Apetecia-lhe escarrar a alma contra o pára-brisas, para que esse escarro ficasse a boiar na solidão, a fazer corpo com ela, e aí se diluíssem os traços fisionómicos de todos os transeuntes. «Uma aberta», implorou mentalmente, «uma aberta», como se as nuvens lhe entrassem na garganta e a névoa o sufocasse. Ao aguardar vez para entrar num dos grandes eixos da cidade o aroma pisado a ervas trouxe-lhe dum tímido canteiro o primeiro sinal da primavera. Aspirou-o como se o esgotasse, como se tudo o que naquelas ervas houvesse de fragrância dentro de si pudesse fazer corpo com os olhos, os ouvidos e o palato. «Consubstanciação», pensou, «transubstanciação». Subitamente sucederam-se parkings, estações de serviço, anúncios de escritórios, versiekerung, na própria treva que os portais bolçavam havia algo de estagnado, amarelado, a luz seguia algures o seu percurso, sentia a vida nos escapes dos camiões como se ao meterem as mudanças os condutores metessem outra realidade, era pelo menos essa a sensação que dava quando ouvidos na distância. Num carro ao lado beijavam-se dois heterossexuais aproveitando mais uma paragem forçada, semáforo ou novo engarrafamento.
O que do almoço lhe restava na lembrança era mais real do que o que dele trazia no estômago, rua após rua, esquinas, travessas sucedendo-se às avenidas, gruas subitamente hieráticas, totémicas, um escarro, a luz tornado a solidão tangível, luz onde as janelas se rasgam como coisas vivas, como se por trás delas houvesse água, poços onde a treva fermentasse, de uma janela aberta chegaram-lhe aos ouvidos duas ou três notas de um piano, duas ou três notas musicais onde um vida inteira se poderia cifrar, bastaria que para tanto se encontrasse uma forma, um estilo (diria o poeta), algo que nos seus moldes contivesse o esparramar da vida. Ia chegando atrasado, disso não havia a menor dúvida.
Como se algures, num plano que ele apenas intuía, a luz rodopiasse velozmente, sorvida por um invisível ralo que ele trouxesse dentro do seu espírito.
Um céu de funcionários.
O que do almoço lhe restava na lembrança era mais real do que o que dele trazia no estômago, rua após rua, esquinas, travessas sucedendo-se às avenidas, gruas subitamente hieráticas, totémicas, um escarro, a luz tornado a solidão tangível, luz onde as janelas se rasgam como coisas vivas, como se por trás delas houvesse água, poços onde a treva fermentasse, de uma janela aberta chegaram-lhe aos ouvidos duas ou três notas de um piano, duas ou três notas musicais onde um vida inteira se poderia cifrar, bastaria que para tanto se encontrasse uma forma, um estilo (diria o poeta), algo que nos seus moldes contivesse o esparramar da vida. Ia chegando atrasado, disso não havia a menor dúvida.
Como se algures, num plano que ele apenas intuía, a luz rodopiasse velozmente, sorvida por um invisível ralo que ele trouxesse dentro do seu espírito.
Um céu de funcionários.
Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002
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