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Canto décimo segundo

Se chove parece que a água te lava os ossos,
se vem tempestade chega-te aos ombros
uma enxurrada de gafanhotos que saltam.
A névoa apaga até os pensamentos
e permanecem velas acesas
ardendo no cérebro.

Duas ou três noites atrás a neve cobria
as estradas e os campos
e pela madrugada eu e o meu irmão
avistámos grandes pegadas
de um estranho animal. Um urso?
Começavam nas primeiras casas da aldeia
e acabavam de repente no meio da praça
como se tivessem voado.



Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004
Tradução de Mário Rui de Oliveira

Canto primeiro

Tinha setenta anos completos e mais quatro dias quando me segurei
a um comboio em movimento. Já não suportava a cidade
com todas aquelas unhas diante da boca.

Agora estou aqui, pela minha terra, com meu irmão.

Aumentaram as casas desocupadas. Os mil e duzentos que éramos,
reduzidos a nove: eu, recentemente chegado,
Bina, Pinela, o camponês, meu irmão, enclausurado na casa velha,
Filomena, com o filho tolo
e três sapateiros reformados
sempre sentados na praça.

Os outros fugiram sabe-se lá para onde: América, Austrália, Brasil,
onde Fafìn, o louco, ia à caça com uma faca
e um dia matou um jaguar julgando ser um gato.
Em mil novecentos e vinte, um grupo de pedreiros
depois de seis meses de viagem com a cabeça pendida na borda de
____________________________________um barco
sobre o mar e a água de um rio que não terminava,
chegou à Muralha da China
que se havia degradado e reclamava pela mão dos pobres.
Antes de desaparecer para sempre, o pai de Bina, que estava com eles,
mandava notícias uma vez por ano
e até lhe chamavam «as cartas da China». Na primeira perguntava
por uma cabra que tinha febre no dia em que partiu,
na segunda contou que comera uma cobra,
na terceira falava de uma mulher que lhe cosia os botões,
a quarta estava cheia de gatafunhos como fazem as galinhas
na lama, para dar a entender que se tornara chinês
e esquecera tudo, também as palavras.
Os meus nunca saíram de casa: meu pai
vendia carvão
e minha mãe fazia as contas num papel pardo.
Como não sabia ler nem escrever marcava linhas direitas
para a gente magra e redondas para os clientes gordos.
Os números tinha-os dentro da sua cabeça e quando pagavam
riscava-os com uma cruz.

O ar daqui é bom e a água corre por abundantes regatos.
Carros não há e os cães estendem-se no meio das estradas.


Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004
Tradução de Mário Rui de Oliveira

Canto décimo

Não vive ninguém agora
na casa junto ao prado
onde se fazia a feira dos cavalos.
As persianas rangem e caem aos pedaços
até um pessegueiro cresceu lá dentro
de um caroço que alguém deitou fora.

Era a casa das três irmãs americanas
filhas daquele Fafin o louco que estivera no Brasil
e que viajou de Génova em carroça
chegando aqui três dias depois
sem tostão na algibeira.

A mais velha das três irmãs uma manhã
apareceu afogada no lavadouro, nua,
com os cabelos cobrindo-lhe o rosto,
a segunda foi vista num bordel de Ferrara,
a terceira, de quem eu gostava
num dia de festa com gramofone
bailava com meu irmão que lhe cingia
as ancas e eu cabisbaixo olhava
o chão de mosaicos, brancos e amarelos.


Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004
Tradução de Mário Rui de Oliveira

Canto décimo primeiro

Anteontem primeiro domingo de Novembro
a névoa podia-se cortar à faca.
As árvores brancas da geada e as estradas e planícies
pareciam cobertas por lençóis. Depois apareceu o sol
enxugando o universo e somente as sombras
permanecem banhadas.

Pinela, o camponês, atava as cepas
com ervas secas que segurava entre as orelhas.
Enquanto trabalhava falei-lhe da cidade,
da minha vida que passara num relâmpago
do meu terror da morte.

Aí silenciou todos os rumores que fazia com as mãos
e só então se ouviu um pequeno pardal cantando ao longe.
Disse-me: medo porquê? A morte nem sequer é maçadora.
Apenas vem uma vez!


Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004
Tradução de Mário Rui de Oliveira

Canto vigésimo primeiro

As folhas do damasqueiro tinham começado a cair
em Julho e depois de Agosto a Setembro.
Nós divertíamo-nos a recolhê-las uma de cada vez
e a contá-las em voz alta.
Um dizia: mil, mil e uma, mil e duas, mil e três,
o outro continuava: mil e quatro, mil e cinco, mil e seis.
A cantilena durava até à noite
e assim enchíamos três sacos.

Mas uma manhã meu irmão deixou de trabalhar
por razões que não quis adiantar,
soube depois que se irritou
porque brincado lhe chamei cretino
por uma folha mal contada.
Eu dissera: dois mil e dois e ele dois mil e quatro;
e o dois mil e três para onde foi?
Ficámos dez dias sem falar. Levantávamo-nos
de costas voltadas um para o outro e comíamos cabisbaixos;
entretanto as primeiras neblinas
iam tecendo um véu de água fina sobre o dorso do capote.
À noite lançávamos aquelas folhas, um punhado cada um,
sobre o fogo e ficávamos a contemplar as labaredas.


Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004
Tradução de Mário Rui de Oliveira

Canto sexto

Bina vivia num barracão
na estrada torta e levava em passeio
um cabra pelos carreiros.
Ninguém sabia se era homem ou mulher:
tetas tinha, mas também bigodes
e tamancos de montanha.
Nós, crianças, procurávamos descobrir
se por baixo do saiote se via alguma coisa,
mas ela apertava as pernas
envoltas nas ceroulas.

Com homens nunca se soube se foi,
com um animal talvez, mas conta-se
que à mais velha das três irmãs americanas
fazia tirar o leite das tetas da cabra.
Dizia-lhe em voz baixa: «Aperta-a na mão, mantém-na dura,
não a deixes». E por vezes com a sua mão cobria
a mão da moça e os últimos puxões
fazia-os com ela para mostrar que sempre restava
no fundo da teta uma gota de leite.

Agora Bina tem quase cem anos. Caminha
atrás da cabra e não olha para a cara de ninguém.



Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2003

A Névoa

Às vezes a minha aldeia
fica presa dentro da névoa
e os pássaros em silêncio sobre os ramos
olham o céu sujo
como o observas tu
dentro do teu carro.


Tonino Guerra
Histórias para uma Noite de Calmaria
Assírio & Alvim, 2002
Tradução de Mário Rui de Oliveira
daqui

canto vigésimo quarto

A cona é uma teia de aranha
um funil de seda
o coração de todas as flores;
a cona é uma porta
que leva sabe-se lá onde
uma muralha
que se deve abater.

Há conas alegres
conas completamente loucas
conas espaçosas ou acanhadas,
conas de tostão e meio
bisbilhoteiras ou balbuciantes
e as que bocejam
sem dizer palavra
mesmo se as matas.

A cona é uma montanha
branca de doçura,
uma floresta onde os lobos circulam,
a carroça que puxa os cavalos;
a cona é uma baleia vácua
plena de escuridão e pirilampos;
a algibeira do pássaro
sua toca de dormir
um forno que tudo consome.

A cona no momento certo
é a face do Senhor,
a sua boca.

Pela cona nasceu
o mundo, com árvores, nuvens, o mar
e os homens, um de cada vez,
de todas as raças.
Da cona veio também a cona.
Diabos levem a cona!


Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004

canto vigésimo

Antes que as gotas fizessem baloiçar os ramos
nós, por trás da janela, esperávamos
que a água lavasse as folhas escondidas.
Depois chovia que Deus a dava
e pusemos um copo no peitoril
a medir a água pluvial em centímetros.

Às quatro o sol apareceu
e sobre a janela o copo cintilava
pleno até à borda.

Eu e meu irmão bebemos metade cada um
e comparámos a água do poço
com a do céu que é mais escorregadia
e contudo tem o sabor a relâmpagos.




Tonino Guerra
O mel
Assírio & Alvim, 2004