dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
conhece o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
Al Berto
Uma existência de papel
Gota de Água, 1985
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(...) tudo o que me resta é o que partilho contigo: uma existência de papel (Lawrence Durrell: Mountolive)
5.
eis-me acordado
com o pouco que me sobejou da juventude
estas fotografias onde cruzei os dias
sem me deter
e por detrás de cada máscara desperta
a morte de quem partiu e se mantém vivo
a luz secou na orla desértica da cidade
escrevo para sobreviver
como quem necessita de partilhar um segredo
este corpo em que me escondi
gastou-se
quantas noites permanecerão intactas
no fundo do mar? o rosto ainda jovem
foi o tesouro de seivas que me entonteceu
pelo corpo condeno-me à vida
de susto em susto à inutilidade da escrita
mas eis-me acordado
muito tempo depois de mim
esperando por alguma fulguração do corpo
esquecido
à porta do meu próprio inferno
Al Berto
Uma existência de papel
Gota de Água, 1985
com o pouco que me sobejou da juventude
estas fotografias onde cruzei os dias
sem me deter
e por detrás de cada máscara desperta
a morte de quem partiu e se mantém vivo
a luz secou na orla desértica da cidade
escrevo para sobreviver
como quem necessita de partilhar um segredo
este corpo em que me escondi
gastou-se
quantas noites permanecerão intactas
no fundo do mar? o rosto ainda jovem
foi o tesouro de seivas que me entonteceu
pelo corpo condeno-me à vida
de susto em susto à inutilidade da escrita
mas eis-me acordado
muito tempo depois de mim
esperando por alguma fulguração do corpo
esquecido
à porta do meu próprio inferno
Al Berto
Uma existência de papel
Gota de Água, 1985
lisboa (4)
vieste dos remotos desertos africanos onde
semeaste tormentos e filhos negros
enrola-te agora no pano ardido do tempo
de lisboa - rasgas em tiras dolorosas o sonho
e tentas navegar pelos sucalcos dos mares
mas a saudade pelos que partiram e agora
se aproximam desta voz - vêem
um império de navios vazios
e tu
sob o sol cruel - perdido de olhar em olhar
jogando a vida contra o sujo casco dos cacilheiros
vagueias
pelos becos à procura de um rosto que imite
a felicidade da voz perdida - ou um corpo qualquer
para fingir o sono junto ao teu
mas lisboa é feita de fios de sangue
de províncias
de esperas diante dos cafés
de vazio sob um céu plúmbeo que ensombra
os jardins de estátuas partidas
há um pressentimento de sono sem fim
refugias-te num quarto de pensão e dormitas
o dia todo - para que lisboa te esqueça
Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
semeaste tormentos e filhos negros
enrola-te agora no pano ardido do tempo
de lisboa - rasgas em tiras dolorosas o sonho
e tentas navegar pelos sucalcos dos mares
mas a saudade pelos que partiram e agora
se aproximam desta voz - vêem
um império de navios vazios
e tu
sob o sol cruel - perdido de olhar em olhar
jogando a vida contra o sujo casco dos cacilheiros
vagueias
pelos becos à procura de um rosto que imite
a felicidade da voz perdida - ou um corpo qualquer
para fingir o sono junto ao teu
mas lisboa é feita de fios de sangue
de províncias
de esperas diante dos cafés
de vazio sob um céu plúmbeo que ensombra
os jardins de estátuas partidas
há um pressentimento de sono sem fim
refugias-te num quarto de pensão e dormitas
o dia todo - para que lisboa te esqueça
Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
mektoub
a luminosidade é uma placa de zinco suspensa
do céu de deserto
em redor
a imensidão das areias vibra contra o caos
de pedra e de eufórbios que se multiplicam
a perder de vista
o bafo inquieto dos cavalos acende
a pólvora das festas inesperadas
uma coruja morre
no cimo açucarado da tamareira
caminhas
sitiada pelo canto agudo do muezzin
chamado à oração
mektoub
sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
há séculos - onde o coração dos homens
é uma rosa nómada e calcária
no limite da escassa água e desta terra seca
mal abençoada - caminhas
na plana noite das ardósias
nas jeiras de súplicas e recolhimento onde
talvez se esconda
o contorno quase terno do rosto de deus
Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
do céu de deserto
em redor
a imensidão das areias vibra contra o caos
de pedra e de eufórbios que se multiplicam
a perder de vista
o bafo inquieto dos cavalos acende
a pólvora das festas inesperadas
uma coruja morre
no cimo açucarado da tamareira
caminhas
sitiada pelo canto agudo do muezzin
chamado à oração
mektoub
sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
há séculos - onde o coração dos homens
é uma rosa nómada e calcária
no limite da escassa água e desta terra seca
mal abençoada - caminhas
na plana noite das ardósias
nas jeiras de súplicas e recolhimento onde
talvez se esconda
o contorno quase terno do rosto de deus
Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
Segredo entre Joseph Beuys e eu
contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo animal sacrificado tocamos o homem
cuja vida se desprende do centro da terra
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma cabeça de sangue e de mercúrio escorre
oxidando a vulcânica lâmina da memória
contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo homem tocamos o sacrificado animal
cuja morte se prende à intriga do coração
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma artéria pulsa incandescente e escorre
dos olhos do animal para os olhos do homem
contemplamos
o início secreto da eterna luz e da treva
atentos
à morte do esplêndido universo
Al Berto
in A Secreta Vida das Imagens
O Medo
Assírio & Alvim, 2005
o início da luz estilhaçada
pelo animal sacrificado tocamos o homem
cuja vida se desprende do centro da terra
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma cabeça de sangue e de mercúrio escorre
oxidando a vulcânica lâmina da memória
contemplamos
o início da luz estilhaçada
pelo homem tocamos o sacrificado animal
cuja morte se prende à intriga do coração
e
sob a sola do sapato de chumbo
uma artéria pulsa incandescente e escorre
dos olhos do animal para os olhos do homem
contemplamos
o início secreto da eterna luz e da treva
atentos
à morte do esplêndido universo
Al Berto
in A Secreta Vida das Imagens
O Medo
Assírio & Alvim, 2005
Última Carta de Van Gogh a Théo
nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe a mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol
Al Berto
in A Secreta Vida das Imagens
O Medo
Assírio & Alvim, 2005
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe a mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol
Al Berto
in A Secreta Vida das Imagens
O Medo
Assírio & Alvim, 2005
(...)
