Aquela sombra mexe-se ao sabor do lixo
que é levado pelo movimento das minúsculas
ondas. O homem insiste, procura delinear
os traços daquele corpo, mas o espaço que lhe
pertencia está noutro lugar, debaixo de uma
sebe. O seu peito ficou vazio como uma tábua
pendurada por um cordel. O rosto dela,
vê-o agora reflectido na janela do quarto,
nos vidros que presenciaram os seus braços
no momento da convulsão. Derramando
láudano nos dedos, o rosto a fechar-se dentro
dos cabelos e ele captando esse momento, em
choro, perto da loucura.
Jaime Rocha
Necrophilia
Relógio d'Água, 2010
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Um Pássaro Loiro
Um pássaro loiro atravessa a cidade
no escuro
desfaz-se contra o encantamento da luz.
Virão dizer
que um crime foi cometido
quando a madrugada engoliu a noite
que uma loucura rasa
colou as bocas às árvores
como sementes nascidas nas trevas.
Um corpo de mulher
aos pedaços
emergiu
numa terrível dança
cegando a memória e o mundo.
Jaime Rocha
A Perfeição das Coisas
Editorial Caminho, 1988
no escuro
desfaz-se contra o encantamento da luz.
Virão dizer
que um crime foi cometido
quando a madrugada engoliu a noite
que uma loucura rasa
colou as bocas às árvores
como sementes nascidas nas trevas.
Um corpo de mulher
aos pedaços
emergiu
numa terrível dança
cegando a memória e o mundo.
Jaime Rocha
A Perfeição das Coisas
Editorial Caminho, 1988
Visão vinte e cinco
E eis que a mulher aparece dentro da sombra,
largando o sangue entre as árvores, e é o seu
corpo visível que se transforma e se deixa levar
pela noite, esquecendo que a sua alma está
presa ao homem que a algemou para sempre.
Não é ela que eu vejo, espanta-se o pedreiro.
E as mãos dele enlouquecem até à exaustão.
Uma coisa nada humana sai do tronco de um
sicómoro. É a mulher esvaindo-se na cinza,
uma borboleta esmagada por um cilindro.
Porque era tarde demais e o amor do homem,
tal como as aves, morreu com o esplendor
das últimas uvas.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
largando o sangue entre as árvores, e é o seu
corpo visível que se transforma e se deixa levar
pela noite, esquecendo que a sua alma está
presa ao homem que a algemou para sempre.
Não é ela que eu vejo, espanta-se o pedreiro.
E as mãos dele enlouquecem até à exaustão.
Uma coisa nada humana sai do tronco de um
sicómoro. É a mulher esvaindo-se na cinza,
uma borboleta esmagada por um cilindro.
Porque era tarde demais e o amor do homem,
tal como as aves, morreu com o esplendor
das últimas uvas.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
Visão cinco
Ali começava o paraíso, dizia ele. E toda
a gente sabia que era de Missolunghi
que ele falava. Na Grécia. Mas o o corpo
dela estava frio, preso a uma tenaz.
E uma aranha entrava-lhe pela palma
da mão. Quando terminou a muralha,
deixou que a humidade lhe penetrasse
no corpo e só então o escondeu. Limpou-o
como se lavasse uma estátua e as suas
mãos percorreram-lhe os ombros
e o peito pela última vez. A mulher
mexeu-se ao avistar um barco. Era
a sua memória que pedia socorro.
Mas já o homem a enlaçava com
uma corda e preparava a noite.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
a gente sabia que era de Missolunghi
que ele falava. Na Grécia. Mas o o corpo
dela estava frio, preso a uma tenaz.
E uma aranha entrava-lhe pela palma
da mão. Quando terminou a muralha,
deixou que a humidade lhe penetrasse
no corpo e só então o escondeu. Limpou-o
como se lavasse uma estátua e as suas
mãos percorreram-lhe os ombros
e o peito pela última vez. A mulher
mexeu-se ao avistar um barco. Era
a sua memória que pedia socorro.
Mas já o homem a enlaçava com
uma corda e preparava a noite.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
Poema Final
Porque foi dali, daquele mar,
daquela montanha
desordenadamente,
que a assombração chegou ao fim,
e que o pedreiro viu
descer por uma corda
em espiral
o corpo intacto da mulher
que antes esventrara
com uma tesoura.
