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Urinando

__Depois de urinar sentia-me pronto para tudo. Disse,
amigo, o que tu quiseres.
__Claro que estava a falar para mim próprio. Trato-me por
amigo para manter aquela distância profissional. Se usasse o
meu verdadeiro nome a coisa podia implodir em
subjectividade.
__Então disse, ei sócio, que é que contas?
__Às vezes trato-me por sócio pelas mesmas razões que me
trato por amigo.

__Então, depois de estar sentado umas poucas horas com
a cabeça entre as mãos, estava pronto para urinar outra vez.
E assim fiz, e senti-me outra vez pronto para tudo.
__Mas o quê?

__E bebi mais umas litradas de água e sentei-me ali
enquanto o amigo e o sócio ressonavam sossegadamente na
minha cabeça...


Russel Edson
O espelho atormentado
Ovni, 2008
Tradução de Guilherme Mendonça

A cavalo na moda

__Um cavalo usava quatro ferraduras de salto-alto feitas
de ferro.
__Quando lhe perguntaram porquê, o equitador respondeu
que o ferreiro lhe havia assegurado que eram o máximo
da moda equina.
__Quando o cavalo foi visto outra vez usava batom
e pestanas falsas.
__Quando perguntaram ao equitador porquê
este respondeu que o ferreiro lhe havia assegurado ser esta
a última novidade da moda equina.
__Quando o cavalo foi visto outra vez trazia um vestido
de noiva.
__Quando lhe perguntaram porquê, o equitador respondeu,
vamos casar-nos.
__Ah, que bom; presumo que o ferreiro esteja de acordo?
__Vamos ter a sua bigorna por altar...


Russel Edson
O espelho atormentado
Ovni, 2008
Tradução de Guilherme Mendonça

O espelho atormentado

__Deixa-me fitar os teus olhos encantadores, disse um
homem a um espelho.
__O espelho ficou em silêncio, mas devolveu o olhar fitando
os olhos encantadores do homem.
__Pára de atormentar o espelho, disse a mãe do homem.
__O homem respondeu, estou a fitar os seus olhos
encantadores.
__Esses olhos encantadores são os teus, disse a mãe, e não
são assim tão encantadores pois mais parecem telescópios do
que olhos.

__O pai disse-lhe, que coisas encantadoras estás a fazer a
esse espelho?
__Estou a atormentá-lo, disse o homem enquanto
continuava a fitar os olhos encantadores do espelho...


Russel Edson
O espelho atormentado
Ovni, 2008
Tradução de Guilherme Mendonça

Outono

Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa
segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma
árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala
pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as
folhas.

Mas os pais disseram olha é outono



Russell Edson
O Túnel
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

Uma representação no teatro dos porcos

Era uma vez um teatro de porcos onde porcos representavam como homens, se os homens fossem porcos.
Um porco disse, eu serei um porco num campo que encontrou um rato que está a ser comido pelo mesmo porco que está no campo e o qual encontrou o rato, o que estou a representar como a minha contribuição para a arte de representar.
Oh sejamos apenas porcos, gritou um porco velho.
E logo os porcos saíram em tropel para fora do teatro gritando, só porcos, só porcos…



Russell Edson
O Túnel
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

Realizando um filme

Estão a realizar um filme. Mas está tudo errado. Julgar-se-ia que o herói estaria triunfal no convés de um navio, mas pelo contrário está num cadafalso à espera de ser enforcado.
Julgar-se-ia que a heroína estaria a beijar o herói no convés desse mesmo navio, mas pelo contrário está a ser amarrada para um tratamento de electrochoques.
Multidões de camponeses que anseiam por democracia, e supostamente estariam a celebrar a morte de um tirano, estão, na realidade, a carregar esse mesmo tirano às costas, declarando-o o salvador do povo.
O realizador não sabe onde está o erro. O produtor está muito abalado.
O duplo pergunta repetidamente, agora? depois dá um salto e cai de cabeça.
Entretanto uma manada de elefantes atropela o elenco principal; e inundações fictícias estão de facto a inundar o palco.
O duplo pergunta novamente, agora? e dá um novo salto e cai de cabeça.
O realizador, coçando a cabeça, diz, talvez os electrochoques pudessem ser substituídos por insulina...?
Tem a certeza? pergunta o produtor.
Não, mas mesmo assim, podíamos tentar... E, já agora, esse duplo não é muito bom, pois não?



