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Infinitivo

 Para Ulf Linde


Queridos selvagens, embora nunca dominasse a vossa língua, isenta de
_______________________________pronomes e gerúndios,
aprendi a assar cavalas embrulhadas em folhas de palmeira
________________e a apreciar patas de tartarugas cruas,
com o seu sabor a lentidão. Gastronomicamente, devo dizê-lo, estes anos
desde que aqui dei à costa têm sido um viajar constante,
e no fim acabo por não saber onde estou. No fundo, vamos continuando a
______________________________   marcar pontos apenas
enquanto ninguém nos macaqueia. Apesar de terdes começado a macaquear-
_______________________-me antes mesmo de vos
ver. Vê-de o que fizeste às árvores! Embora seja lisonjeiro ser olhado
como um deus mesmo por vós, eu, pelo meu lado, macaqueei-vos um
_______________bocadinho, especialmente com as vossas donzelas
- em parte para obscurecer o passado, com o seu mal-afortunado navio mas
_______________________também para enevoar o futuro,
vazio de vela panda. As ilhas são inimigos cruéis
dos tempor verbais, excepto do presente. E os naufrágios não passam de voos
_______________________________da gramática
para a pura causalidade. Vêde o que a vida sem espelhos faz
aos pronomes, para não falar das caras das pessoas! Talvez os vossos ante-
___________________________-passados também
tenham acabado por vir dar a esta maravilhosa praia duma maneira parecida
com a minha. Daí a vossa atitude para comigo. Aos vossos olhos sou
quando muito uma ilha dentro de uma ilha. E de algum modo, observando
_______________________________cada passo que dê,
sabeis que não anseio pelo particípio passado ou pelo passado contínuo
- bom, não mais do que por esse vosso futuro perfeito nas profundezas
_____________________duma cavena húmida,
coberto de algas secas e penas. Escrevo isto com o indicador
no espelho da areia molhada, ao pôr-do-sol, inspirado talvez
pela visão das copas das palmeiras espalmadas contra o céu de platina, como
________________________se fossem
caracteres chineses. Apesar de nunca ter estudado a língua. Além disso, a brisa
abana-as demasiado rapidamente para se poder decifrar a mensagem.


Iosif Brodskii
Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite
.

Ab Ovo

No limite, devia haver uma língua
em que a palavra "ovo" se reduzisse ao O
apenas. O italiano é o que mais se aproxima,
naturalmente, com a sua "uova". Por isso o Alighieri achava
que o alimento mais saudável era o ovo, comungando
dessa predilecção com sopranos e tenores, cujos torsos
em forma de pêra, em última análise, dão corpo à "ópera".
O mesmo é válido para os verdadeiros românticos, ou seja,
os poetas alemães, em que praticamente todos os versos
começam com o que comeram ao pequeno-almoço,
ou para igualmente emproados matemáticos,
aninhados em cima da boa poedeira da sua afinidade,
cujos imaculados zeros jamais chocarão.



Iosif Brodskii
Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Landswher-kanal, Berlim

O canal para onde deitaram a Rosa
L. como quem deita fora um cigarro
está praticamente coberto de ervas.
Desde então muitas rosas murcharam,
o que dificilmente espanta o turista.
O muro - precursor do betão do Christo -
foge da cidade para a vitela e a vaca
por campos lavados da flor do sangue;
a fábrica de charutos fumega.
E o estrangeiro levanta as saias à mulher
nativa - não como Conquistador,
mas como caviloso escutlor;
pronto a desnudar
a estátua que vive mais
do que o reflexo no canal
onde acabaram com a Rosa.


Iosif Brodskii
Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Epitáfio para um centauro

Dizer que foi um infeliz é dizer de mais
ou de menos, depende de quem esteja a escutar.
No entanto, o cheiro que exalava era um tanto de mais,
e o seu trote era também algo difícil de acompanhar.
Dizia: Queria apenas um monumento, mas algo acabou por se extraviar:
- o útero, a linha de montagem, a economia?
Ou então a guerra é que nunca aconteceu, confraternizaram com o inimigo
e deixaram-no ficar assim, provavelmente para retratar
a Intransigência, a Incompatibilidade - esse tipo de coisas que provam
não tanto a nossa singularidade ou virtude, mas a probabilidade.
Durante anos vagueou por olivais, tal uma nuvem,
maravilhando-se com esse entes unipernetas, pais da imobilidade.
Aprendeu a mentir a si próprio, do que fez uma arte,
à falta de melhor companhia, e também para testar a sua sanidade.
E morreu relativamente jovem - porque a parte
animal mostrou-se menos capaz de durar que a sua humanidade.



Iosif Brodskii

Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Centauros IV

O terreno tem as cores das botas, as cores dum trapo indigente;
o século ou o ano não importam nada.
À tardinha, de regresso dos campos, mugem os mutanques:
unicórnios em compacta manada.
Passam uns pelos outros e dizem de senha "inadvertidamente"
- menos em tempo de guerra do que em tempo de paz.
A espada por que o corpo ansiava antes de cientemente
forjar o arado escorrega da mão com sabão e zás.
A trela tenta distinguir dos cães e os donos. Num romance,
a segunda letra parece gémea da primeira. Ao lado
dum cinema amontoam-se os adolescentes -
velhos de cabelo branco com esperma congelado.
Arrebanhados num beco à noite, os comboios estão cansados
das ruas e da cidade; e só no cérebro dum veterano de guerra
escurece o quadrado enlameado da trincheira, onde a antiga estrela
pôde cair, escapando ao telescópio.