- Como te chamas? E dás-me um cigarro?- Chamo-me Beno. Queres lume? E tu, como te chamas?
O rapaz acendeu o cigarro com o fósforo que Beno lhe estendia e depois disse:
- Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti, mas não te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber. Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos amarmo-nos. Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui. Pertencia a outra paixão, e já a esqueci. Dá-me tu um nome, para eu poder ficar contigo.
- Se assim o queres, teremos as noites e os dias para nomear a nossa paixão.
- E vais dar-me um nome de planta, de objecto, ou de pássaro?
- Não sei, não sei ainda.
Calaram-se. Beno e o rapaz começavam a estar bêbados. O rapaz encostara o seu corpo ao corpo de Beno. Olhavam-se. O rapaz erguera a mão, aberta, pousando-a com leveza no ombro de Beno.
- Medo de viver? - sussurou o rapaz.
E Beno estremeceu outra vez, mas não disse nada.
A noite vestia-se lentamente de branco. A neve ia estendendo o ligeiro véu sobre a cidade adormecida há muito. Nenhum ruído, tudo estava branco e cintilava.
Beno e o rapaz caminharam, deixando pegadas que segundos depois se apagavam, como se ninguém tivesse alguma vez trilhado aquele caminho. Nevava, e Beno pressentiu que também o rapaz, um dia, se apagaria da sua vida.
Mais tarde, muito mais tarde, talvez se lembrasse das mãos dele sobre as suas, como um ferimento no peito; então desejou que a neve também apagasse esse ferimento ainda distante.
Caminharam, os ombros tocando-se, e, de cada vez que era preciso atravessar uma rua, o rapaz agarrava-se ao braço de Beno. A noite transformara-se num deserto branco, sem um único som, sem o mais pequeno sinal de vida. A cidade dormia a sono solto. Beno sorriu e deu-lhe a mão.
A neve atingira alguns centímetros de espessura e eles deixaram de ouvir o barulho surdo das botas no asfalto. Longe dali, na noite desconhecida de outro bairro, vibrou uma sirene.
(...)
Entretanto, o silêncio apressara-se a regressar.
Beno metera a chave à porta. O dia rompia, tímido, ou seria apenas a cintilação das luzes da noite libertando-se do coração fresco da neve?
- Senta-te, vou fazer chá para aquecer... - disse Beno, dirigindo-se para a cozinha.
- Beno!
- Sim.
- Vives aqui sozinho?
O rapaz sentara-se na cama e descalçara as botas.
- Porquê? - perguntou Beno, espreitando à porta do quarto.
- Agrada-me este quarto, fico aqui para viver contigo.
Beno voltara à cozinha, deitara água a ferver no bule e esperava que o chá abrisse. Quando regressou ao quarto, o rapaz estava nu, estendido sobre a cama.
Beberam o chá a escaldar e fumaram. O quarto balouçava como um navio, e Beno pôs-se a olhar com minúcia e desejo para o rapaz nu. A pele branca, o cabelo caído para os olhos, escondendo-lhe as pálpebras sonolentas, quase fechadas. Os lábios húmidos de saliva, entreabertos, num início de sorriso. O sexo em repouso, as mãos sobre o peito, as pernas. Outra vez o sexo, os pêlos, os braços e os ombros, a curva do pescoço, os cabelos, o rosto, os olhos fechados, a pele, a pele... Beno não se cansava de olhar.
(...)
Beno estava sentado na cama. Por fim, o rapaz apoiou os joelhos nas suas costas e passou-lhe os braços à roda dos ombros. Sentiu todo o seu corpo encostado ao do rapaz, e a sua respiração, e um beijo, no pescoço.
Lentamente, Beno desprendeu-se e, dobrando-se para trás, deitou a cabeça no peito do rapaz. Ouvia-lhe o bater do coração, fechou os olhos e deixou-se ficar, sem se mexer, naquela posição, paralisado e vazio. E, durante um tempo que ele não soube, afastou de si o mundo e todo o pensamento.
