escreveste no caderno.

É de lixo lírico, a paisagem, humano resíduo.
As máquinas que escrevem, escrevem na pele.

Tudo são máquinas. O mundo irá começar
dentro de momentos, prepara-te.


Luís Quintais
Riscava a palavra dor no quadro negro
Livros Cotovia, 2010

Ave

Uma ave agonizante
entrou-te no quarto,

apenas uma sombra
que se enlaça
noutra:

assim definiste
a memória,

a cidade
que se mineraliza
quando rodeias
essa sombra-ave

com os dedos
apavorados.



Luís Quintais
Mais Espesso que a Água
Livros Cotovia, 2008

Passagem

a)

A necessária ironia
de caminhar
pela mais que urbana cidade
na distraída errância
dos dias,

pensando
em como somos inautênticos
e em como,
por uma espécie de fé,

procuramos
"a verdade numa alma
e num corpo".


b)

A vida encontra o seu caminho,
o mágico ressuscitar do dia,
as visões sem regresso.

Estar à porta de casa
sem pensar que a noite
nos cobre os corpos,

lê nos céus o rosto,
a passagem das horas,
o castigo de não ter amado.

Lê nos céus a surpreendente fuga,
a migração.
Na cidade-rio, no seu curso,

Caronte chora por nós.



Luís Quintais
A Imprecisa Melancolia
Editorial Teorema, 1995

Precipício

As imagens gastas de tão lidas
e os sofisticados lugares comuns da poesia
colam-se-te à pele – pelo incómodo trajo do bom senso
e do bom gosto que repudias.
Vil chegada do que amaste, e que agora recordas.

A poesia faz-se contra o esquecimento?
Melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia.

sem a arruinada ponte não há precipício?
O que conta é o precipício além da arruinada ponte.



Luís Quintais
Angst
Livros Cotovia, 2002

Labirinto

O rapaz sentou-se sobre o que restara da árvore cortada,
o seu diâmetro, essa zona de anéis concêntricos
fechando-se uns sobre os outros.

Um sulco a gravitar tempo fora, ou uma espécie
de boomerang que me atinge depois da longa viagem.
As mãos a levitarem sob a manhã – será sempre manhã

porque a luz com que sonho pensando que o evoco
é uma luz exacta, sem a feroz mácula
da nocturna antecipação.

A sua expressão – consigo pressenti-la – é um refúgio
inadiável, precisão súbita sem resgate
contemplando-me.

Nisto não encontro desenlace ou sequer alguma paz.
O rapaz permanece sentado sobre o mapa
do labirinto e interpela-me:

“Não andamos à procura de histórias, pois não?
Onde está o princípio e o fim
de tão elementar acontecimento?
Recupera a visão e a visão somente, o que te cerca existe
______________quando o vês.”



Luís Quintais
Angst
Livros Cotovia, 2002

D.

No dia da tua morte
o que nos restou cobriu-se
de uma intensidade sem justificação.

Um homem desceu uma encosta,
um jornal dobrado em frente do rosto
protegia-o do fulgor da manhã.

Os semáforos fizeram cair
vermelhos amarelos e verdes
com um diabolismo que lhes não conhecia.

Um homem continuou a descer a encosta
e a sua indiferença era um acontecimento
maior na história do universo.

As crianças regressavam à escola,
excesso de peso nas mochilas,
foi a notícia do dia.



Luís Quintais

Canto Onde
Livros Cotovia, 2006


O pequeno hamlet

O Tomás, o meu filho, brinca na velha ponte abandonada
junto à casa onde habito agora. Gosto muito deste filho
cheio de consequentes silêncios, reservas que lhe vêm do
desamparo da infância - de toda a infância - mas que
nele se sublinham como se um veio nocturno se acercasse
das coisas que interroga. A mim tudo se me esquece quan-
do olho este filho que espanca com um ferro o ferro da
ponte. Observando-o na desatenção que o guarda assim no
fotograma da memória, interpelo-o: " E leste O príncipe
da Dinamarca?", e ele responde-me seco, mortalmente evasivo:
" Não é O príncipe da Dinamarca, é O cavaleiro da Dina-
marca", e volta a espancar, rebarbativo, o ferro.



Luís Quintais
Canto Onde
Edições Cotovia, 2006

Funesto

"isso dói, essa merda dói", disse um certo Q.
quando lhe cortaram o braço pelo ombro.


Luís Quintais
Canto Onde
Edições Cotovia, 2006

Mente

Uma coisa-movimento,
assim, ao abrir a porta, e dentro
a música de a lembrar.



Luís Quintais
Mais Espesso que a Água
Edições Cotovia, 2008

A persistente solidão

A persistente solidão. Nada veio mudar isso.
É madrugada. Estás recolhido no mais profundo sono.
Tens essa virtude antiga de sair do corpo e caminhar pelo ar,
flutuando, celebrando a primeira luz que desponta.
O teu corpo está submisso. A tua alma voga,
mas parece querer despenhar-se.
Do teu corpo brotam pássaros azuis. Perseguem-se,
brincam junto ao tecto, gritam. É a vida
que se esvai. Desde o início que é assim.
A persistente solidão da tua morte que se prolonga.
Nada veio mudar isso. Nem o que te atemoriza:
o diverso da natureza, as imaginadas formas
que descreves, os fetos gigantes, uma outra glaciação
sepultada sob a casa, esta tristeza que se acerca
do teu sono. Progrides pelo quarto. Pressentes o mundo,
esse palco de fogos. Denuncias o visível. Observas o teu corpo.
Pássaros azuis brotam de ti no mesmo sonho de todas as noites.
Trazem-te as memórias que subsistem ainda,
a pouca vida que te resta. Recordam-te a infância:
um país de migrações e fugas, de enigmas
em que descrês, o que te arrasta, o que te magoa.
Recolhes as cinzas dos teus dias, as que se espalham
pela violência do voo, da breve ficção enunciada.
A persistente solidão desde o início. Desde o início, a tua morte
e este movimento de ligar as máscaras
que se soltam do teu corpo adormecido.
Tudo regressa à normalidade, à tranquilidade do teu sono.
A luz desponta inteiramente. Ergues-te
para o pressentir da embriaguez e da simetria.




