Mostrar mensagens com a etiqueta a.m. pires cabral. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta a.m. pires cabral. Mostrar todas as mensagens

Dolo ou delírio

Dolo ou delírio:
escolhe um, vive com ele.

Sustenta-o, usando de
manha ou martírio.

Escolhas o que escolheres,
foi para casos como o teu
que a solidão se fez.

Ao primeiro desencanto,
bebe dela a tragos longos
como quem bebe um licor
doloso, doloroso, delirante.



A. M. Pires Cabral
Arado
Livros Cotovia, 2009

Algures a Nordeste parte dois

II

Foi como se tivessem removido
da bússola a oitava direcção,
aquela que apontava para um norte
mais lavado.

A bússola obliterada
do seu mais fresco lado e do seu
mais fresco vento.

Campos em ruínas, infestados
de plantas ruins.

Nenhum choro, nenhum riso
de criança.

Uma angústia funda, como se
nem sequer restasse já
a mínima memória do norte.



A. M. Pires Cabral
Arado
Livros Cotovia, 2009

As Prostitutas

Naquele tempo,
elas desciam à vila, as prostitutas –
a única saída,
exactíssima resposta para a nossa
angústia seminal acumulada.
Vinham de Vale da Porca, ou outra
terra assim pasmada.
Traziam na cabeça lenços garridos,
na carteira de mão a triste história:
a sedução primária, a miséria espessa,
mas jamais o vício mercenário.
Nas eiras recebiam as nossas águas,
de permeio plantados como reis.
Procuravam lisonjeiras acertar
seu êxtase fingido com o nosso.
Beijavam-nos, diziam: tão novinho!
Suportavam-nos insultos e arremessos.
Com a mão experiente (mas não habituada)
guiavam-nos na bela, impreterível,
urgente aprendizagem,
concediam-nos crédito e carinho –
as tão castas mulheres,
as prostitutas.


A.M. Pires Cabral

in Algures a Nordeste (1974)
Antes que o rio seque - Poesia reunida
Assírio & Alvim, 2006

Ácido úrico

Os membros em recessão, a coluna
percorrida de sacrílegas dores,
tanta angústia dispersa pelo corpo!
É o ácido úrico, dizem, e prescrevem,
sujeitam-te a diários exorcismos.
A carne devastada das cáusticas essências,
as mãos nos quadris, lamentas as pontadas.
É o ácido úrico, é o tempo
(o incorrigível peregrino),
é o que tem de ser com muita força...
Do tal ácido os malefícios te
talam pontuais de norte a sul.
Como se não bastasse o Neisseria catarrhalis.
Inverno: derradeira, íngreme prestação.


A.M.Pires Cabral

Silêncio

Toda a minha vida me escutaste em silêncio.
Tinhas à disposição as vozes enormes
do vento, das águas, do trovão, do pintassilgo —
mas nunca dei por que as usasses comigo.
Envelheci enredado
nas teias dessa mudez.
Ganhei a industriosa astúcia dos velhos
à custa de perder a candura original,
li com cada vez mais desenganada luz
o teu silêncio.
Assim, a princípio achava-o cúmplice,
quente e generoso. Um silêncio
de quem concorda e apoia,
e não acha necessário proclamá-lo.
Com a continuação,
começou-me a parecer o teu silêncio
já só condescendência. O silêncio
de alguém que se dispensa de mostrar
desacordo por simples cortesia.



A.M. Pires Cabral
As Têmporas da Cinza
Livros Cotovia, 2008

Prognóstico

Sou do tempo em que não se corrigiam
dentes defeituosos.
Além disso, perdi praticamente
todos os molares.
Para piorar as coisas,
a TAC acusa um desvio para a esquerda
do septo nasal.
Ainda por cima, um desvio acentuado.
Bonita caveira hei-de dar,
não haja dúvida.



A.M. Pires Cabral
As Têmporas da Cinza
Livros Cotovia, 2008

Um homem sentado no seu tempo

Está um homem sentado no seu tempo
cismando na mudança e em tantos
outros lógicos inexoráveis topos.
A pele o reveste com estrema cordura
como se manto, resguardando os vincos
de quebranto esparsos pelo corpo dentro.
Tem a mão combatente espalmada
sobre o rosto recoberto de incertezas ―
ou é uma pragmática, anfíbia barbatana
tacteando o interior, seu elemento?

Eis uma máquina de produzir sistemas,
que belo organismo em movimento.
Um engenho que, incessantemente,
como um fio de baba vai debitando angústia.
Ah, mas já a porção se completou,
já ele toma a tesoura dos seus dedos
e recolhe uma ideia arredondada
e a acondiciona entre outras mil,
todas densas, agudas, de morrer.
O corpo do homem ― exígua embalagem.

Mas a máquina não pára, o fio finamente
tecido das mais ínvias confissões
já forma outra ideia, de configuração
idêntica às restantes, e tão diversa,
tão matematicamente original.
Está um homem sentado no seu tempo,
recebe do século as mais embravecidas
aflições ― e prossegue segregando,
tão perfeita engrenagem de sofrer,
sua atlética fronte tão suada.



A.M. Pires Cabral
Antes que o rio seque
Assírio & Alvim

Caroço

O caroço deste fruto parece ser apenas
um invólucro frio, incomestível,
sem serventia alguma. Mas esconde
no fundo do seu poço uma vida
destinada a eclodir, mal sinta propício
o agasalho da terra.

Que o mesmo é dizer: está lá dentro
uma morte emboscada.


A.M. Pires Cabral
As Têmporas da Cinza
Livros Cotovia, 2008

A mosca do serviço de urgência

A velha está sentada na sala de espera.
Chegou amparada pela filha, que a depositou ali
enquanto trata dos papéis. A aflição
deve ter sido tão súbita e imperiosa
que a velha vem descomposta,
não houve tempo para atender a pudores.
Perdeu algures um chinelo.

Está sentada, muito branca, e parece
mascar as dores com as gengivas nuas.

Tem a morte pousada na cara, sob a forma
de uma mosca insistente e de ar atarefado.
Não tem forças para a sacudir.
A mosca aproxima-se da boca, depois parece
interessar-se pelo nariz. Delicia-se
com o muco ao canto do olho, como a criança
que come a ocultas um gelado interdito.
É como se estivesse em casa e percorresse
os aposentos ao sabor dos afazeres.
Cansada do rosto, levanta voo
e vai pousar, desta feita, numa mão.
Mas breve volta atrás, como se se tivesse
esquecido ali de alguma coisa,
e demora-se um pouco a tentar lembrar o quê.

Esfrega uma na outra as patas dianteiras,
celebrando a vitória que logo virá.

A velha já nem se dá conta
desse penúltimo escárnio da morte.
Está visivelmente madura para ela,
pronta a entregar-lhe os destroços do corpo.

Consumada a posse daquele território,
a mosca vai no seu voo fortuito
em busca de mais carne a requerer.
Há dezenas de doentes na sala.
Apalpa-os um por um, como se faz aos figos,
para saber qual deve ser comido
em primeiro lugar.

O mais certo é que acabe – mais dia, menos dia –
por devorá-los todos.



A.M. Pires Cabral
As Têmporas da Cinza
Livros Cotovia, 2008