A madrugada roçou a janela, clara e fria, misteriosamente branca. Continuava a nevar.
Beno despiu-se. O rapaz puxou-o para si. Beijaram-se e amaram-se sem descanso manhã adiante.
A neve parara de cair, e tudo era silêncio e lassidão, quando desceram à íntima cumplicidade do sono.
Al Berto
Lunário
Assírio & Alvim, 1999
Carta da árvore triste (a minha mulher)
quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casacobrirá suavemente os objectos e o mobiliário
devolvendo-lhes os seus pesos formas e volumes
acordá-los-á para as quotidianas utilizações
e as petúnias em plástico na jarra da sala agitar-se-ão
à tua passagem em direcção à cozinha
a cidade entrará repentinamente pela casa adentro
um grito nas traseiras sacode-te para o interior baço da manhã
buzinas sirenes
o telefone do vizinho atravessando as paredes
gritos de crianças derrapagens estridentes
outro telefone
uma porta que se fecha com estrondo
passas o olhar pelo jornal de ontem em cima da mesa
lês: um papagaio valioso com 32 anos
capaz de falar em 3 idiomas
foi morto por um jovem drácula de nome punk
Carlinhos Monóxido
o papagaio foi encontrado morto e de olhos saídos das órbitas
suspeita-se que...
o telefone parou de tocar
atiras o jornal para o caixote do lixo
reparas então que tudo o que permanecera na penumbra do sono
surge subitamente nítido e coberto de luz
como se tivesses encontrado uma fotografia esquecida
no fundo dalguma gaveta forrada a papel-manteiga
o dia instalar-se-á igual aos outros milhares de dias
com a banal crueldade dos acontecimentos
ouves rádio enquanto o café aquece
deixas queimar um pouco as torradas
passas os dedos pelos cabelos atados numa fitinha de chita
ajeitas o roupão para cobrires o peito desarrumado
depois
com a chávena de café na mão mexendo o açúcar
arrastando os chinelos de borracha virás até aqui
onde encontrarás esta carta
serão talvez nove horas
a rádio cospe anúncios de sabonetes e detergentes
o irritante pi do sinal horário
suspiras ao pegar no envelope
e apenas o teu suspiro te parecerá deslocado
de resto há muito que os teus dias são o decalque uns dos outros
escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido
é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo
não te amo
olho em redor pela última vez demoradamente
sinto-me como uma ilha cuja base se desprendeu do fundo do mar
naufraga algures com todo o seu peso diáfano de praias
uma sensação de limos frios desce às mãos
nunca fizeste caso da minha loucura
nunca vieste visitar-me quando estive internado nunca
o enfermeiro azul-sabonete chegava às cinco em ponto
injectava-me e sorria
atava-me debaixo de fortíssimas lâmpadas e sorria
esperei continuamente a tua visita
nunca vieste
ficava estendido inerte a gritar para dentro do corpo
as unhas abrindo sulcos nos lençóis sujos de mijo
e sabia que lá fora as avenidas esvaziavam-se
enquanto a morte se passeava no rosto despreocupado duma mulher
a carne rasgava-se-me ao simples contacto com os dedos
a dor invadia-me os órgãos do corpo que eu nunca vi
esperava-te
por cima da cama voava um corpo translúcido filiforme
passava rente ao peito agredia-me
quando eu tentava gritar afastava-me embatia
contra as paredes fazia frio e tu não vinhas
era inverno dentro e fora de mim
já não me lembrava de nenhum número de telefone
nenhum nome amigo
as pernas e as mãos eram de geleia fendiam-se
ao contacto de línguas de vidro invisível
nem sequer telefonaste
tentava caminhar e tudo o que conseguia era bater
com a cabeça no lavatório tentava lembrar-me do meu nome
e só um rápido movimento de barbatanas sujas me aflorou a boca
esperei que viesses ao entardecer
abrisses os braços para mim
esperava que surgisses como um osso de luz reconhecível
mesmo durante a noite esperei
que me prendesses de novo para que não se enchesse o quarto
de peixes de enxofre devoradores de paredes
e tu nunca vieste
mais nada me poderia acontecer
teu rosto chegava-me à memória como mancha de fumo
longínqua nódoa de água e sangue
nos pulsos
uma mancha e tu não chegaste
desculpa
o que te queria dizer talvez não fosse isto
a solidão turva-se-me de lágrimas
e nas pálpebras tremem visões do meu delírio
olho as fotografias de antigos desertos
corpos coerentes que fomos
bocas de papel amarelecido
onde a sede nunca encontrou a sua água
e às vezes ainda tenho sede de ti
mas na vertigem da viagem o coração galopa desordenadamente
no écran da memória acende-se a imagem da mulher que amei
quase nítida vejo-te sentada
à porta da rua bordando um pano de linho branco
só esta imagem transportarei comigo
embora nunca tenha conseguido saber o que bordavas
uma colcha? uma toalha? um sudário?