Era o tempo de muito depois da morte,
dizia o pedreiro, onde até os monstros
sufocavam porque tudo fora
parar a um viveiro seco.
Porque era um tempo
de murmúrios e danação.
Em que as mulheres se
separavam dos corpos
e os homens se transformavam
por isso em grandes polvos,
sem olhos, sem escrita,
sem saberem sequer
como matar as aves.
Um tempo já depois
de uma catástrofe em que
a memória se perde no espaço.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
daquela montanha
desordenadamente,
que a assombração chegou ao fim,
e que o pedreiro viu
descer por uma corda
em espiral
o corpo intacto da mulher
que antes esventrara
com uma tesoura.
Era o tempo de muito depois da morte,
dizia o pedreiro, onde até os monstros
sufocavam porque tudo fora
parar a um viveiro seco.
Porque era um tempo
de murmúrios e danação.
Em que as mulheres se
separavam dos corpos
e os homens se transformavam
por isso em grandes polvos,
sem olhos, sem escrita,
sem saberem sequer
como matar as aves.
Um tempo já depois
de uma catástrofe em que
a memória se perde no espaço.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
Visão vinte e oito
Sempre com uma faca e já com os corvos pousados
nos ombros, no meio do areal, o pedreiro ouviu
os oráculos e, tal como prediziam, viu cinquenta
e nove cisnes a dançar dentro de um lago e entre
eles a mulher de cabelo dourado penteando-se
a um espelho, quase nua, entre rosas.
Que era a morte, dizia o homem da montanha.
Mas o pedreiro sabia que ela não podia ter saído
assim de um túmulo que ele protegera a vida
inteira, nem as rosas podiam ter aquela cor.
E o pedreiro sabia também que não fora aquele
homem que plantara nove quintais de milho
num anfiteatro nem fora ele que inventara
uma ilha com uma colmeia dentro.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
nos ombros, no meio do areal, o pedreiro ouviu
os oráculos e, tal como prediziam, viu cinquenta
e nove cisnes a dançar dentro de um lago e entre
eles a mulher de cabelo dourado penteando-se
a um espelho, quase nua, entre rosas.
Que era a morte, dizia o homem da montanha.
Mas o pedreiro sabia que ela não podia ter saído
assim de um túmulo que ele protegera a vida
inteira, nem as rosas podiam ter aquela cor.
E o pedreiro sabia também que não fora aquele
homem que plantara nove quintais de milho
num anfiteatro nem fora ele que inventara
uma ilha com uma colmeia dentro.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
Visão vinte e nove
Tratava-se de um reencontro no campo.
A mulher estava deitada na água com as duas mãos
presas aos junquilhos. O homem queria apenas
o seu cabelo dourado enquanto o pedreiro lutava
pela posse do corpo e procurava desesperadamente
o seu olhar. Era uma mulher com um laço vermelho
nos braços, os dedos esguios encostados a uma taça.
Mas os seus olhos desapareciam com a última luz
e já o homem da montanha se esgueirava pelo cabeços.
Apenas o pedreiro brandia uma navalha e começara
a devastar os narcisos que lhe sufocavam o peito.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
A mulher estava deitada na água com as duas mãos
presas aos junquilhos. O homem queria apenas
o seu cabelo dourado enquanto o pedreiro lutava
pela posse do corpo e procurava desesperadamente
o seu olhar. Era uma mulher com um laço vermelho
nos braços, os dedos esguios encostados a uma taça.
Mas os seus olhos desapareciam com a última luz
e já o homem da montanha se esgueirava pelo cabeços.
Apenas o pedreiro brandia uma navalha e começara
a devastar os narcisos que lhe sufocavam o peito.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
34
Ninguém sabe porque uma mulher
se mata de encontro a um comboio.
Nem porque se guardam as flores
numa gaveta. Só o espelho pensa
com suas raízes dóceis, cortando
as veias sempre que a chuva pára
e a secura toma conta das palavras.
Há um rosto que reflecte tudo isso,
uma fotografia encaixilhada num
museu. Mas é uma relíquia, um achado
intocável, uma espécie de anjo
que habita dentro do peito e se
desloca para dentro.
Jaime Rocha
Do Extermínio
Relógio d’Água, 2003
se mata de encontro a um comboio.
