Mostrar mensagens com a etiqueta josé tolentino mendonça. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta josé tolentino mendonça. Mostrar todas as mensagens

O nocturno atalho

O que de sublime e doloroso o tempo guarda
precisava disso de maneira que até é difícil
porque se sentia só nos campos
onde os outros triunfam
descia o sombrio, o nocturno atalho

assim chegava cedo de mais à beira não do fim
mas do informulável
para quem as nossas pequenas imposturas
são uma perda, um delito, uma culpa



José Tolentino Mendonça
A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2006

Jacob e o Anjo

First we feel, then we fall
James Joyce


Há uma idade em que nos conhecemos
presos às paredes, cambaleantes
diante da noite sem fim

O menor movimento avizinha o fantasma
no escuro um de nós pode morrer
desces tu ou subo eu os degraus de uma lenda
um círculo interdito sobre a terra

Aperto contra ti a infelicidade dos meus braços
a navalha não do jogo, mas do rito
Tu porém inacessível
ardes entre a dupla folha
de ouro



José Tolentino Mendonça
O Viajante Sem Sono
Assírio & Alvim, 2009

O esterco do mundo

Tenho amigos que rezam a Simone Weil
Há muitos anos reparo em Flannery O'Connor

Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros

Os orantes são mendigos da última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre

São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios,
«até agora somos o esterco do mundo»,
citação que Flannery trazia à cabeceira



José Tolentino Mendonça
A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2006

A mulher desconhecida

É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor



José Tolentino Mendonça
A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2006

A presença mais pura

Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

a altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um «não esquecer» fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»



José Tolentino Mendonça
A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2006

Plátanos

Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta
e corro cambaleante para a vazia escuridão
assusta-me a certas horas a companhia
do que não adormece
a resistência disso no nosso espaço
movido por outra forças

Mas também me ocorre acender primeiro a luz
e só depois
sentir um medo louco da casa que me acolhe
dos seus redemoinhos imperceptíveis
que julgo cada vez mais perto
como se estivesse para ser morto
às mãos do próprio Deus

Não sei bem acordar vivo destas coisas:
aproveito o ruído do entardecer e grito muito alto
deixo-te um instante só (um instante só)
para fechar os olhos que tanto ardem
ou atiro das margens folhas ao rio
para medir o tempo de uma vida
a naufragar



José Tolentino Mendonça

A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2006

Ad te omnis caro veniet

Nem sei como me interessa
o que resplandece nos instantes
as impressões difíceis que nos arrastam
as palavras que leio no escuro

Se um amor passa por nós
tão perto já de perder-se



José Tolentino Mendonça
De Igual Para Igual
Assírio & Alvim
(..)
As lágrimas são um mapa pleno de significações e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e, o modo como o fazemos, revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar.



José Tolentino Mendonça
A Sintaxe das Lágrimas
Orações da antiga liturgia cristã
Assírio & Alvim

A rapariga de providence

Um nome arde tanto
de repente todos os caminhos parecem de regresso
a vida por si mesma não se pode escutar demasiado
a vida é uma questão de tempo
um sopro ainda mais frágil

a rapariga desce à pequena praça,
compra uma flor para ter na mão
uma forma intemporal de conservar
a perfeição ou a incerteza



José Tolentino Mendonça
A noite abre meus olhos
Assírio & Alvim, 2006

os amigos

Os amigos

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor



José Tolentino Mendonça
De igual para igual
Assírio & Alvim
Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

José Tolentino Mendonça
A Noite Abre Meus Olhos
Assírio & Alvim, 2006




josé tolentino mendonça
nasceu em 1965


"um coração é sempre um pássaro
evadido à censura da penumbra
"