também nunca to perguntei
tinha tempo de sobra para o descobrir
vivíamos longe da cidade espreitavas a nesga de mar
como uma risca de azul cerúleo ao fim da rua
agora tens as traseiras enlameadas dos prédios para olhar o lixo
cães magros ganindo fogem
às vassouradas de porteiras húmidas de gordura e rolos na cabeça
tens carros estacionados
e todas as merdas que atiram fora pelas janelas
furtivamente durante a noite ou de madrugada
de tempos a tempos o som quase limpo da flauta do amola-tesouras
pergunto-me se a memória não será um espaço arquitectado
para abrigar os mais terríveis remorsos e o futuro
a noite corrói
balbucio algarismos nomeio peixes e flores de todos os mares
de todos os continentes os ventos os naufrágios por vir
o estrume humano a seiva viva das plantas os astros
uma a uma as aves
as cidades onde me perco e me reencontro
a esperança e a dúvida
o medo das antárcticas cidades do sonho
ah como me recordo ainda de ti!
a noite é uma teia de sirenes que te acordam
e me esfrangalham os nervos
derrapas na insónia engoles comprimidos coloridos
para escapares ilesa à inquietante desolação do sexo
amávamo-nos
e para que não nos devorasse o silêncio
tartamudeava nomes de barcos: Delfim dos Trópicos Lírio dos Mares Ave do Tirreno Virgem das Maresias Furacão de Delfos Limo de Zanzibar Quilha das Índias
não
não estou a enlouquecer
amávamo-nos mesmo quando bordavas e te ferias com a agulha
o sangue alastrava pelo pano
apressadamente bordavas algumas flores para o esconderes
compreendo hoje como era doloroso o nosso amor
onde terás esquecido o pano bordado?
tudo se perdeu
e na confusão do pouco tempo que me resta duvido
que nos tenhamos amado alguma vez
os dias tornaram-se vertiginosos quando mudámos para a cidade
assim que andavas de metro punhas-te a delirar com viagens
contavas-me aventuras de transiberiano
afinal sou eu que parto
e não irei do Campo Pequeno aos Anjos
por onde andará a paragem do meu transiberiano?
quem sabe se numa praia em que leões cansados de selva
vêm espreguiçar-se no crepúsculo do areal
quem sabe se o sonho ou a morte me conduzirá a algum porto
onde possa embarcar para não sei que outro porto
víamo-mos cada vez menos até que nos perdemos definitivamente
foi quando me assolaram as primeira visões
as nossas noites eram sempre mais longínquas uma da outra
a tua vida encheu-se afazeres mesquinhos
televisão cabeleireiros tricots intermináveis
conversas idiotas ao telefone concursos de rádio
furtivas saídas ao cinema do bairro e à leitaria da esquina
como se eu ligasse alguma coisa ao que fazias
eu já andava atravessando as noites
onde uma navalha oculta talhava um sexo branco no vento
abria nas pedras fulvas da praia um lugar para esconder
o corpo exausto
a febre esmagava-me
recolhia aos quartos de pensão
com as mãos e o peito cheios de pássaros de haxixe e de vinho
tinha medo
medo que certos hálitos fortes me fizessem estremecer
apesar de tudo avançava fascinado
trémulo noite dentro avançava sempre para me afastar
de ti e de mim o mais que pudesse
experimentei breves paixões tristes carícias
cantei com as lágrimas molhando as palavras sussurradas
no escuro do quarto cantava
a cidade de olhos entumecidos a fome entorpecia os gestos
atirando o corpo para o mais terrível abandono
internaram-me e tu nunca vieste visitar-me
não tenho vontade de voltar a falar sobre isto
vou partir sem saudades e sem dinheiro
vou partir sem levar um só objecto que me lembre teu corpo
levo apenas uma espécie de fogo no fundo de mim
uma ânsia que não sei explicar
lembro-me de quando enlaçava os braços em tuas pernas
uma nuvem de aves vinha pousar nos ossos
tua boca deixava na minha um travo de asas estelares
o sexo húmido perfumado
não não julgues que estou de novo a enlouquecer
para lá de meus olhos fechados com força o mundo acorda
cheio de ecos e de venenos
moves-te nesse mundo que eu recuso
aqui donde te escrevo apenas uma parte de mim ainda não partiu
era isto que te queria dizer
poderás começar a preparar a espera
pouco me importa que continues a polir móveis
e a mudares a água das jarras
ou a encerares o soalho dos corredores
podes varrer os quartos
varrer a cozinha vagarosamente
eu nunca mais entrarei em casa com os sapatos enlameados
e tu
gritando coisas que eu já não podia compreender
encontrarás provavelmente um ou uma amante que te ajude
a suportar o vazio e o tédio desta casa
e um dia acabarás por trocar novamente esse amor
pela limpeza maníaca dos móveis
pela máquina de lavar e o seu funcionamento
os electrodomésticos sempre foram mais importantes do que eu
mas não terás que te preocupar mais com as tuas pedradas
nem com as bebedeiras nem com a música em altos berros
talvez consigas arranjar boas razões
para de quando em quando insultares o frigorífico
ou então mete-o de caras na cama
poderás partir um prato do serviço com violência
ou atirares com os cinzeiros à parede
estou-me nas tintas sempre me estive borrifando
para as tuas fúrias electrodomésticas
e agora sozinha nada disto terá sentido
resta-te o tricot o infindável tricot da chatice e do silêncio
os dias quase sem ninguém
arrastar-se-ão contigo colada às vidraças olhando
olhando a chuva ensopar os papéis que se estampam
contra o asfalto imundo do estacionamento das traseiras
e o vento arrastará na primavera o cio
dos animais fechados nos quintais
então lembrar-te-ás de mim
os dias incendiar-se-ão no susto da interminável espera
mas hoje ao acordares
sentirás que te povoo ainda o corpo e a memória
não te deixo o número de telefone de meu amigo
não quero que com ele alguma vez venhas a falar
e tentes saber onde estou
vou partir sem rumo
por isso será inútil perguntar em que direcção fui
por outro lado penso que o meu amigo
não estaria disposto a dividir segredos contigo
achas que deveria explicar esta amizade?