Nem porque se guardam as flores
numa gaveta. Só o espelho pensa
com suas raízes dóceis, cortando
as veias sempre que a chuva pára
e a secura toma conta das palavras.
Há um rosto que reflecte tudo isso,
uma fotografia encaixilhada num
museu. Mas é uma relíquia, um achado
intocável, uma espécie de anjo
que habita dentro do peito e se
desloca para dentro.
Jaime Rocha
Do Extermínio
Relógio d’Água, 2003
poema inicial
Tudo renasce num ciclo de fogo
encostado às pedras.
O sol, os degraus, o musgo.
Tudo está emparedado na cal.
A cor das pedras
atravessa um momento de sombra
sempre que os seus pés
sobem a colina.
Há um espaço solto
que foi atribuído aos pássaros.
São eles que habitam a dimensão redonda,
entre os muros,
afugentados pela luz.
Parece que saem da cegueira,
coléricos,
carregando apenas caixas vazias.
É uma construção
que veio do oriente,
desenhada numa placa de estanho.
À noite
essa sombra
com as mãos atadas
desliza pelo barro
mastigando as ervas.
Vai na direcção
do sol da manhã
esconder-se das máquinas
e dos fios.
A sua boca é como um castanheiro.
Por ali passam
os ruídos do vinho: dois homens
matam-se num anfiteatro
e dos seus gritos nascem
as visões do mundo.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
encostado às pedras.
O sol, os degraus, o musgo.
Tudo está emparedado na cal.
A cor das pedras
atravessa um momento de sombra
sempre que os seus pés
sobem a colina.
Há um espaço solto
que foi atribuído aos pássaros.
São eles que habitam a dimensão redonda,
entre os muros,
afugentados pela luz.
Parece que saem da cegueira,
coléricos,
carregando apenas caixas vazias.
É uma construção
que veio do oriente,
desenhada numa placa de estanho.
À noite
essa sombra
com as mãos atadas
desliza pelo barro
mastigando as ervas.
Vai na direcção
do sol da manhã
esconder-se das máquinas
e dos fios.
A sua boca é como um castanheiro.
Por ali passam
os ruídos do vinho: dois homens
matam-se num anfiteatro
e dos seus gritos nascem
as visões do mundo.
Jaime Rocha
Os Que Vão Morrer
Relógio D´Água, 2000
16
A cidade morreu. Atravessou um túnel e morreu.
Apenas ficou a memória das ruas colada nesse
espelho que habita no interior da sombra, com
pinças e desenhos dourados. Os barcos atravessam
glaciares, os aviões afundam-se na terra. Tudo se
passa num segundo dentro de relógios magnéticos,
numa terceira morte. O pássaro cai, o homem
levanta-se, mas é o espelho que anda como uma
larva, alimentando-se do sangue dos quartos.
Jaime Rocha
Do Extermínio
Relógio d’Água, 2003
Apenas ficou a memória das ruas colada nesse
espelho que habita no interior da sombra, com
pinças e desenhos dourados. Os barcos atravessam
glaciares, os aviões afundam-se na terra. Tudo se
passa num segundo dentro de relógios magnéticos,
numa terceira morte. O pássaro cai, o homem
levanta-se, mas é o espelho que anda como uma
larva, alimentando-se do sangue dos quartos.
Jaime Rocha
Do Extermínio
Relógio d’Água, 2003
10
A nuvem anuncia a secura das casas.
Um homem desloca-se devagar,
atravessa uma plantação de café em
silêncio, como as aves da noite. A sua fome
é igual à dos pássaros que reflectem no espelho
uma máscara de dor. Quando o homem desperta
dessa travessia apenas encontra um rolo de tabaco
velho e um machado quebrado em cima de uma mesa.
E não volta nunca mais a esse lugar.
Jaime Rocha
Do Extermínio
Relógio d’Água, 2003
Um homem desloca-se devagar,
atravessa uma plantação de café em
silêncio, como as aves da noite. A sua fome
é igual à dos pássaros que reflectem no espelho
uma máscara de dor. Quando o homem desperta
dessa travessia apenas encontra um rolo de tabaco
velho e um machado quebrado em cima de uma mesa.
E não volta nunca mais a esse lugar.
Jaime Rocha
Do Extermínio
Relógio d’Água, 2003
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