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"Blackie, o Rembrant Eléctrico"

Espreitamos pela frente da loja enquanto
Blackie desenha estrelas - uma igual

concentração nesses rostos,
o seu e o do jovem. A mão

é firme e certa;
mas o rapaz não a vê

pois os seus olhos seguem o ponto
que toca (movimento rápido e escuro!)

um braço ainda puro abaixo
da sua manga arregaçada: sustém a respiração.

...Agora que está terminado, ele
paga com algumas notas a Blackie

e sai com uma ligadura no
braço, sob o qual cintilam dez

estrelas, pendendo de um cacho espesso
e azul. Agora ele é como as estrelas.



Thom Gunn
A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

A ferida

A enorme ferida na cabeça começou a sarar
No início da sétima semana.
Os seus vales escureceram e as suas aldeias sossegaram:
De alegria não me movia nem ousava falar,
Não a curariam os médicos, mas o tempo com a sua perícia paciente.

E continuamente o meu espírito regressava a Tróia.
Após ter navegado pelos mares, de cada vez lutava
Em ambos os lados, partilhando o júbilo da condição
De Helena, e crescendo - para ver Tróia arder -
Como Neoptólemo, esse rapaz obstinado.

Deitado, eu descansava como estas prescristo.
Planeava com os Gregos e fazia sortidas
Diárias com Heitor. Por fim, a minha cama
Transformou-se na tenda de Aquiles, à qual o rústico
Tersitas vinha relatar os inúmeros mortos.

Era eu próprio: sem estar sujeito ao fôlego de outro homem:
O meu único comandante era o inimigo.
E enquanto o cinturão pendia, a espada na bainha,
Tersitas surgia arrastando-se exausto,
Vociferando a morte do meu amigo Pátroclo.

Gritei pelas armas, ergui-me e não cambaleei.
Mas, quando o pensei, a ira da sua nobre dor
Subiu-me à cabeça e, voltando-me, senti
Que toda a minha ferida se abria. De novo
Tive de deixar sarar aqueles vales iluminados pela tempestade.


Thom Gunn
A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

Expressão

Ando a ler há várias semanas
a poesia dos mais novos.
A mãe não os compreende
e odeiam o Papá, o ilustre alcoólico.
Escrevem com negra ironia
sobre esgotamentos, hospitais psiquiátricos
e tentativas de suicídio, de que nem sempre
parecem possuir experiência directa.
É uma poesia muito poética.

Visito o Museu de Arte
e dou por mim à procura de qualquer coisa,
sem saber ao certo o quê.
Encontro-a, reconheço-a,
vendo-a pela primeira vez.
Um «retábulo italiano antigo».
A Virgem, a contorno, seus lábios
um laço rubro estranhamente moderno,
ao colo um Menino pequeno como uma boneca.
Este tem o rosto sabedor de um adulto
e uma precoce madeixa em caracol
sobre a testa lisa de bebé. Ela
é maciça e quase simétrica.
Ele não se debate, tão-pouco é solene.
A imagem enfastia, como água
após demasiado bolo de aniversário.
Solidamente ali, mãe e filho
olham em frente, dois pares de olhos idênticos
vazios de expressão.



Thom Gunn

Fragmento Nocturno

O nevoeiro desce lentamente a colina
E conforme subo mais se adensa:
Fecha-se à minha volta, apodera-se de mim
Como lençóis caídos sobre o chão.

Aqui ficam as últimas e ascendentes ruas,
Galerias, que correm pelas veias do tempo,
Quase familiares, onde rastejo em direcção ao sono
Como nevoeiro e pelo nevoeiro como sono.


Thom Gunn
A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

A Visão da Morte de um Motociclista Perturbado

Em pleno campo,
Avanço por entre muralhas de chuva
Que me fustiga o rosto e me ensopa os joelhos,
Mas sou o homem que quero ser.

A charneca firme acaba e surge o pântano.
Estamos agora em guerra: quem ganhar
Não conseguirá submeter a minha vontade humana
À natureza embora seja de lá que ela veio.
As rodas afundam-se; o ruído nítido torna-se confuso:
Porém, curvado sobre o volante,
Lanço esta minha máquina que escolhi
Contra a possibilidade de ser um corpo ainda.
A roda da frente penetra com firmeza entre
dois arbustos de um verde esmaltado e insensível
- Gigantesco equilíbrio no contorno
De cada folha lisa. Redemoinhos negros sobem
Em redor do meu pé que, comprimindo com força,
Acelera o sono que espera.

