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burocracia do fim de uma longa amizade

serve para lhe dizer, senhor
a. n., que depois do que
me fez, levei ao lixo cada objecto
que conservava a sua memória e que
eduquei a cabeça a pensar só em
excrementos sempre que por inércia
me quiser aborrecer com lembranças
do que vivi perto de si. que tolice, a
cabeça prega-nos truques, mas com o
presente estará sanado o vício e o
senhor, de vício, passará a ser um
cidadão livre da minha admiração e
cuidado. vai escrito aos dias vinte
de abril de dois mil e sete e vigora
em território nacional e comunitário
por aplicação directa e no resto do
mundo por força dos acordos tácitos
de quem tem vergonha na cara. no mais,
saiba que este poema o obriga a não
chegar à minha pessoa a menos de
vinte mil metros e a não me dirigir
palavra. com vocação para toda a
vida, este poema não é nada comparado
com a traição de que foi capaz. já penso
em excrementos quando escrevo
estes últimos versos e o meu coração
fecha-se naturalmente a toda e qualquer
ternura da sua amizade



valter hugo mãe
folclore íntimo
Cosmorama Edições, 2008
Nota: alinhado à direita, tal como na obra.

poema do rapaz alto

para o antónio gonçalves e para a márcia miranda

havia um rapaz muito alto que tinha medo de ser grande demais para caber num coração. foi assim que se apresentou, vim por tristeza mas, se me quiseres ver outra vez, amar-te-ei para sempre. depois, partiu dobrado sobre si mesmo, como alguém que quisesse abrir a boca nos próprios pés. com medo e calado, abriu a boca sem razão e, de tão dobrado, até o coração lhe fugiu.
havia um rapaz sem coração que tinha medo de não haver nada para lhe tapar aquele vazio. um dia, sem contar, um pássaro ali se pôs e fez ninho. o rapaz, admirado, passou a andar mais hirto, lento, para não o fazer cair. sem contar, ouvindo o canto do belo ser, o rapaz pensou que, se tivesse coração, poderia amá-lo. o pássaro, apaixonado também, imitou o fogo.
havia um rapaz de fogo ao peito com medo de se apagar. havia quem dissesse que era fogo de voar, como um amor se elevava. um dia, tão quente no peito, o rapaz abriu a boca e sentiu o vento descer. tão veloz entrou levou muita coisa de arrasto. de arrasto ali em surpresa, entrou uma boa notícia.
havia um rapaz muito alto que, sem contar, e mesmo sem coração, recebeu uma notícia de que havia alguém para si, o rapaz de vento ao peito, por ser tão alto, ama a sua mulher e ainda se reparte por todos os corações.



valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco, 2006

a última vez

organizei uma festa para a qual
convidei apenas os meus
amigos suicidas. fazemos tudo como
se fosse a última vez

queres vir ao meu inferno

gostava de te mostrar as pequenas
cabeças falantes guardadas nos lugares mais
escuros da minha casa. gostava que
ouvisses o que dizem

os mortos, encostados às paredes e com
problemas de equilíbrio, disciplinam-se
lentamente. vês a minha casa

vou buscar o meu coração. guardei-o aqui
algures e, por ti, tenho a certeza, vale a
pena voltar a encontrá-lo e correr todos os
riscos de novo

cuidado com o cão, não morde, mas é
pesado e pode tirar-te o fôlego com as
patas no peito e depois vou querer
beijar-te

achas que podes não morrer antes

há champanhe e bolo de chocolate


valter hugo mãe

folclore íntimo
Cosmorama Edições, 2008

a máquina de fazer espanhóis

uma máquina que transformasse portugueses em
espanhóis, impecável, infalível, perfeita, eles
entrando por um lado pálidos e mirrados, saindo
do outro corados, estendidos de narizes proeminentes e
orgulho. uma máquina que fosse tão esperta que,
no momento de decidir cada coisa, preterisse sempre
portugal e trouxesse ao de cima o esplendor do país
vizinho. era pegar nessa máquina, saber quem a inventou
e fazer-lhe amor pelo cu até que desfalecesse extenuado.
enviar relatório detalhado para todo o mundo, alardiar
entusiasticamente a satisfação de quem, nem que seja
por casmurrice, espera por sebastião



valter hugo mãe
pornografia erudita
Cosmorama, 2007

daqui

por vezes a vontade de

por vezes a vontade da
velhice, sentar
no cimo do monte e tomar
conta do silêncio



valter hugo mãe
A Cobrição Das Filhas
Quasi Edições, 2001

poema sobre o peito que sonhava filhos

para o josé félix duque


àquele homem saíam-lhe crianças do peito, encostava-se
de socorro ao muro e não dizia nada. os meus olhos de infe-
licidade viam-nas partir, mas um dia, contava, teria um fi-
lho, um filho que ficasse. e as mulheres abeiravam-se dele
para lhe explicarem a maternidade e ele nada escutava.
porque, ao longe, as crianças do seu peito faziam traves-
suras parecidas às dos filhos e , de tempos a tempos, uma
delas vinha mais perto. ele não resistia a sentir esperança.
já o coração falhava de tanto acreditar. e as mulheres colo-
cavam-se entre ele e os estranhos seres, e o homem seguia
o seu caminho entre as sombras como promessa de mãe.



valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco, 2006

o poeta como nu

para o pedro guimarães e para a laura machado

um dia apareceu um poeta sem pétalas. nunca tal se vira.
sem pétalas, dizia-se, estava igual a nu, coberto de nada
que o diferisse, como se ser poeta não trouxesse marcas à
flor da pele, algumas pessoas riram-se nervosamente, e só
por isso o estranho poeta se foi embora sem outra notícia


valter hugo mãe
livro de maldições
objecto cardíaco

2. raiz de pássaro

junto-me às velhas
que resmungam o terço


o cutelo do poema há-de
encerrar-me aqui, o poejo
à mesa o espaço da
tarde, um clarão que
perdura lá fora

porque
também eu tenho
uma meta
física,
chegar ao corpo de
deus

nas árvores
de passagem
o dia
abranda o pé




até que nenhuma palavra
eleita pela boca, no
momento em que deus reclame a
posse do mundo, olhos magros
a devolver imagens, alma
calando-se para sempre



deus virá à terra
ressuscintando os mortos
por uma bagatela


o frio terá mandíbulas
afiadas, magoando. desencantando
as serpentes

valter hugo mãe
três minutos antes da maré encher
quasi edições