não posso não tenho coragem
ou talvez seja unicamente por pudor
a manhã começou a furar a noite
chega-me pelas frinchas das persianas
cheira a cimento molhado e a bolor
parto dentro de breves instantes
apenas levo a roupa que trago vestida e algum dinheiro
muito pouco
daquele que normalmente se destina às despesas da casa
espero que encontres neste acto um pretexto para me odiares
não levo recordações
a não ser daquelas que por mero acaso mencionei nesta carta
quase nada
poderás deitar fora a minha roupa
e todos os meus objectos pessoais
para onde vou não preciso deles
as fotografias queimei-as ontem à noite enquanto saíste
se telefonarem do emprego diz
que fui ver se ainda existem Índias por descobrir
ou que morri ou que me transformei
diz o que te der mais jeito
pensei deixar-te duas cartas para meteres no correio
mas no último instante eu mesmo as ponho no marco da esquina
quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casa
sem mim a casa amanhecerá doutra maneira
a ausência que já sou estando ainda aqui e a culpa
impregnar-se-ão em tudo quanto existiu entre nós
tornar-se-á insuportável continuares a viver sozinha
eu estarei longe
nas costas dalguma Etiópia
onde quantidades de lumes se avistam
longe
no cimo lúcido de meu próprio corpo contemplando
o fulgurante sangue dos astros
muito longe
no segredo desse lugar único
em que a escuridão da noite parece eterna claridade
Al Berto
in Três Cartas da Memória das Índias
O Medo
Assírio & Alvim, 2000
Persiana de água
abro a persiana de água
o fogo desaba rumoroso sobre o mar
árvores de vento protegem os corpos
destapados... simulamos o sonho
consigo tactear o fundo queimado do espelho
onde me sento para te escrever... desvendo
a paisagem em redor da casa contigo dentro
espio a dor salgada das visões
que os dedos largam por cima da roupa
dentro das gavetas que não voltei a fechar
assusto-me
quando penso ouvir a tua voz de regresso
devorando o humilde sossego do coração
mas o lodo corroeu a sombra do rosto
diluiu a fresca lua tactuada no ombro apressado da noite
uma ave de fogo entra pela janela onde me debruço
ao abandono à desolação do dia a dia
costuro o olhar ao voo migrante dos pássaros
estendo a mão para o segredo dos tectos ou durmo
na ilusão de encontrar algum rosto
escondido sob o peso do branco bolor
a memória está perfumada de violetas
desprende-se dos pulsos escorre pela cal dos corredores
persigo-me
pela madrugada suja das palavras
com o pressentimento de ter morrido longe do meu corpo
encosto-me às esquinas disponíveis da cidade
amachuco a vida debaixo dos sóis que te evocam
oferecendo a espuma da boca a todos os desconhecidos
Al Berto
Degredo no Sul
Assírio & Alvim, 2007
o fogo desaba rumoroso sobre o mar
árvores de vento protegem os corpos
destapados... simulamos o sonho
consigo tactear o fundo queimado do espelho
onde me sento para te escrever... desvendo
a paisagem em redor da casa contigo dentro
espio a dor salgada das visões
que os dedos largam por cima da roupa
dentro das gavetas que não voltei a fechar
assusto-me
quando penso ouvir a tua voz de regresso
devorando o humilde sossego do coração
mas o lodo corroeu a sombra do rosto
diluiu a fresca lua tactuada no ombro apressado da noite
uma ave de fogo entra pela janela onde me debruço
ao abandono à desolação do dia a dia
costuro o olhar ao voo migrante dos pássaros
estendo a mão para o segredo dos tectos ou durmo
na ilusão de encontrar algum rosto
escondido sob o peso do branco bolor
a memória está perfumada de violetas
desprende-se dos pulsos escorre pela cal dos corredores
persigo-me
pela madrugada suja das palavras
com o pressentimento de ter morrido longe do meu corpo
encosto-me às esquinas disponíveis da cidade
amachuco a vida debaixo dos sóis que te evocam
oferecendo a espuma da boca a todos os desconhecidos
Al Berto
Degredo no Sul
Assírio & Alvim, 2007
Amadeo Modigliani & Jeanne Hébuterne
amadeo:
certo dia, quando pintava o retrato de soutine e a mão deixara de me seguir, soutine disse-me:
- bebes para te matares.
