A prisão e paixão de Egon Schiele

A esta hora em que a noite é uma seringa partida. A esta hora em que os pulmões são de seda e o sangue circula muito devagar. Eu não estou.

Pode ser a chuva numa esplanada ou, ao invés, o carro que trava o tempo da primavera. Não importa.

A noite é uma especiaria que acende os corpos.

Há três dias que durmo desordenadamente. Transpiro e acordo e vejo casas que são desdobramentos da minha própria casa. A verdade é que preciso de ti para um poema. Preciso que te passeies por uma dessas casas, que te sentes, que te deites. Preciso olhar para ti durante 27 segundos.

A solidão é um serviço misterioso. Reunimo-nos para prestar contas do nosso desaparecimento e por vezes agarramos um braço como se pretendêssemos instalá-lo, de repente e para sempre, na nossa ternura.

Todos os meus silêncios são uma criança que espreita. Todas as minhas faltas são uma criança entusiasmada. Todos os meus poemas são crianças mudas que gesticulam.

Todos os dias saio para a decisão de um amor sem protagonista. Encosto-me às paragens de autocarro e aceno subitamente a alguém que passa. Por vezes retribuem-me o gesto e ficamos ambos sem saber se por graça, se por um escuro reduto de uma franqueza cada vez mais rara. Tens tempo para um estranho? A que horas me poderias dizer o teu nome? Conheço uma igreja que ardeu, conheço outra que é muito muito pequena. Escuta, no meio desse teu deserto, ao passar a caravana do luxo, será que és capaz de suplicar: água?

És capaz? És capaz ainda de suplicar?

Bebe, este poema actua sobre o nervo da alegria. Este poema é um cavalo de crina incendiada a ultrapassar a tarde. Nunca perceberás por que se move, para onde vai, de que se alimenta. Bebe, alguma vez estiveste ébrio no meio da tua ignorância?

Preciso de ti para um poema. Ofereço-te em troca o meu auto-retrato sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um corpo cheio de insónias, pele de galinha, súbitos arrepios, termómetros para novecentas febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis, fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos.

Não me visites. Não me visites agora. A noite deu-me uma filha. Tem cabelos verdes. Fiz-lhe um berço de papel. Parece uma estrela caída do invisível trapézio. Vai demorar muito tempo até reencontrar o equilíbrio. Tem pés muito pequenos. Dorme de dia, e à noite respira muito e não me larga a mão.

Sou um pintor. Trago sangue para os vossos olhos. Tenho artérias que se descosem e me cospem dentro de mim mesmo. Preciso de muita paciência, de todas as mulheres do mundo. Durmo sobre a cama profana da minha escuridão. Contagio e deixo-me contagiar pela peste dos bairros pequenos. Não suporto muita luz, não sei o que é uma avenida. Esquina, sou qualquer coisa que o espanto torce. Sou viciado no álcool dos corpos que se difundem. Bebo das vossas bocas o que não pode ser visto. Pinto para me esquecer do que não pode ser visto. Pinto com os materiais clandestinos do meu amor. Não projecto nada na minha tela. Eu sou a tela. Eu sou a luta das cores por um diafragma de beleza. Sou um pintor. Mereço morrer como pintor. Não mereço que me prendam. Mereço todas as minhas paixões. Mereço todas as minhas paixões.

Vi tudo. Não tudo, mas tudo o que me aconteceu. Garanto-te que prestei atenção e estou pronto para mais 47 anos de fita. Não quero rebobinar, quero atravessar os pomares da minha loucura terrena, colhendo frutos, marcando todas as árvores, com fogo, a ilegível assinatura da minha passagem.

Não é para decifrar! Não é para decifrar! É para se desfazer na boca, como açúcar, como vinho, como a erva lenta da infância.



Vasco Gato
A prisão e paixão de Egon Schiele
&etc, 2005

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