Mostrar mensagens com a etiqueta vergílio ferreira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta vergílio ferreira. Mostrar todas as mensagens

XX

Estão diante de mim como uma filarmónica. Estão à roda da sala e eu em frente a olhá-los com muita atenção. São dez, contei-os de um a um, todos à volta, encostados à parede. E a certa altura reparo que todos remoem a boca em silêncio. São cinco homens e cinco mulheres, intervalados uns nos outros, os homens em cadeiras de rodas e as mulheres quase acocoradas, nas suas cadeirinhas rasas. E as cabeças um pouco inclinadas, esmoem mudos interminavelmente. Não costumam estar assim intervalados - estão. Vejo-lhes agora só as bocas em fileira a toda a volta, estão no ar e em fila na sua moedeira infindável. Fixo-lhes o movimento contínuo, os lábios em redemoinho lento na tarde quente imóvel. E a certa altura reparo que o rodopio das bocas se altera. Agora as dez bocas vêm à frente e atrás, um pequeno inchaço, de quem sopra, devem estar a soprar em qualquer instrumento invisível. E pouco a pouco os instrumentos são já visíveis, nítidos agora no seu niquelado amarelo. Trompetes trombones, todas as bocas sopram neles uma música no eterno. Não a ouço e há escuro à sua volta. Contra o fundo negro da sala, só as bocas soprando nos instrumentos metálicos. »




Vergílio Ferreira
em nome da terra
Bertrand Editora, 1990

Como se a morte já a habitasse, a sala, o quarto, os móveis, uma es-tranha fixidez de tudo num ponto longínquo da memória. Havia em baixo um restaurante, nós íamos lá às vezes, jantei só. A sala estava quase deserta, enchia-se ao almoço, gente que trabalhava ali perto. Mas a minha solidão não era bem triste. Mais profunda, radical, o súbito terror do desamparo, o súbito rompimento das mil ligações invisíveis - se tu morresses. Era a instantânea evidência do refluxo a mim próprio de tudo quanto de mim ia à vida procurar um apoio, se não penso nele, mas ele está. Quanta coisa impensada nos sustém de pé, eu não sabia. Há um equilíbrio de nós próprios em mil finíssimos invisíveis sustentáculos, nós não sabemos. E de repente a rotura, como à pressa sem vontade, não me apetece passear, reentro em casa - se tu morres. Somos pois feitos da nossa ficção, uma fracção enorme de nós é propriedade dos outros, mas o que é estranho é que. Como é que tu estavas tanto na passagem de mim à vida? Subitamente a casa toda, os móveis, os puxadores das portas, não apenas aquilo em que estavas tu, mas até mesmo aquilo em que não estavas. Subitamente tudo me aparece impregnado da tua presença, pegado a ti, e tu não estás lá. Subitamente, um intervalo de mim às salas às portas às paredes. Eu dizia a mim mesmo que voltarias e a tua presença impregnaria tudo de novo, eu dizia, eu dizia - que é que no fundo de mim não acreditava? Xana podia ter ficado comigo, mesmo talvez com o seu preto Tobias, ela devia saber. Mas um filho é também uma nossa ficção, estou só. Tento ler, tento ouvir rádio, tenho uma pedra no crânio. Rígida nítida absoluta. Sem uma fenda por onde passe uma ideia estranha a ela. Os carros passam em baixo na avenida com o seu pânico. A cidade está toda acesa nas ruas, nas janelas, e é assim mais visível a sua auréola de loucura.



Vergílio Ferreira
para sempre
Bertrand Editora, 1999

A noite é uma ausência nua

A noite é uma ausência nua
tão pura, tão profunda, tão solene,
que só o lembrar-me das coisas
é um acto de violência.
A cada esquina do escuro
espantalhos de silêncio,
com longos braços de mãos frias,
e urros suspeitados de susto gutural, aguardam.
E pelas guaritas do céu,
as estrelas fiscalizam a submissão universal
com o olho gigante dos polícias.
Em torno das casas
negros morcegos rondam
batendo asas de pano,
só sendo também ausência me poderei aguentar.
Vou dormir.