Costumava viver no ruído e desconhecia
A existência da realidade calma ou rastejante,
Mas agora as águas paradas, coladas ao meu rosto
Sob o peso da morte, retiram-me o alento;
Embora angustiado julgo que posso
Mover-me através da matéria. Encontro o meu caminho,
Onde a morte a vida se conjugam,
Através da negra terra que não é minha,
Povoada de fragmentos, embotada, informe,
Enquanto pelos meus ouvidos, enxameados de ruído,
As extremidades brancas das plantas do pântano,
Lentas, sem paciência, espalham-se à vontade
Invulneráveis e flexíveis, e se estendem
Numa posse serena em direcção ao seu fim.

E embora os cogumelos quando eu apodrecer
Me recubram os ossos com lívidos nós,
Até enfunarem os meus fatos, eles fingem
Que este espantalho é de novo um homem,
E é como servos que persistem
Ou, sem qualquer vontade, se contorcem;
E o hábito, pelos homens laboriosamente
Adquirido, não os deixa cansados.
Essa vegetação converte célula após célula
A minha única riqueza em lixo:
Tudo o que obtêm, obtêm-no por acaso.

E multiplicam-se na ignorância.



Thom Gunn

A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

Lázaro não Ressuscitado

Estava na mesma. Os seus amigos em redor do túmulo
Fitavam o seu rosto gorduroso e sereno,
Flutuando na sombra; nada poderia salvar
Agora o seu corpo das areias sob as suas ondas,
Não tendo acontecido o milagre previsto.

Jazia inerte sob aquelas mãos estendidas
Que o chamavam à vida. Embora o esquife
Estivesse pronto para agarrar a vida e as faixas enroladas
Ao seu primeiro movimento soltassem as glândulas geladas,
O milagre previsto não aconteceu.

Ó Lázaro, corpo distendido, assim posto
Resplandescente e sem peso sobre a superfície da morte,
Ergue-te agora, antes de te afundares, porque não ousamos descer
A esse triste pântano onde (gritaram os que choravam)
O milagre previsto não pode acontecer.

Quando pela primeira vez despertou, e lhe foram dados
Pensamentos e alento, escolheu deambular a passos vagarosos
Nos campos da infância, imaginários e seguros
- Semelhantes ao trivial território da morte
(O milagre não tinha acontecido).

Escolheu primeiro entregar-se assim aos pensamentos
E desprezar o que o seduzia na graça oferecida,
E depois, em repouso, escolheu entregar-se ao que deles restava.
Chegou o esforço final, empurrámo-nos
Para ver o planeado milagre acontecer:

Inesperadamente o cadáver pestanejou e abanou a cabeça
Para a seguir se afundar de novo, deslizando da vista sem deixar
Um único vestígio, até alcançar o lodo sobre o mais profundo leito
Do vazio. Escolhera permanecer morto,
O milagre previsto não aconteceu.

Nada mais mudou. Vi alguém perscrutar,
Inclinado-se para a caixa rectangular do espaço.
Os seus amigos tudo tinham feito: sem tal receio,
Sem aquele aterrado resplendor do despertar,
O milagre previsto teria acontecido.



Thom Gunn

A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

Em Movimento

O gaio azul arrastando-se por entre os arbustos persegue
Um desígnio oculto, as andorinhas voam em círculos,
E o deleite das aves, que fizeram ninhos nas árvores
E vegetação rasteira, jorra pelos campos.
À procura do seu instinto, do equilíbrio, ou ambos,
Algo que se encaminha com uma violência indefinida
Sob o pó lançado por um sentimento confuso
Ou sob o monótono estrondear de palavras que se aproximam.

Eles surgem ao longo da estrada em motorizadas:
Pequenos, negros, como moscas suspensas no calor, os Rapazes;
À medida que a distância os projecta em frente, o seu zumbido
Sobe até ao trovejar controlado pelas coxas e barriga das pernas:
Com os seus óculos, impersonalidade vestida
Com blusões deslumbrantes ornamentados de pó,
Eles usam cinturões numa incerteza simulada, mas robustos,
E quase entendem um significado no seu barulho.

O limite exacto de toda a sua audácia
Ainda não tem forma, mas de conhecidos paradeiros
Vêm eles, lugares onde os pneus deixam marcas.
Um bando de aves voa assustado pelo campo:
Muito do que é natural tem de render-se a uma vontade.
O homem fabrica a máquina e a alma,
E serve-se do que imperfeitamente controla
Para desafiar um futuro de percursos conquistados.

