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O jardim das oliveiras

Se procuro o teu rosto
no meio do ruído das vozes
quem procura o teu rosto?

Quem fala obscuramente
em qualquer sítio das minhas palavras
ouvindo-se a si próprio?

Às vezes suspeito que me segues,
que não são meus os passos
atrás de mim.

O que está fora de ti, falando-te?
Este é o teu caminho,
e as minhas palavras os teus passos?

Quem me olha desse lado
e deste lado de mim?
As minhas dúvidas, até elas te pertencem?



Manuel António Pina

Saudade da prosa

Poesia, saudade da prosa;
escrevia «tu», escrevia «rosa»;
mas nada me pertencia,
nem o mundo lá fora
nem a memória,
o que ignorava ou o que sabia.

E se regressava
pelo mesmo caminho
não encontrava

senão palavras
e lugares vazios:
símbolos, metáforas,

o rio não era o rio
nem corria e a própria morte
era um problema de estilo.

Onde é que eu já lera
o que sentia, até a
minha alheia melancolia?



Manuel António Pina

Esplanada

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.



Manuel António Pina
Poesia Reunida
Assírio & Alvim, 2001

Luz

Talvez que noutro mundo, noutro livro,
tu não tenhas morrido
e talvez nesse livro não escrito
nem tu nem eu tenhamos existido

e tenham sido outros dois aqueles
que a morte separou e um deles
escreva agora isto como se
acordasse de um sonho que

um outro sonhasse (talvez eu),
e talvez então tu, eu, esta impressão
de estranhidão, de que tudo perdeu
de súbito existência e dimensão,

e peso, e se ausentou,
seja um sonho suspenso que sonhou
alguém que despertou e paira agora
como uma luz algures do lado de fora.



Manuel António Pina
Os Livros
Assírio & Alvim, 2003
Prémio Luís Miguel Nava 2004