Russell Edson
O Túnel
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

Um pequeno-almoço histórico

Um homem aproxima uma chávena de café da cara, inclina-a para a boca. É histórico, pensa. Ele coça a cabeça: outro acontecimento histórico. Devia era descansar, está a produzir uma quantidade imensa de história logo de manhã.
Credo, agora está a barrar torradas com manteiga, outro bocado de história a fazer-se.
Ele espanta-se por ter-lhe sido destinado ser tão histórico. Outros provavelmente não o têm, pensa, é, ao fim e ao cabo, um talento.
Ele pensa que um dos seus atacadores precisa de ser apertado. Ah bom, mais um acontecimento histórico importante que está para acontecer. Não o pode evitar. Estará talvez a ocupar uma faixa demasiado grande de história? Mas tem que viver, não tem? As torradas necessitam de manteiga e ele não pode andar por aí com um dos atacadores desapertados, pois não?
É certamente verdade, que quando escreverem todo o século XX será principalmente acerca dele. É a forma como o bolo se esmigalha - ah, aí está uma frase que será citada nos séculos vindouros.
Convencido? Um pouco; como pode evitá-lo observado por todos os olhos ainda por nascer do futuro?
Oh, oh, sente outro acontecimento histórico a chegar... Ah, ai está, uma chávena de café a aproximar-se da cara na ponta do seu braço. Se conseguissem registar isso em filme, quanta importância não teria para o futuro.
Bolas, derramou-o todo no colo. Um desses acidentes históricos que influenciarão os próximos mil anos; imprevisível e até muito desconfortável... Mas a história nunca é fácil, pensa ele...



Russell Edson
O Túnel
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

A posição

Deixaram-me entrar. Fui até ao quarto do bebé subi para
o berço e assumi a famosa posição fetal.
Não sabiam o que fazer. Deixaram-se estar à volta do
berço a olhar-me de cima.
Eram jovens. Era a casa deles. Em vez de um bebé está
um adulto no berço.
Claro que não tinham previsto nada disto. Nunca lhes
ocorreu que uma coisa destas pudesse acontecer.

Eu tinha feito a minha jogada. O mais que podia fazer era
manter a posição e fingir que dormia...


Russell Edson
O Túnel
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

um novo pai

Uma jovem veste a roupa do pai e diz, virando-se para a
mãe, sou o teu novo marido.
Espera até o teu pai chegar a casa, ralha a mãe.
Ele está aqui, diz a jovem.
Por favor não faças uma coisa dessas ao teu pai, ele
trabalhou no duro toda a vida, diz a mãe.
Eu sei, diz a jovem, precisa de um descanso.

Quando o pai regressa a casa vem vestido com as roupas
da filha. Assim que entra grita, mãe, pai, já cheguei...



russell edson

O livro em branco

O livro estava em branco, todas as palavras tinham caído.
O marido disse-lhe, o livro está em branco.
A mulher disse, aconteceu-me uma coisa estranha a caminho do momento actual.
Eu estava a sacudir o livro, para eliminar todas as gralhas, e de súbito todas as
palavras e a pontuação também caíram. Talvez todo o livro fosse uma gralha?
E o que fizeste às palavras? disse o marido.
Embrulhei-as e mandei-as para um endereço fictício, disse ela.
Mas ninguém lá vive. Não sabes que é raro alguém viver num endereço fictício.
A realidade quase não chega para fornecer um simples endereço postal, disse ele.
É por isso que as enviei para lá. Palavras todas misturadas podem de repente
coalescer em boatos e mexericos maliciosos, disse ela.
Mas estas páginas em branco não representam também um convite perigoso a
boatos e mexericos maliciosos? Quem sabe o que alguém pode distraidamente
escrever? Quem sabe o que o acaso poderá fazer com um convite tão perigoso? disse ele.
Talvez tenhamos que nos enviar para qualquer endereço fictício, disse ela.
Será porque as palavras continuam a sair das nossas bocas, palavras que poderiam
facilmente originar boatos e mexericos maliciosos? disse ele.



Russell Edson
O Túnel
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de José Alberto Oliveira

anti-matéria

Do outro lado do espelho há um mundo ao contrário,
onde os loucos ficam sãos; onde os ossos se desenterram
e regressam ao primeiro lodo do amor.

E ao entardecer o sol apenas se levanta.

Os amantes choram porque estão um dia mais novos, e breve
a infância lhes rouba o seu prazer.

Num mundo assim há muita tristeza que, claro,
é alegria.


Russell Edson