Afinal trata-se de uma solução parcial.
Qualquer um de nós não está necessariamente desorientado
Sobre a terra; ou é amaldiçoado porque, meio animal,
Lhe falta um instinto imediato, porque desperta
Livre no movimento que divide e separa.
Qualquer um de nós junta-se ao movimento num mundo sem valor,
Escolhendo-o até que, arremessado e arremessador,
Igualmente se mova em frente, em frente.

Um minuto retém os que vieram para partir:
Com determinação, montados sobre a vontade que tinham criado,
Seguem violentos; as cidades que atravessam
Não servem de lares para aves ou para a santidade,
Pois as aves e os santos atingem os seus fins.
Na pior das hipóteses, está-se em movimento, e na melhor,
Sem que se alcance qualquer absoluto apaziguador,
Está-se sempre mais próximo por não estarmos parados.

California



Thom Gunn

A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

A Destruição do Nada

Nada é o que permaneceu: nada, o arrojado epíteto
Que pronunciei pela noite tantas vezes até ser transportado
Para um escuro sono, ou o sono que continua um sonho.

Nisto havia uma enorme ausência contagiosa,
Mais espaço do que espaço, sobre a nuvem e o lodo,
Definidos apenas pela sua excessiva oscilação.

Despojado até à indiferença nas curvas do tempo,
Cujo fim eu conhecia, acordei sem um desejo,
E saudei o zero como um paradigma.

Mas agora despedaça-se: as imagens surgem incendiadas
Na calma esfera onde tenho vivido,
Regulando a paisagem ainda intacta:

O poder que imaginava, que presidia
Supremo a devastações abstractas,
É apenas uma mudança; os átomos que o dividiam

Completam, sem o saber, novas combinações.
Apenas descubro uma infinita finitude
Naquelas variações belas e estranhas.

É o desespero de que o nada possa existir
A cintilar no espírito e a deixar uma marca fumegante
De temor.
Olhem para cima. Nem presa nem liberta,

Uma questão inútil paira nas trevas.



Thom Gunn

A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

Misantropo

Arrefeceu. Tenho andado a apanhar lenha,
Com os dedos entorpecidos, quase insensíveis,
Revolvendo folhas quebradiças para encontrar
Galhos húmidos. Tenho andado curvado
Toda a tarde, empilhando-os para secar,
E, toda a tarde, tenho ouvido, vezes sem conta,
Duas notas decrescentes: uma suave e melancólica melodia,
Como se uma ave chamasse, do seu abrigo de ramos,
Agora não, agora não, agora não.

Dos silvados, retiro um a um galhos para queimar.
Surpreendido pela sombra, ergo-me e vejo,
Ficando meio cego, o frio pôr-de-sol vermelho
Por entre os ramos enredados de uma árvore sem folhas.
Recordo-me de anteriores poentes, especialmente um
Que assim coloria o ferro, branco acizentado
E escurecido, e o cimento enrugado de um posto de sentinela
Com o seu alaranjado frio. Deixem-me viver, um segundo,
Agora não, agora não, agora não.

É tão dolorosa e apagada esta recordação,
Embora eu ali também vivesse o dia-a-dia.
Porém a comparação torna-me consciente
Do calor e da luz ténues, que eram
Ou parecem ter sido menos ténues que hoje.
A ave cala-se. Indiferente neste instante isolado
Eu sei que, ouvindo o vento agitar-se num galho,
Sempre hei-de escutar assim um incessante
Agora não, agora não, agora não.



Thom Gunn

A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães

O Domesticador e o Falcão

Eu que pensava ser tão duro,
Mas, domado pelas tuas mãos,
Não consigo ser assim veloz
Ao voar para ti e mostrar
Que quando parto, parto
Às tuas ordens.

Até voando lá no alto
Já não sou livre;
Selaste-me com o teu amor,
Cegaste-me para as outras aves...
O hábito das tuas palavras
Vendou-me.

Como antigamente, rodo,
Pairo e volteio,
Mas apenas quero a sensação,
No meu espírito possessivo,
De quem captura e é capturado
Sobre o teu pulso.

Tu, que és quase ignorante,
Ensinaste-me desta maneira.
Por ter apenas olhos
Para ti, receio tudo perder,
Eu que perco para conservar e escolho
O domesticador como presa.



Thom Gunn

A Destruição do Nada e outros poemas
Relógio d'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães