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Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.



Pedro Mexia
Duplo Império
Edição de Autor, 1999

Duplo Império

Atravesso as pontes mas
(o que é incompreensível)
não atravesso os rios,
preso como uma seta
nos efeitos precários da vontade.
Apenas tenho esta contemplação
das copas das árvores
e dos seus prenúncios celestes,
mas não chego a desfazer
as flores brancas e amarelas
que se desprendem.
As estações não se conhecem,
como lhes fora ordenado,
mas tecem o duplo império
do amor e da obscuridade.



Pedro Mexia
Duplo Império
Edição do autor, 1999

os significados

Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez não haja nenhuma figura, e então
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossível
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerência primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido?
Ó significados, para vós, na infância,
tinha um caderno.



Pedro Mexia
Duplo Império
Edição do autor, 1999

Fumar mata

Fumar mata. Com cinco inconclusos cigarros
morrerei decerto doutro motivo.
Cigarros escondidos, obrigatórios, demonstrativos, sexuais,
cigarros ocultos atrás de livros, fumados
na casa de banho que o vento depois não drenava,
cigarros amargos e engasgados na garganta,
comprados, deitados fora,
cigarros infrutíferos como esses anos em tudo o mais,
nem rodapé biográfico mas erupção sociológica.
Fumar mata. De não fumar nada direi.



Pedro Mexia
Vida Oculta
Relógio D´Água, 2004

blow up

tenho fotografias
que provam que nunca exististe.



Pedro Mexia
Vida Oculta
Relógio D´Água, 2004

Hospital

O medo andava por perto nessa madrugada,
visitando cada quarto, cada respiração,
assomado às janelas que reflectiam a alta noite.

Nos corredores brancos
o corpo estava na posse de si mesmo,
na posse contemplativa, póstuma,
na mesma posse sem solução
que se escoava entre os ferros da cama.

Era um corpo acordado
que nunca tinha observado o mesmo rectângulo
de noite até nos fazer mal, que não imaginava
a memória como uma incisão imperceptível,
as mãos ao longo do tronco, os olhos azuis de medo.

Era um hospital sereno, um medo sereno,
a mente pronta para o retrato final.
E tudo quebrado, como os vidros para lá da noite.



Pedro Mexia
Vida Oculta
Relógio D´Água, 2004

Vimos todos os filmes

Vimos todos os filmes
mas ainda não sabemos o fim de nenhum,
somos como a luz que desconhece
a própria velocidade.
Os relógios são a decoração doméstica
da angústia, damos corda
aos que precisam e não precisam
sem sabermos nada
da corda e da angústia.
Anos e anos amontoam-se
como nuvens ou tumores benignos
entre as nossas pequenas ciências
e o pressentimento de que
Deus escreve direito e nós
somos as linhas tortas.



Pedro Mexia
Duplo Império
Edição de autor, 1999

Paráfrase

Este poema começa por te comparar

com as constelações,

com os seus nomes mágicos

e desenhos precisos,

e depois

um jogo de palavras indica

que sem ti a astronomia

é uma ciência

infeliz.

Em seguida, duas metáforas

introduzem o tema da luz

e dos contrastes

petrarquistas que existem

na mulher amada,

no refúgio triste da imaginação.



A segunda estrofe sugere

que a diversidade de seres vivos

prova a existência

de Deus

e a tua, ao mesmo tempo

que toma um por um

os atributos

que participam da tua natureza

e do espaço criador

do teu silêncio.



Uma hipérbole, finalmente,

diz que me fazes muita falta.



Pedro Mexia
Avalanche
Quasi Edições, 2001