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Diário de bordo

Mãe
Hoje abriu-se uma janela pela primeira vez
Mas tudo o que pudeste ver foi o pequeno lago de águas
adormecidas,
rodeado de margens de areia brilhante
Um pequeno lago alimentado por inúmeros afluentes


Mãe
Passou uma semana e o meu minúsculo coração agita já as
águas desse lago
Estou agarrado à margem vejo ao longe uma pequena vida
mas o medo impede-me de me afastar

Mãe
Porque é que andas enjoada?
Passas a vida a correr para o quarto de banho
Não toleras o cheiro a fritos nem o after-shave do pai
Espero que não enjoes do cheiro a jasmim

Por favor não me confundas com um girino
Embora não tenha nada contra as rãs
E muito menos contra as libélulas que povoam os outros
lagos

Mãe
Estou a ficar velho
Disseram-me que já deixei de ser embrião
Mediram-me a espessura da nuca
E eu aproveitei para realizar algumas acrobacias

Hoje fiquei finalmente a saber que tinha ventrículos pulmões
estomâgo e uma série de coisas mais
Incluindo uns grandes lábios que quase pareciam bolsas
escrotais
E eu que pensava que aquilo que tinha entre as pernas era
uma rosa

Mãe
Porque é que o meu coração bate tão acelerado?
Por mais que tente não consigo sincronizá-lo com o teu

Mãe
só conheço a cor do crepúsculo
Estou morto por conhecer as outras cores do arco-íris

Mãe
Hoje surpreendi-te
Quando te olhavas nua ao espelho
As mãos sobre a púbis segurando a barriga enorme

Mãe
Às vezes os dias são um pouco monótonos
De forma que me entretive a fazer nós com o cordão umbilical

Mãe
Estás com umas olheiras enormes
Pelos vistos não te deixei dormir
Passei a noite toda a deambular pelos recantos mais sinuosos do teu útero
A ver se descobria alguma água-marinha

Mãe
Podias ter colocado alguns peixinhos no líquido amniótico
Já agora uma beta e alguns escarlates
E porque não uns nenúfares?

Mãe
Apetecia-me uma bebida diferente
Que não a minha dose diária de urina.

Mãe
Esta noite tive um pesadelo horrível
Sonhei que te tinham cortado os mamilos
com uma lâmina de bisturi

Mãe
Apetecia-me chorar
Mas é difícil chorar assim debaixo de água

Mãe
O que está a acontecer?
O teu útero começou a contrair-se
E as contracções vão-se tornando cada vez mais frequentes

Mãe
O que é que eu te fiz
Para me expulsares desta maneira?

Mãe
A distância entre mim e ti
Não se mede em centímetros mas em lilases


Jorge Sousa Braga
A Ferida Aberta
Assírio & Alvim, 2001

Fogo Sobre Fogo

Tanto me seduz a contemplação do arco-íris numa gota de água, como
ser arrastado por um rio caudaloso. Em vez de uma gota de água ou
de um rio poderia falar de Matsuo Bashõ ou Walt Whitman...

Um rio caudaloso pode deixar-nos indiferentes à sua passagem...Uma
gota de água pode pelo contrário submergir-nos completamente.

Os poemas que se seguem pretendem aproximar-se da simplicidade (ilu-
sória) de uma gota de água. Interrogo-me, por vezes, quantas palavras
poderá conter uma gota de água? Não sei, embora tenha a sensação
que, em determinadas circunstâncias, nem uma palavra comporta.

Por último, um lamento : que estes poemas não possam chegar ao leitor
da forma mais apropriada: ou seja, em folhas de trevo.

1

O meu mamilo
no teu
mamilo

2

Só tu
sabes sorrir
na vertical

3

Vou ao céu
E venho-
me



Jorge Sousa Braga
O Poeta Nu
Assírio & Alvim

a greve dos controladores de voo in o poeta nu

Alguns enxames de abelhas invadiram o Museu do Louvre e explo-
raram cuidadosamente todas as naturezas mortas com flores, não
tendo deixado um único grão de pólen.

Um homem que se passeava nu na Praça de S. Marcos em Veneza foi
salvo no último momento de ser preso por atentado ao pudor, por
um bando de pombas que o vestiram completamente de branco.



Jorge Sousa Braga
O Poeta Nu
Assírio & Alvim

Adormecer ao lado da primavera

Adormecer num colchão de molas ao lado da primavera
e acordar do lado do verão
Atirar-se da janela do quinquagésimo andar
e aterra intacto na folha de um nenúfar
Passar a cem à hora todos os sinais vermelhos
e estancar repentinamente no primeiro sinal verde
Engolir um Mirage e vomitar em seguida
dois milhões de pássaros pela boca
Fornicar sucessivamente com uma elefante-fêmea
uma galinha-da-índia um colibri e uma borboleta
Destruir a pontapé todas as palavras do dicionário
até chegar à palavra chumbo
Estender a língua vermelha na pista do aeroporto
para servir de tapete a uma estrela de Hollywood
Cortar os braços a todos os prisioneiros e gritar «mãos no ar»
antes de os passar pelas armas
Derrotar todos os exércitos do nascente
e sucumbir ao ser atacado pelas costas por uma folha de Outono
Comer à sobremesa apenas maçãs marca Cézanne
Assistir ao próprio enterro ao volante de um BMW cor de cinza
e chorar lágrimas verdadeiras
Descobrir uma caravela naufragada há quinhentos anos no fundo dos
teus olhos
e conseguir trazer para a superfície duas estátuas de Buda além de uma
tonelada de pimenta e outra de cravo
Passar cinco anos na solidão de uma cidade de dez milhões de
habitantes
e experimentar depois o bulício das Penhas Doiradas
Entrar num supermercado e plantar um limoeiro na secção das
vitaminas
Recuar alguns séculos no tempo
para apanhar nas mãos a cabeça de Maria Antonieta
Lavar as mãos em sangue antes de assinar o tratado de paz



Jorge Sousa Braga

O Poeta Nu
Assírio & Alvim

Carta de amor

A Eugénio de Andrade

Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração



Jorge Sousa Braga