Vergílio Ferreira
Diário Inédito
Bertrand Editora, 2008






Vergílio Ferreira

1916 - 1996
Fixar uma vida em torno de uma ideia, de um sentimento, como é difícil! À unidade que nos pré-existe a cada um, à unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusas vegetações. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos com a sua presença imediata. Um caminho é "o" caminho em cada instante que passa.

...E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer.

vergílio ferreira
Aparição
1959
Um erro curioso dos que sonham com a eternidade é dizerem de um autor célebre que ele perdura através das gerações. Não é verdade. Ele dura apenas uma geração. Quando chega a seguinte, a outra já está morta, ou seja, não existe, ou seja, nunca existiu. Quem dura, dura apenas na crista de uma vaga de que as águas vão mudando. Mas que tem que ver com a onda a água que já lá não está?

vergílio ferreira
Conta-corrente 1 - 28 de Agosto de 1976
...Nunca mais nos veremos? Perguntei com a estupidez de quando não há perguntas a fazer. Mas ao mesmo tempo, por baixo da minha insensatez, eu sentia o impulso absurdo de recuperar uma irrealidade perdida. Nunca mais?... E imprevistamente era aí que eu repousava, na tua face, na imagem final do meu desassossego.

vergílio ferreira

na tua face
«Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuidade deste milagre de sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. Somos cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgote até às fezes a nossa condição de escaravelhos.»

vergílio ferreira
Aparição

destruir, construir

Sim: gritar, protestar é bom. Destruir a evidência de um erro é sentir a utilidade das mãos que destroem, é exaltar as forças do espírito na maravilha indizível da descoberta - desde criança o sabemos; por isso os brinquedos que nos davam só eram bem nossos, só nós éramos bem nós em face deles, depois de lhes tentarmos o segredo pela destruição... As pessoas sensatas, essas que sabiam não haver senão morte para lá da beleza aparente, aconselhavam-nos a sua sensatez. Mas nós tínhamos as nossas mãos desocupadas e a angústia da interrogação. Destruir, negar. As mãos que desmantelam a ordem envelhecida são ainda a nossa própria vida, transmitem-nos a certeza de que há um mundo e nós no meio dele, identificam a inteira verdade do nosso corpo que age e é eficaz; e o rumor dos nossos gritos afoga as vozes obscuras e importunas, a nossa voz derradeira, ilude-nos a resposta à interrogação que nos espera, inventa-nos no NÃO essa ilusão de plenitude que nós buscamos no SIM.

vergílio ferreira
Carta ao Futuro
Sandra. Hoje a obsessão foi mais forte. Escrever-te. A nossa história que contei parecia-me intocável. Principio e fim de nós nela, a tua morte selara-a para sempre. E todavia é nessa eternidade que a tua memória me perturba e a imagem terna do teu encantamento. (...)
Escrever-te. Possivelmente irei fazê-lo mais vezes até ver se no escrever se me esgota a tua fascinação. (...) Porque tu nunca foste real para eu te poder amar. E é essa irrealidade amada que estremece na minha comoção e no êxtase leve de te imaginar. (...) Na realidade nunca te esqueço no dia a dia que te esquece. Mas ficas um pouco ao lado, à espera de que eu volte de novo a olhar-te. É uma imagem fluida e intensa, essa que se me ergue sempre, e eu penso que possivelmente é a de quando te vi pela primeira vez. Mesmo que não fosse a primeira e que estivesse então distraído do meu amor que passava em ti. (...) Às vezes eu pensava que tu não fazias ideia do incrível e maravilhoso de ti. Estavas dentro e o teu esplendor estava fora. (...) E eu suspendo a obsessão de te dizer todo o maravilhoso de ti, antes de te imaginar a breve ruga na face e ouvir-te dizer que tolice. Não digas. Se te sentasses aqui à braseira. E se te demorasses comigo um pouco e olhássemos em silêncio a grande noite que desce. Em silêncio. Não te dizer mais nada. E tomar-te apenas a tua mão franzina na minha. E sorrires.
Paulo

vergílio ferreira
"Cartas a Sandra"