e eu perguntei-lhe:
- e tu, soutine, o que te levou à tentativa de te enforcares?
saímos, depois, em silêncio para a rua. vimos o sena latejar sob as pontes e engolir as estrelas da imensa noite de paris.
jeanne:
soutine tinha razão. os anos passaram, não muitos, e amadeo tentara arranjar coragem para deixar de beber. foi inútil, e às vezes era violento - apesar de saber que eu nunca o abandonaria.
amadeo:
jeanne pressentiu que eu não precisaria de muito tempo para realizar a minha obra. sempre vivi como um meteoro.
soutine:
a 25 de janeiro de 1920, jeanne soube da morte de amadeo. refugiou-se num quarto em casa dos pais, num quinto andar. abriu a janela e saltou para junto dele.
certo dia, quando pintava o retrato de soutine e a mão deixara de me seguir, soutine disse-me:
- bebes para te matares.
e eu perguntei-lhe:
- e tu, soutine, o que te levou à tentativa de te enforcares?
saímos, depois, em silêncio para a rua. vimos o sena latejar sob as pontes e engolir as estrelas da imensa noite de paris.
jeanne:
soutine tinha razão. os anos passaram, não muitos, e amadeo tentara arranjar coragem para deixar de beber. foi inútil, e às vezes era violento - apesar de saber que eu nunca o abandonaria.
amadeo:
jeanne pressentiu que eu não precisaria de muito tempo para realizar a minha obra. sempre vivi como um meteoro.
soutine:
a 25 de janeiro de 1920, jeanne soube da morte de amadeo. refugiou-se num quarto em casa dos pais, num quinto andar. abriu a janela e saltou para junto dele.
Al Berto
366 Poemas que Falam de Amor
Quetzal Editores, 2009
Tradução de Vasco Graça Moura
Casa
durante a noite
a casa geme agita-se e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia
esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa se funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema
levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa - respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo
olhas-te no espelho
atribuis-te um nome um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas - com o vento
que arrasta consigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos
Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
a casa geme agita-se e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia
esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa se funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema
levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa - respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo
olhas-te no espelho
atribuis-te um nome um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas - com o vento
que arrasta consigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos
Al Berto
Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
Nomeio constelações uso-as
para me guiarem no receio das noites
escavo corpos na flexibilidade das sombras
atravesso a manhã e ponho a descoberto
a casa onde a infância secou
o olhar desce aos gestos inacabados
satura-os de jovens lágrimas de resinas
e o susto da criança que fui reaviva
um pouco de alegria no coração
Al Berto
Vigílias
Assírio & Alvim, 2004
para me guiarem no receio das noites
escavo corpos na flexibilidade das sombras
atravesso a manhã e ponho a descoberto
a casa onde a infância secou
o olhar desce aos gestos inacabados
satura-os de jovens lágrimas de resinas
e o susto da criança que fui reaviva
um pouco de alegria no coração
Al Berto
Vigílias
Assírio & Alvim, 2004
Prefácio para um livro de poemas
conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro.
víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema
planetário.
víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta
dos dedos. o latejar do tempo na humidade dos lábios.
e a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos. as
estrelas mortas das cidades imaginadas.
os ossos tristes das palavras.
a noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça trans-
parente.
em redor dele chove.
podemos imaginar uma chuva espessa, negra, plúmbea.
depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça.
as cidades (como em todos os livros que li) ardem. incêndios que des-
troem o último coração do sonho.
mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha,
absorto, a laranja.
a queda da laranja provocará o poema?
a laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
e um louco, saberá o que é uma laranja?
e se a laranja cair? e o poema? e o poema com uma laranja a cair?
e o poema em forma de laranja?
e se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? a ficar louco?
e a palavra laranja existirá sem a laranja?
e a laranja voará sem a palavra laranja?
e se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto,
e alguém a esquecer no meio da noite - servirá o brilho da laranja para ilu-
minar as cidades há muito mortas?
e se a laranja se deslocar no espaço - mais depressa que o pensamento, e
muito mais devagar que a laranja escrita - criará uma ordem ou um caos?
o homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora
das muralhas da cidade.
foi escorraçado.
e na deslocação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos
e pesadelos. os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão.
onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no
seu sexo, no seu coração?
e se escreveu laranja na alma, a alma ficará saborosa?
e se escreveu laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer?
e se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará?
onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do
poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui?
fora das muralhas da cidade?
no interior do meu corpo? ou muito longe de mim - onde sei que
possuo uma outra razão... e me suicido na tentativa de me transformar em
poema e poder, enfim, circular livremente.
Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim, 2000
víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema
planetário.
víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta
dos dedos. o latejar do tempo na humidade dos lábios.
e a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos. as
estrelas mortas das cidades imaginadas.
os ossos tristes das palavras.
a noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça trans-
parente.
em redor dele chove.
podemos imaginar uma chuva espessa, negra, plúmbea.
depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça.
as cidades (como em todos os livros que li) ardem. incêndios que des-
troem o último coração do sonho.
mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha,
absorto, a laranja.
a queda da laranja provocará o poema?
a laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
e um louco, saberá o que é uma laranja?
e se a laranja cair? e o poema? e o poema com uma laranja a cair?
e o poema em forma de laranja?
e se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? a ficar louco?
e a palavra laranja existirá sem a laranja?
e a laranja voará sem a palavra laranja?
e se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto,
e alguém a esquecer no meio da noite - servirá o brilho da laranja para ilu-
minar as cidades há muito mortas?
e se a laranja se deslocar no espaço - mais depressa que o pensamento, e
muito mais devagar que a laranja escrita - criará uma ordem ou um caos?
o homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora
das muralhas da cidade.
foi escorraçado.
e na deslocação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos
e pesadelos. os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão.
onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no
seu sexo, no seu coração?
e se escreveu laranja na alma, a alma ficará saborosa?
e se escreveu laranja no coração, a paixão impedi-lo-á de morrer?
e se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará?
onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do
poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui?
fora das muralhas da cidade?
no interior do meu corpo? ou muito longe de mim - onde sei que
possuo uma outra razão... e me suicido na tentativa de me transformar em
poema e poder, enfim, circular livremente.
Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim, 2000
carta de emile
a minha cidade tinha um rio
donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos
as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória
mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir
- porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver
nem pão nem balas
nem esperança - e cada um de nós metamorfoseou-se
num cemitério ambulante - cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos
tudo se decompõe
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna
Al Berto
Vigílias
Assírio & Alvim, 2004
donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos
as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória
mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir
- porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver
nem pão nem balas
nem esperança - e cada um de nós metamorfoseou-se
num cemitério ambulante - cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos
tudo se decompõe
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna
Al Berto
Vigílias
Assírio & Alvim, 2004
muravera/ villaputzu
O cão negro saltou o muro que separava a estrela dos campos.
Perseguiu, furioso, arreganhando a dentuça. Aproximou-se cada vez mais. Rosnou, ladrou.
O sol estava a pique, queimava. A minha sombra desaparecera por completo.
Espiei, por cima do ombro, o cão que, embora furioso, mantinha uma certa distância. Pensei: «O estupor negro talvez tenha receio de morder um homem sem sombra…»
Mas se ele soubesse como me sentia abandonado. Sem sombra, o saco ao ombro, a caminhar debaixo daquele sol impiedoso, numa estrada deserta… se ele soubesse que poderia ter-me devorado e que ninguém daria por isso – talvez não tivesse desistido de me ameaçar.
Continuei a andar, com passo firme – mas cheio de terror. E pensei que era muito novo para ser devorado. Não tinha ainda uma biografia de que me orgulhasse. Qualquer coisa que me tivesse acontecido e não me envergonhasse de contar, ou escrever.
Ouvi o cão a ladrar, agora, atrás do muro donde saltara. O suor escorria-me pela espinha abaixo. Os pés queimavam-me no asfalto sobreaquecido. Em redor, pedra e mais pedra. Uma risca de mar, ao fundo. Silêncio abrasador da uma da tarde. E uma vontade terrível de morrer, de desistir.
Eu nunca conseguira medir a minha existência sem pensar no seu fim. Estivesse para breve, ou não, esse fim.
De repente tudo acalmou em mim. Caminhei até à aldeia que surgira na curva da estrada, como uma bênção. Percebi que ainda viveria muito tempo. E, enquanto acelerava o passo, descobri que a calma nem sempre tem força para construir um destino, não põe a vida em movimento.
Nesse instante, desejei que o cão me tivesse devorado.
Al Berto
O Anjo Mudo
Contexto, 1993
Perseguiu, furioso, arreganhando a dentuça. Aproximou-se cada vez mais. Rosnou, ladrou.
O sol estava a pique, queimava. A minha sombra desaparecera por completo.
Espiei, por cima do ombro, o cão que, embora furioso, mantinha uma certa distância. Pensei: «O estupor negro talvez tenha receio de morder um homem sem sombra…»
Mas se ele soubesse como me sentia abandonado. Sem sombra, o saco ao ombro, a caminhar debaixo daquele sol impiedoso, numa estrada deserta… se ele soubesse que poderia ter-me devorado e que ninguém daria por isso – talvez não tivesse desistido de me ameaçar.
Continuei a andar, com passo firme – mas cheio de terror. E pensei que era muito novo para ser devorado. Não tinha ainda uma biografia de que me orgulhasse. Qualquer coisa que me tivesse acontecido e não me envergonhasse de contar, ou escrever.
Ouvi o cão a ladrar, agora, atrás do muro donde saltara. O suor escorria-me pela espinha abaixo. Os pés queimavam-me no asfalto sobreaquecido. Em redor, pedra e mais pedra. Uma risca de mar, ao fundo. Silêncio abrasador da uma da tarde. E uma vontade terrível de morrer, de desistir.
Eu nunca conseguira medir a minha existência sem pensar no seu fim. Estivesse para breve, ou não, esse fim.
De repente tudo acalmou em mim. Caminhei até à aldeia que surgira na curva da estrada, como uma bênção. Percebi que ainda viveria muito tempo. E, enquanto acelerava o passo, descobri que a calma nem sempre tem força para construir um destino, não põe a vida em movimento.
