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Sombrios deuses
Senhores do medo antigo
O sopro como estátuas suspendendo
Na movediça luz das lamparinas



Sophia de Mello Breyner Andresen
Navegações
Caminho, 2004

Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço

E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo



Sophia de Mello Breyner Andresen
Ilhas
Caminho, 2004

Tempo de não

Exausta fujo as arenas do puro intolerável
Os deuses da destruição sentaram-se ao meu lado
A cidade onde habito é rica de desastres
Embora exista a praia lisa que sonhei



Sophia de Mello Breyner Andresen
Ilhas
Caminho, 2004

Epidauro 62

Oiço a voz subir os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha



Sophia de Mello Breyner Andresen
Ilhas
Caminho, 2004

enquanto longe divagas

I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por nomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges como entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece a tua alegria
- Tua jovem rijeza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso


Sophia de Mello Breyner Andresen

O Nome das Coisas
Editorial Caminho, 1991