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Um velho em Veneza

Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos,
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Livi.
Comentou-lhe, sem auto-compaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver -
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas.


Juan Luis Panero
Poemas
Relógio D`Água, 2003 
Tradução e prefácio de Joaquim Manuel Magalhães

Ofício de suicidas

Poucas as palavras, pequenos seus desígnios,
nomeiam sempre realidades banais,
triviais signos, factos consumados,
e, ao fundo, sórdida presença da morte.
Ofício melancólico, construir estas grades,
estas escassas lápides do tempo que nos passa,
ofício de suicidas, tentar reter
o rasto da luz em sílabas de sombra.


Juan Luis Panero
Poemas
Relógio D`Água, 2003
Tradução e prefácio de Joaquim Manuel Magalhães

Lendas e metáforas

Sozinho, na penumbra de outra noite, neste quarto
onde a ténue claridade da lua,
filtrando-se pelas cortinas,
ilumina a mancha grande e branca do teu cu.
Umas palavras que não pronuncio,
o cheiro morno e ácido do teu sexo,
remotas, retocadas imagens de outros corpos,
algo impreciso e íntimo
como uma conversa de bebedeira
é tudo o que me resta, lendas,
metáforas dos quarenta anos da minha vida.


Juan Luis Panero
Poemas
Relógio D`Água, 2003
Tradução e prefácio de Joaquim Manuel Magalhães

Used Words

Com palavras usadas,
gastas pelo tempo e pelo hábito,
cujo último tremor já não se sente.
Com palavras, como sonhos, queimadas pela vida,
nesta noite de chuva falo contigo,
tento falar pelo menos, ligeiramente ébrio,
construo cada sílaba no país de jamais.
E sinto essa repentina lucidez
com a qual, de súbito, quebramos a rotina de sermos e de conhecermo-nos,
sinto, digo, essa estranha sensação, distante e esvaída,
do whisky, da noite e do silêncio,
do entusiasmado desespero com que aceitamos a derrota,
dessa vertigem, às vezes, só às vezes, tua e minha,
em que morremos a sorrir com os olhos abertos.
Sinto o pouco que é um beijo no fundo da tua língua,
ou os teus olhos a olharem-se nos meus,
ou as nossas mãos unidas no ar,
a percorrer um museu de admitidos fracassos.
Desfilam, batalhão desolado de fantasmas,
nomes e nomes com eco diferente.
Pretendemos, com abolidos rostos, prazos caducados, cidades impossíveis,
responder a uma velha pergunta
cuja resposta só a morte conhece já.
Anos e anos, voluntários exílios de seres e países,
os filhos que não quis ter, os que tu tiveste,
o tremor do desejo que guardas ainda na tua pele,
o meu repetido navegar de cama em cama
reunem-se e afirmam o seu destino
diante da cerimónia do amanhecer.
E sabemos tudo e está escrito nos teus olhos,
hoje, contudo, neste dia com sol - tão raro em Bogotá -
de finais de Julho, de um ano qualquer,
proponho-te o meu amor, sei que aceitarás,
com palavras usadas proponho-te mentirmo-nos.
Já passada a noite, quietos diante do espelho,
enquanto faço a barba e tu pintas os lábios,
proponho-te o meu amor, dizer que nos amamos.
Dizer - e são apenas exemplos - hoje existe a vida para nós
ou tu não morrerás nunca
ou, talvez, ainda há noites e noites que esperam
os nossos braços, esse especial calor de dormirmos abraçados.
Esquecendo, tentando esquecer o nosso passado,
ignorando o futuro sem dúvida inalcançável,
com palavras gastas dizer e repetir
- é outro exemplo - obrigado meu amor por teres existido.
Ao menos por um momento - não incomodamos ninguém -
com palavras usadas mentirmo-nos e mentirmo-nos,
mentirmo-nos contra o tempo, desprezar a sua vitória.

Envio:
Deixo-te este poema
confuso, absurdo, comprido,
para que tu o estendas como um lenço velho
aos pés da tua cama, para que tu o tenhas,
e um dia o encontres, confuso, absurdo, comprido,
num dia como este - quando já não estivermos -
e recordes, debaixo do duche,
que uma vez te amei - mentiras e mentiras -
que uma vez te amei - era um dia de Julho -
com palavras usadas como um disco riscado,
que recordes, meu amor, esta letra de tango.



Juan Luis Panero
Antes que Chegue a Noite
Fenda, 2001
Tradução de António Cabrita e Teresa Noronha

Na manhã seguinte Cesare Pavese não pediu pequeno-almoço

Sozinho desceu do comboio,
atravessou sozinho a cidade deserta,
sozinho entrou no hotel vazio,
abriu o quarto solitário
e escutou assombrado o silêncio.
Dizem que levantou o telefone
para ligar a alguém,
mas é falso, completamente falso.
Não havia ninguém a quem ligar,
ninguém vivia na cidade, ninguém no mundo.
Bebeu o copo, as pequenas pastilhas
e esperou que o sono chegasse.
Com algum medo a si mesmo
- pela vez primeira afirmava a sua existência –
talvez curioso, com gesto cansado,
sentiu cair o peso das pálpebras.
Horas depois – um estranho sorriso abria-lhe os lábios –
anunciou a si mesmo, com firmeza,
a única certeza que afinal atingira:
jamais voltaria a dormir sozinho num quarto de hotel.


Juan Luis Panero
Los trucos de la muerte (1975)
Tradução A.M.

Pierre drieu la rochelle divaga perante a morte

No fim, penso que tinha razão
- todo o absurdo artifício do poder,
a lâmina implacável da inteligência,
as sórdidas, políticas palavras,
os arranhados projectos impossíveis –
sim, tinha razão nesse dia. Lembro-me bem
quando pensei, deitado junto dela,
que a única coisa real é uma boa puta,
uma pele cálida, lábios silenciosos, mãos sábias,
naquele bordel, ao pé de Neuilly, ao amanhecer.
Por isso, porque acho que tinha razão, sou mais culpado
- livros, declarações, ideias, lealdades,
o segredo de tudo, o avesso do nada –
quanto tempo perdido para chegar a isto,
para recordar, sem solução já, os seus longos músculos,
o sabor espesso da boca, os mamilos rosados.
Caía uma luz cinzenta sobre a cama,
naquele cu memorável, imóvel,
sim, tinha razão, essa puta
de quem nunca soube o nome ou então esqueci,
o fumo de um cigarro, isso é tudo, eu tinha razão,
e se não tinha, que importa agora?



Juan Luis Panero
Tradução A.M.