Nesse instante, desejei que o cão me tivesse devorado.
Al Berto
O Anjo Mudo
Contexto, 1993
cartas
A vida foi construída a partir de linhas rectas e curvas, círculos imperfeitos, assustadoras pirâmides, triângulos inacessíveis. Cada um de nós se ergue destes elementos, enquanto Deus espia o nosso espanto; e, com aqueles elementos duma grande simplicidade erguemos, também, o inferno lento dos dias.
Por vezes, descobrimos que os acontecimentos se tornam realmente importantes, quando os vemos de diferentes ângulos – como se estivéssemos sozinhos, abandonados, no meio duma sala de espelhos.
Apaixonamo-nos. Desatamos a escrever cartas insensatas para dizer, um ao outro, que jamais será possível voltar – juntos e em silêncio – ao lugar da noite onde nos destruímos e tentámos refazer a vida.
As cartas servem para isso mesmo. Assinalam os sobejos da paixão, perturbam-nos os sentidos e o coração. São a nossa derradeira existências de papel.
Depois, lentamente, a memória vai buscar violentas imagens que, durante anos, nos esforçámos por esquecer. Lá fora a cidade anoitece envolta numa luminosidade peganhenta. Dizemo-nos:
– Há muito tempo que não choramos.
Mergulhamos o rosto no escuro das mãos, as lágrimas irrompem, suavemente, sem convulsões nem gemidos. São as piores lágrimas, aquelas que se assemelham a ilhas perdidas no meio da nossa própria noite.
Por vezes, descobrimos que os acontecimentos se tornam realmente importantes, quando os vemos de diferentes ângulos – como se estivéssemos sozinhos, abandonados, no meio duma sala de espelhos.
Apaixonamo-nos. Desatamos a escrever cartas insensatas para dizer, um ao outro, que jamais será possível voltar – juntos e em silêncio – ao lugar da noite onde nos destruímos e tentámos refazer a vida.
As cartas servem para isso mesmo. Assinalam os sobejos da paixão, perturbam-nos os sentidos e o coração. São a nossa derradeira existências de papel.
Depois, lentamente, a memória vai buscar violentas imagens que, durante anos, nos esforçámos por esquecer. Lá fora a cidade anoitece envolta numa luminosidade peganhenta. Dizemo-nos:
– Há muito tempo que não choramos.
Mergulhamos o rosto no escuro das mãos, as lágrimas irrompem, suavemente, sem convulsões nem gemidos. São as piores lágrimas, aquelas que se assemelham a ilhas perdidas no meio da nossa própria noite.
Al Berto
O Anjo Mudo
Contexto, 1993
coisa naútica para o paulo da costa domingos navegar
quando ouvires o homem transumante cantar
vai
que te acompanhe o noctívago rumor húmido da cidade
e das águas terão recolhido em ânforas os ossos de Osíris onde
o olhar fosfosrescente dos felinos apaziguados incendeia
os resíduos de uma memória tolhida na vertigem do tempo
que te acompanhe o rubro silêncio dos mortos
e a traiçoeira humildade dos que parecem vivos
e o rio deslizando pelo deserto entorpecido da alma
a algazarra dos barqueiros núbios que vendem pó de anjo
e rápidos prazeres nas irreais tabernas de Alexandria
que te acompanhem as limpas palavras
muito nítidas as íbis e os tigres sinalizando a morada
onde uma nova linguagem irrompe e o homem
exerce o sagrado ofício da tumular escrita
que te acompanhe o rosto ausente dos amigos
a sabedoria das constelações o lume precioso
em nocturnos dilúvios de alquímicos minerais
e os dedos mergulharão na púrpura dos séculos para guardar
com todo o cuidado a sageza das profecias e a cicatriz
daquilo que futuros arqueólogos da língua designarão
por misteriosa violeta serpente náutica.
Al berto
O Medo
Assírio &Alvim, 2000
vai
que te acompanhe o noctívago rumor húmido da cidade
e das águas terão recolhido em ânforas os ossos de Osíris onde
o olhar fosfosrescente dos felinos apaziguados incendeia
os resíduos de uma memória tolhida na vertigem do tempo
que te acompanhe o rubro silêncio dos mortos
e a traiçoeira humildade dos que parecem vivos
e o rio deslizando pelo deserto entorpecido da alma
a algazarra dos barqueiros núbios que vendem pó de anjo
e rápidos prazeres nas irreais tabernas de Alexandria
que te acompanhem as limpas palavras
muito nítidas as íbis e os tigres sinalizando a morada
onde uma nova linguagem irrompe e o homem
exerce o sagrado ofício da tumular escrita
que te acompanhe o rosto ausente dos amigos
a sabedoria das constelações o lume precioso
em nocturnos dilúvios de alquímicos minerais
e os dedos mergulharão na púrpura dos séculos para guardar
com todo o cuidado a sageza das profecias e a cicatriz
daquilo que futuros arqueólogos da língua designarão
por misteriosa violeta serpente náutica.
Al berto
O Medo
Assírio &Alvim, 2000
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