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Deambulações e delírios

Deverei renunciar quando todos clamam
por um sentido de dever
que conduz a reprimir o corpo
de deambulações e delírios?
Embora saiba que só tais derivas
poderiam cauterizar os lanhos?
Corpo,
renunciar a ti,
agora que estás aqui a meu lado,
sem a mordaça das palavras
ou remorsos familiares,
dançando, acariciando e mordendo?
Inclinado e disposto a soletrar
o meu nome,
no entanto, rude se te quero prender,
violento se prometo amor?
Ainda que prefiras as feridas à moral asfixiante,
e antes que a madrugada te persiga
com suas falsas imagens ternas
pegues na mochila e batas com a porta?



Jorge Gomes Miranda
Este Mundo, Sem Abrigo
Relógio D´Água, 2003

Aos meus vivos

Mortos somos
para um tempo pardo e taciturno
que nos lê para sem culpa
mais rapidamente nos esquecer.

Terra, ossadas, pó.
Onde o nosso legado
de palavras?

Na memória de um ou outro amigo
também ele silencioso e altivo?
Ou jazendo a um canto
da secção de perdidos e achados
de uma qualquer cidade de província?

Sobre os nossos rostos descarnados
constroem túneis, vias rápidas, casas
onde outros trairão
julgando que estão a amar. Como saber

quando o caminho é feito de perdas, pedras,
mondas e colheitas de fim de estação:
ecos tardios, fruta sem sabor?

Talvez mudar de ramo ou esperar o último verso.



Jorge Gomes Miranda
Este Mundo, Sem Abrigo
Relógio D´Água, 2003

Diálogo com a morte

- Permaneça eu em casa,
resistindo aos apelos
de mobilização,
ao espelho, a juntar destroços
de mim mesmo,

ou desça as escadas,
acompanhando o vento
a limar a noite imensa,
recolhendo amostras
de imagens desvalidas,

como ouvir as canções
perdidas da infância,
a música de seios e nádegas
que amei?

- Não sei do que me perguntas.
Mas gosto de ti, rapaz.
A sério que gosto.



Jorge Gomes Miranda
Este Mundo, Sem Abrigo
Relógio D´Água, 2003

Copo

Não gosto de mesas de vozes em série,
nem de brindar à saúde de quem não conheço.
À semelhança deste homem que circunspecto
assiste, prefiro o silêncio das salas vazias.

Depois de o prato, a faca a colher,
e o garfo terem sido removidos da mesa,
ficamos sós com as nossas memórias,
trespassados pela luz
de uma lâmpada de sessenta watts
que de súbito emudece.

Na margem de um estremecimento
acende outro cigarro.
Nos vidros a chuva vigia.



Jorge Gomes Miranda
O Acidente
Assírio & Alvim, 2007

À terra natal

A derradeira viagem
até à tua terra natal
começou alguns dias antes:
preparativos, lembranças,
indicações.

Ao telefone com assombro
ias ditando
não os escolhos da paisagem,
nem as encruzilhadas
a que tinha chegado
a vida,
mas o sabor dos frutos maduros,
a luz dos encontros à beira do tanque.

Aguardavas na varanda o nítido
momento de partir,
solene como uma rapariga
vestida
para o seu primeiro baile:

o casaco de malha
segurava já os ombros,
apenas o lenço
que corria em tons de mar
pela pele alva do pescoço
criava uma ilusão de céu
na velhice cansada das
manhãs
em que te levantavas
para os gatos
e para a solidão
amiga das
canadianas,
metade corda de alpinista,
metade remo de batel.

Nos dias antes de morrer,
sentada no paredão da cama,
voltaste a escutar a harpa da infância.

Ninguém sabe para quem foi
o teu último pensamento,
as palavras finais que disseste,
em que parte do mundo
pousaste o olhar pela última vez.

Nas Pietàs que escrevo
é sempre o filho que ao colo tem
sua mãe morta.



Jorge Gomes Miranda
Requiem
Assírio & Alvim, 2005