Um gesto

«Que cansativa que a polícia é!» suspirou Matilde, fechando a janela. Depois, sorrindo do seu próprio comentário, deu dois passos no aposento e relanceou os olhos pelo espelho, que a penumbra como que apagara. Foi aí que se lembrou de uma mulher que vira três ou quatro dias antes, ao volante de um carro que parara junto do seu, esperando que o sinal abrisse. Aproveitando aqueles breves momentos, a mulher mirava-se no retrovisor e, depois de levar um dedo aos lábios e o molhar com a língua, passara-o pelas sobrancelhas. Matilde puxou uma cadeira para o centro da sala e sentou-se, sem conseguir deixar de pensar naquele gesto, à luz do qual todos os móveis que a cercavam pareciam ganhar raízes no seu espírito. São gestos assim que encorpam a vida, que lhe dão espessura, pensou ela. Tinha a certeza de que, enquanto se lembrasse daquele gesto e da mulher que o executara, o instante em que o captara continuaria a existir tal como ela naquele preciso momento existia ali, naquela sala, deliberadamente alheada do aparato policial montado nas ruas adjacentes, devido a uma qualquer concentração perfeitamente inócua e que só no caso de nas próximas horas nada haver no mundo digno de atenção mereceria umas escassas linhas nos jornais do dia imediato. Que peso teria aquela manifestação em comparação com o gesto da mulher que passara o dedo, molhado de cuspo, pelas sobrancelhas? Saberiam aqueles homens armados até aos dentes e distribuindo barreiras de arame farpado ao longo da avenida que o que eles supunham ser «este momento» amanhã já não teria existido? As feições da mulher haviam começado, é certo, a diluir-se-lhe na memória, onde, de resto, o automóvel em que ela se encontrava e mesmo o seu cabelo já não tinham qualquer cor. Talvez esses pormenores funcionassem como catalizadores e contribuíssem para que o instante em que Matilde a entrevira através dos vidros dos dois carros se perpetuasse para além da sua contingência. Mas não. Matilde estava certa de que isso não importaria. Fosse a mulher loira ou morena, gorda ou magra, o que na realidade havia de marcante é que levara um dedo à boca e às sobrancelhas e que, sem disso poder ter tido consciência, colocara assim, ali, um travão no tempo, dando consistência a qualquer coisa sobre a qual os nossos gestos normalmente não produzem mais efeito que os de quem se industriasse a desenhar cruzes na água.



Luís Miguel Nava
Poesia Completa 1979-1994
Publicações D. Quixote, 2002

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