Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Albano Martins
Escrito a vermelho
Campos das Letras, 1999
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Escrito a vermelho
Não lhe dirás
o nome, nem é preciso,
julgo eu. Basta que se saiba
que foi com o sangue
que sempre o escreveste. E bastará,
por isso, que leiam
os teus versos. Porque
em todos eles
está escrito a vermelho.
Albano Martins
Escrito a Vermelho
Campo das Letras, 1999
o nome, nem é preciso,
julgo eu. Basta que se saiba
que foi com o sangue
que sempre o escreveste. E bastará,
por isso, que leiam
os teus versos. Porque
em todos eles
está escrito a vermelho.
Albano Martins
Escrito a Vermelho
Campo das Letras, 1999
Não são apenas os relógios
Também se pode
regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.
Albano Martins
Escrito a vermelho
Campo das Letras, 1999
regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.
Albano Martins
Escrito a vermelho
Campo das Letras, 1999
Um Nome
Com os anos, perderas talvez o rumo. Ou era apenas medo, o receio de te medires com os lugares que foram teus e também perdeste. Um dia voltaste. Insanável, o tempo esvaíra-se. Porque tu e o tempo trabalham, bem sabes, em sentidos opostos.
Da casa, hasteada frente ao vento, restavam os pesados alicerces, as paredes ancoradas entre cal e musgo, a pálida face exterior gangrenada. Ruína foi o nome que melhor te serviu, então, para definir com rigor o cenário construído. Para lá da estrada, do outro lado do muro, buscavas as árvores que contigo cresceram e emolduravam a cintura larga do terreno. Da acácia e da figueira, mortas, subsistia a memória crispada das flores de sabão com que lavavas os ócios da infância vivida a tempo inteiro. O velho carvalho, plantando à beira do caminho, projectava sobre as horas a sombra lenta da ausência. Quando o fotografaste, o passado ressurgiu, compacto, no rectângulo da moldura verde.
Era outra vez dezembro. Viajavas de novo, sem sustos, ao coração do bosque, lá onde uma noite, te serviram longamente uma rosa de sol embriagada, tinta do sangue espesso das amoras. Sabes hoje que nesse gesto festejavas o sentido e a afirmação da vida, a sua plenitude. Por isso o elegeste como emblema.
Sob a poeira e a cinza do cepo ardido apenas afloravam agora as raízes do cedro castigado pelo aríete do tempo. Morreu o soto, os eucaliptos foram sacrificados, a água da fonte apodreceu. A imagem que ali colhes é um tecido esgarçado de limos e girinos, uma toalha encrespada a que só magoadamente podes limpar o rosto.
Ruína, disseste. Sobre ela colocas uma lápide. Sobre a lápide, um nome.
O teu.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
Da casa, hasteada frente ao vento, restavam os pesados alicerces, as paredes ancoradas entre cal e musgo, a pálida face exterior gangrenada. Ruína foi o nome que melhor te serviu, então, para definir com rigor o cenário construído. Para lá da estrada, do outro lado do muro, buscavas as árvores que contigo cresceram e emolduravam a cintura larga do terreno. Da acácia e da figueira, mortas, subsistia a memória crispada das flores de sabão com que lavavas os ócios da infância vivida a tempo inteiro. O velho carvalho, plantando à beira do caminho, projectava sobre as horas a sombra lenta da ausência. Quando o fotografaste, o passado ressurgiu, compacto, no rectângulo da moldura verde.
Era outra vez dezembro. Viajavas de novo, sem sustos, ao coração do bosque, lá onde uma noite, te serviram longamente uma rosa de sol embriagada, tinta do sangue espesso das amoras. Sabes hoje que nesse gesto festejavas o sentido e a afirmação da vida, a sua plenitude. Por isso o elegeste como emblema.
Sob a poeira e a cinza do cepo ardido apenas afloravam agora as raízes do cedro castigado pelo aríete do tempo. Morreu o soto, os eucaliptos foram sacrificados, a água da fonte apodreceu. A imagem que ali colhes é um tecido esgarçado de limos e girinos, uma toalha encrespada a que só magoadamente podes limpar o rosto.
Ruína, disseste. Sobre ela colocas uma lápide. Sobre a lápide, um nome.
O teu.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
rosa-dos-ventos
Passam, lá ao fundo, na estrada, os animais tardios.
Vão sem destino e sem direcção.
Lembrarás que foi assim a tua infância: um lugar
onde cabiam todos os lugares e a direcção eram todas
as direcções. Vivias montado na garupa dum cavalo
sem crinas e sem freio, cujas patas não pisavam o chão.
E era o fogo, que por ali andava à solta, que o impelia
em todas as direcções da rosa-dos-ventos.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
Vão sem destino e sem direcção.
Lembrarás que foi assim a tua infância: um lugar
onde cabiam todos os lugares e a direcção eram todas
as direcções. Vivias montado na garupa dum cavalo
sem crinas e sem freio, cujas patas não pisavam o chão.
E era o fogo, que por ali andava à solta, que o impelia
em todas as direcções da rosa-dos-ventos.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
círculo
E então o círculo começa a desenhar-se obliqua-
mente, na fosforescência da sua nudez. Nos inters-
tícios, uma luz rugosa deixa rolar as escamas sem
brilho dos peixes mortos.
A tarde é um relâmpago apagado, sem fulgor. São
as vésperas da noite, dizem, mas o espaço volatilizou-se,
as estrelas, móveis, tombaram em cascata no fundo
do poço.
É o vazio do círculo, a sua face excêntrica.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
mente, na fosforescência da sua nudez. Nos inters-
tícios, uma luz rugosa deixa rolar as escamas sem
brilho dos peixes mortos.
A tarde é um relâmpago apagado, sem fulgor. São
as vésperas da noite, dizem, mas o espaço volatilizou-se,
as estrelas, móveis, tombaram em cascata no fundo
do poço.
É o vazio do círculo, a sua face excêntrica.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
unhas
Também as unhas são um lugar inóspito de intran-
quilidade. Como punhos inflamados, rasgam às vezes
a crosta em ferida do silêncio e extraem dele o pus
acumulado durante a noite. Então as unhas sangram.
Então as unhas vibram como estiletes em brasa, quei-
mando o próprio magma de cuja substância se ali-
mentam.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
quilidade. Como punhos inflamados, rasgam às vezes
a crosta em ferida do silêncio e extraem dele o pus
acumulado durante a noite. Então as unhas sangram.
Então as unhas vibram como estiletes em brasa, quei-
mando o próprio magma de cuja substância se ali-
mentam.
Albano Martins
O Mesmo Nome
Campo das Letras, 1996
Ofício
O que aos dedos
emprestas
à mão
subtrais. Nocturno
ofício o teu: transbordas
para a luz como a polpa
macerada das maçãs.
Albano Martins
O mesmo nome
Campo das Letras, 1996
emprestas
à mão
subtrais. Nocturno
ofício o teu: transbordas
para a luz como a polpa
macerada das maçãs.
Albano Martins
O mesmo nome
Campo das Letras, 1996
A lâmina, o punhal
Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
Albano Martins
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
Albano Martins
Ainda te falta
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
Albano Martins
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
Albano Martins
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