Luís Quintais

Arte privada

Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso
como se de uma arte privada se tratasse.

A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há que compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.

Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho
e nunca terminado: um princípio de verão,
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas.
A rua de dia de semana
e o arquipélago da solidão despertando
para as poucas coisas que procuro
e que o poema irá entretecer
se entretecer. -
A virtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.

Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
e se ficamos tristes não era para ficarmos,
pois não existem momentos irrepetíveis.
Eles aninham-se no sangue
e voltam a mergulhar-nos na experiência:
um dia de verão, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrão se enrola.
A ausência de tráfego como motivo.

A pouco e pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas,
pois há sempre uma ave, ou a sombra dela,
nos meus poemas. Que havia água,
o cheiro das inusitadas chuvas
pela manhã de Junho.

O rumor da imagem colado aos dedos.
O ocre escuro das areias espalhado na mesa
é um símbolo da infância,
mas não o reconheço ainda.
O poema é uma enumeração que não teve lugar,
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso,
não o reconheço ainda.

Enquanto isso tem lugar em mim o advento
do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro.



Luís Quintais
Imprecisa Melancolia
Editorial Teorema, 1995

A criação do mundo

Quando o meu olhar se cruza
com o desta mulher
que vem ver quem passa,
o que me fere
não é a funda dor dos seus olhos,
a agonia do rosto que implode,
o corpo inchado,
por acção da senilidade bloqueado.

O que me fere
é a entropia dos objectos que a rodeiam:
as paredes amortalhadas
pela respiração de todos os dias,
o frigorífico com mais de trinta anos
coberto de uso, de ferrugem,
a jarra, o azul ardente das suas flores,

o cromático reverso, a criação do mundo.



Luís Quintais
Lamento
Edições Cotovia, 1999

Postal ilustrado

Uma figura de mulher encaminha-se para a floresta.
Vai devagar. Desce a longa avenida de ventos que,
rudemente, lhe estilhaçam os ouvidos.

Quis adivinhar o seu rosto. Descrever as cores
do vestido que lhe estreita o corpo, o movimento
dos braços para a frente, o ruído dos passos lentos

sobre as amarelecidas folhas. Mas ela é, cada vez mais,
um ponto que se afasta. Uma vontade perdida
para o dobrar das árvores à sua passagem.

Quando a mulher entrar na floresta
tudo se suspenderá. A solidão da paisagem
será a minha solidão.

Os meus olhos serão os olhos da paisagem.


Luís Quintais
A Imprecisa Melancolia
Editorial Teorema

O sonho da linguagem

Escreverás sobre a sujeição dos animais.
Mas não hoje. Lembra-te de como se move
a pantera, ainda, na jaula sem literatura

que lhe legaram. Lembrar-te-ás. Mas não hoje.
Porque hoje é o dia em que as metáforas
despertam, a arca se abre, e a linguagem

se assemelha a uma invenção em aberto.
Uma vigília de metáforas preenchendo a noite,
como um Fogo-de-Santelmo que, eternamente,

a cobrisse, a si e ao seu manto e aos seus símbolos.
Hoje é o dia em que a noite se faz dia,
em que a linguagem celebra os animais

depois dos animais terem perecido,
mas sem que haja memória disso,
sequer nostalgia disso. Apenas linguagem,

apenas sentido e som a ressoar dentro
do sentido, sem que a hipótese de um princípio
se imponha, sem que a hipótese de um fim
_________se imponha.

Haverás de despertar, tu também,
para a vigília das metáforas,
para o sonho da linguagem.



Luís Quintais
Duelo
Livros Cotovia, 2004

Dor

O seu curso é uma linha no mapa da cidade,
uma linha a cheio em diagonal
que vai das casas dos muito pobres,

dos muito aflitos, às prisões e às enfermarias
dos agonizantes.
Um dia cruzou-se comigo na rua,

como sempre apressado,
movido por uma espécie de fulgor descritivo
que só a lírica compaixão nos poderá ainda devolver.

Retirou o dobrado mapa da escura mala,
tão escura quanto a sua voz comovida,
e fez-me seguir o rasto, o vestígio

que se quebrava ali naquele encontro
onde partilhámos,
em silêncio, a precisa enunciação da dor.



Luís Quintais
Mais espesso que a água
Edições Cotovia, 2008

Estante

Aproximo-me das vitrinas - o que me afasta
dos livros é infranqueável: a móvel superfície
que a um pequeno gesto cede

e prefigura a apetecida ordem simbólica aí dentro.
Mas depois há a ordem simbólica, o meteoro fractal
que promete o acidente:

o mundo é escura paisagem
e a verdade não contém o dextro sabor, antes
o plumitivo reverso, o erro tóxico e indigerível.



Luís Quintais
Mais espesso que a água
Livros Cotovia, 2008

Lascaux

Lembras-te de Lascaux?
É apenas um papel sobre a mesa
usado até ao fim do tempo.
Aí sobrepõem-se as palavras escritas,
símbolos ínfimos, grafias que se alteraram:
é esse o mapa das nossas existências confusas.
O que encena a memória?
O instrumento rombo que uso para a sondar?
Que é da destreza,
do talento perdido,
da ternura esvaindo-se,
do monumento de pedra
que nos mudou a pele?



Luís Quintais
Mais espesso que a água
Edições Cotovia, 2008