Iosif Brodskii

Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Centauros III

Grande plano, em pedra, híbrido do futuro e do passado.
Um torso musculoso com garupa de cavalo.
Ou melhor, os simples "foi" e "será" da lição
gramatical. Talhe-se esse coisa como um montão
de pormenores chatos, numa cabana nua, e com pés de galinha!
Mais, nós próprios ao lado, de cadeirinha.
Ou fundidos com quem gostava de nos fundir
horizontalmente numa cama. Ou no automóvel, pri
sioneiros da perspectiva, escravos da linha. Ou no cérebro
simplesmente. Talhe-se isto em altos berros,
como um pensamento de morte - frequente, ardente, material.
Talhe-se isto como vida agora e como vida eterna, na qual,
como os ovos num saco de rede, somos todos o mesmo
mas diferentes para a galinha que os choca a esmo,
repetindo-se assim, graças à nossa era,
o bastardo da fé de seis asas e da estratosfera.



Iosif Brodskii

Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Centauros II

Irrompem bruscamente do futuro e, tendo gritado "Em vão!",
ao futuro regressam prontamente num sapateado audível.
Naquele ramo estão pousadas aves maiores que o espaço e não
têm penas nem peninhas que as cubram, mas apenas um "Que horrível!"
Um mar horizontal tingido de sol poente.
Uma tarde de Inverno, cansada da penúria
de azul, esvai-se - como um átomo tende
para a desintegração, etc. - na sucessão das horas.
Os restos dum fósforo apagado, uma estátua nua, um estrado
de dança vazio de pessoas são demasiado
reais, demasiado estereoscópicos, pois não existe
nada em que possam transformar-se.
Apenas as coisas planas, por exemplo, a água e o peixe,
têm o poder temporal de gerar um ictiossáurio.
Para os perfis resultantes duma explosão
não existe amanhã nem sudário.



Iosif Brodskii

Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Centauros I

Metade beleza deslumbrante, metade sofá - em demótico, Sófa -,
depois duma tarde a encher a rua cujas janelas parecem caras
com o estrépito dos seus seis saltos altos (no fundo, uma catás
trofe é coisa cujas consequências não é difícil alterar),
corre para um encontro. O amor compõe-se de tule,
cabelo, sangue, colchão de molas, cabeleireiro, felicidade, partos.
Dois terços homem, um terço carro de corrida - Múlia -
saúda-a com indolência e alguns rosnados apartes,
e condu-la a um teatro. Qualquer coxa, desde a idade das fraldas,
mostra uma tendência do músculo para móveis, mognos
trabalhados, armários de espelhos que,
por sua vez, pedem poses a três-quartos, de frente,
e uma bofetada. Condu-la a um teatro, em cujas trevas
- trepando um sobre o outro, amassando os bancos -
gozam o panorama dum drama sobre a vida das bonecas,

que é o que, francamente, éramos, no nosso tempo.



Iosif Brodskii

Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite
Que me arrancasses garbosa ao Pacífico
ou que eu abrisse a tua concha junto ao Atlântico
agora pouco importa. É outro hoje o oceano
que erode o que parecia relativamente rochoso
e que provavelmente se insinua, destruindo
e conquistando, no teu penteado. E, como disse o poeta,
tu hás ido mui longe em humanidade, agora que os teus rebentos
desvirgindam bragas e corações novos por todo o continente,
que é o que, espero, ainda temos em comum.
Contudo, eles de ti são apenas a metade. Num tribunal,
a herança da tua siderante beleza,
que eu julguei imortal, não será atribuída
a ninguém, nem a ti própria. Pois, embora generosos
quando se trate de emprestar propriedades - digamos,
para uma volta à paróquia à experiência - os deuses
ou os genes, no fundo, são egoístas;
em todo o caso, mais vãos do que tu,
pois têm a eternidade. O que está a milhas
de mais uma casa alugada numa aldeia isolada pela neve
algures no Norte, onde talvez, neste preciso momento,
te estejas a ver ao teu inconsciente espelho
que te devolve de certeza menos do que a minha igualmente
unidimensional memória, embora para ti isto de facto pouco importe.



Iosif Brodskii
Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite

Transatlântico

Os últimos vinte anos foram bons praticamente para toda a gente
menos para os mortos. Mas talvez também para eles.
Talvez o Todo-Poderoso-em-Pessoa se tenha tornado um tanto burguês
e use cartão de crédito. Pois doutra maneira a passagem do tempo
não faz sentido. Daí as recordações, as memórias,
os valores, as maneiras de sociedade. Esperamos não termos
gasto a mãe ou o pai ou ambos, ou uma mão cheia de amigos até ao
último, pelo facto de deixarem de nos povoar os sonhos. Os sonhos,
ao contrário da cidade, despovoam-se
à medida que envelhecemos. Por isso é que o eterno descanso
oblitera a análise. Os últimos vinte anos foram bons
praticamente para toda a gente e constituíram
a vida no outro mundo para os mortos. A qualidade dessa vida podia ser
questionada mas não a duração. Os mortos, supõe-se, não se
importariam de conseguir o estatuto de sem-abrigo e dormir em passagens
pedonais, ou de ficar a ver os submarinos grávidos regressarem
ao curral onde nasceram no fim duma viagem à volta do mundo
sem destruírem vida na terra, sem terem
sequer um pavilhão decente para içarem.



Iosif Brodskii
Paisagem com Inundação
Livros Cotovia, 2001
Tradução de Carlos Leite